Eleições

Irá a Bolívia regressar aos anos noventa?

16 de agosto 2025 - 17:13

Nas eleições gerais deste domingo, a esquerda pode ficar fora da segunda volta nas presidenciais e muito minoritária no parlamento. Com o MAS em estado de decomposição, as sondagens antecipam um confronto entre a direita moderada e a direita radical, quase sem renovação dos rostos que dominam a política nas últimas décadas.

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Pablo Stefanoni

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Samuel Doria Medina em campanha
Samuel Doria Medina em campanha. Foto publicada nas suas redes sociais.

A Bolívia vai a votos nas eleições de 17 de agosto numa conjuntura política inédita nos últimos 20 anos: o outrora poderoso Movimento ao Socialismo (MAS) enfrenta o processo eleitoral dividido em três fações e corre o risco de ficar em terceiro ou quarto lugar. Assim, pela primeira vez desde o final da década de 1990, a esquerda não estaria na segunda volta que, segundo as sondagens, terá frente a frente dois candidatos posicionados à direita (mais moderado e mais radical): o político e empresário liberal-desenvolvimentista Samuel Doria Medina e o ex-presidente Jorge «Tuto» Quiroga, ligado às redes radicais de Miami.

As lutas internas que começaram assim que o MAS voltou ao governo em 2020, após a sua queda um ano antes, constituíram um verdadeiro processo de autodestruição. O MAS está hoje dividido entre arcistas – seguidores do presidente Luis Arce Catacora –, que ficou com a sigla do MAS através da manipulação da justiça; evistas – adeptos de Evo Morales, inelegível e recluso na zona cocalera do Chapare para não ser detido –; e os androniquistas – que apoiam a candidatura do presidente do Senado, Andrónico Rodríguez.

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A autodestruição do MAS à beira das presidenciais

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13 de abril 2025

Eduardo del Castillo, candidato «oficial» do MAS, não chega a 2% das intenções de voto. Alheio ao mundo camponês que é a «alma» do MAS, Del Castillo era um dos homens fortes do governo de Arce, que acabou por desistir de concorrer a uma reeleição impossível devido à sua escassa capacidade de gestão e a uma crise económica que o país não conhecia desde os turbulentos primeiros anos 2000. Como ministro do Governo, Del Castillo foi a cara mais visível da perseguição política e judicial contra Evo Morales, líder incontestado do MAS desde a sua fundação.

O candidato mais bem posicionado do espaço do MAS, que após o seu lançamento teve possibilidades de competir na segunda volta, é Andrónico Rodríguez, ex-delfim de Morales e por ele escolhido como sucessor na liderança dos sindicatos dos camponeses produtores de coca. Com 36 anos, ele representa as novas gerações de camponeses com formação universitária e vínculos urbano-rurais fluidos. Mas a decisão do jovem líder de se candidatar à Presidência enfureceu Morales, que agora apela ao voto nulo como um «referendo» contra o processo eleitoral, o que contribuiu para que a candidatura de Andrónico fosse perdendo força.

Depois de meditar durante meses – nos quais vários presidentes e ex-presidentes, como Nicolás Maduro, Raúl Castro e José Luis Rodríguez Zapatero, tentaram mediar na crise do MAS –, Andrónico finalmente lançou a sua candidatura. Antes de o fazer, afastou-se do seu mentor, não participando nos conclaves evistas e encarnando um discurso autocrítico e renovador, pelo que Morales o considera hoje um traidor. Mas não conseguiu enraizar-se no movimento camponês – que é a principal base social do MAS – e alguns dos seus primeiros apoios vieram de figuras contestadas e vistas como oportunistas.

A escolha da sua candidata a vice-presidente também não ajudou. Em teoria, a jovem ministra Mariana Prado – considerada em tempos parte da ala alvarista (do ex-vice-presidente Álvaro García Linera) – complementava o candidato camponês, com o seu perfil de tecnocrata urbana e «branca». Mas a sua apresentação enfrentou um caso policial que a afetou de forma indireta, mas persistente. O seu ex- companheiro cometeu um feminicídio e ela foi acusada, sobretudo por feministas como María Galindo, de o ter beneficiado no seu depoimento judicial. « Ouve, Andrónico de merda, se te apresentares com a Mariana Prado, vou tornar a tua vida um inferno segunda, terça, quarta, quinta, de segunda a segunda, porque a Mariana Prado é uma desgraçada que defendeu um feminicida», lançou Galindo com o seu habitual estilo virulento e, de facto, lançou uma campanha impiedosa contra Prado.

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A tentativa de golpe militar e as suas consequências

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Pablo Stefanoni

07 de julho 2024

Andrónico Rodríguez conseguiu uma sigla emprestada para se candidatar fora do MAS «arcista», com bons resultados nas sondagens; mas, frente ao governo do MAS e a Evo Morales, a campanha tornou-se difícil e ameaça esvaziar-se. Só poderia salvá-lo, até certo ponto, se uma parte da grande quantidade de indecisos e de potenciais eleitores nulos ou em branco optasse finalmente por um voto útil da esquerda para evitar o desastre. O que poderia ser uma candidatura renovadora foi dinamitada sobretudo por Morales, que ampliou a lista de «traidores» até García Linera, seu companheiro como vice-presidente e «copiloto» durante 14 anos.

Em plena crise económica marcada pelo esgotamento do modelo nacionalista de esquerda do MAS – redução da produção de gás, inflação elevada, escassez de combustíveis e falta de dólares, que também conferem um ar dos anos noventa à conjuntura atual –, a política boliviana parece incapaz de se renovar. Doria Medina foi ministro durante o governo de Jaime Paz Zamora, entre 1991 e 1993, e candidato à presidência pelo seu partido, Unidad Nacional, em várias ocasiões. Embora seja vice-presidente do Comité da Internacional Socialista (IS) para a América Latina e o Caribe, isso diz mais sobre a «elasticidade» ideológica da IS do que sobre o «socialismo» de Doria Medina, um dos grandes empresários bolivianos. O economista acumulou a sua fortuna na indústria do cimento e possui grandes propriedades imobiliárias e hotéis, além de um «pé» na gastronomia: é proprietário da franquia Burger King e Subway na Bolívia. «Não sou da direita dura. Na Bolívia, sou considerado de centro, então tenho a capacidade de falar com todos. Sou mais pragmático e acredito que a Bolívia precisa de pragmatismo», disse ele numa entrevista em 2024.

Para chegar à Presidência após tantas tentativas frustradas, marcadas pela sua falta de carisma pessoal, ele construiu uma ampla aliança que inclui desde o ex-presidente da Câmara de La Paz, Juan del Granado (centro-esquerda), até o ex-governador de Santa Cruz, Luis Fernando Camacho (direita), atualmente preso, passando por vários parlamentares do partido do ex-presidente Carlos Mesa (centro). Ele também conta com o apoio do empresário mais rico da Bolívia, Marcelo Claure, que compartilha com Elon Musk a vontade de influência política e a fascinação pela trollagem nas redes sociais. Doria Medina apresenta-se como o economista que pode resolver a grave crise económica após uma década e meia de estabilidade e crescimento no que alguns chamaram de «milagre económico» sob o governo do MAS; um «milagre» que hoje poucos consideram como tal.

O político e empresário destacou, numa entrevista ao Infobae, que o seu plano de governo tem como objetivo estabilizar o país nos primeiros 100 dias de gestão. Para isso, o foco estará em resolver o défice orçamental, que ele atribui principalmente a três fatores: os subsídios aos combustíveis, os gastos com empresas públicas ineficientes e o desperdício em gastos políticos. O seu slogan é «Cien días, carajo». Ele confia que, caso vença, chegarão investimentos e os bolivianos tirarão os seus dólares do «colchón bank».

Ele afirma que não copiou Javier Milei, cujo lema é «Viva la libertad, carajo!». O empresário sofreu um grave acidente aéreo em 2005 e sempre considerou que a sua sobrevivência foi uma espécie de mensagem. A frase que ele supostamente proferiu, «Carajo, no me puedo morir!», depois de ver que ainda estava vivo, marcaria, com ironia ou sem ela, a sua carreira política. Ele também sobreviveu a um cancro e a um sequestro pelo Movimento Revolucionário Túpac Amaru (MRTA) do Peru: foi libertado após 45 dias, após o pagamento de mais de um milhão de dólares.

O seu adversário mais próximo é «Tuto» Quiroga, que ocupou o cargo de presidente, por sucessão constitucional, entre 2001 e 2002, após a morte em 2002 de Hugo Banzer, o ex-ditador dos anos 70 que voltou à Presidência por via democrática em 1997.

Em 2005, Quiroga perdeu a eleição para Evo Morales, que, após obter 54% dos votos, iniciou o seu longo reinado político. Militante da direita radical, desempenhou um papel central na destituição de Evo em 2019, como um dos arquitetos da estratégia que levou Jeanine Áñez, hoje presa, ao poder. Ele afirmou que, caso vença, romperá laços com a Venezuela, Cuba e o Irão («Não terei relações com as três tiranias trogloditas totalitárias, não terei relações com os três piratas do Caribe»), mas admitiu que analisaria a permanência da Bolívia no grupo dos BRICS [Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul], devido ao vínculo comercial com a Índia e a China. A sua defesa da democracia, esclareceu, limita-se à América Latina. «Azerbaijão, Catar e outros... China, Vietname... respeito os seus sistemas, mas não os partilho. Não gosto do sistema de partido único, mas respeito-o».

Na mesma entrevista, questionou o Mercado Comum do Sul (Mercosul) – «na parte comercial, não tenho interesse em participar porque é como entrar numa prisão comercial» – e anunciou que apostaria num «triângulo sul-americano» para a exploração de lítio, juntamente com a Argentina e o Chile. Com ares dos anos 1990, disse que manteria uma «posição agressiva» para procurar tratados de livre comércio com vários países, incluindo os Estados Unidos. Ele divergiu, no entanto, do protecionismo de Donald Trump. «Não gosto de países que aumentam as tarifas. Vou reduzir as tarifas e entendo perfeitamente que a minha resposta fala de uns Estados Unidos que já não estão abertos ao comércio livre. E não é um problema apenas da atual administração. Por isso, tal como o Chile e o Peru, vou assinar os meus próprios acordos comerciais com a Europa, com países da Ásia e da região», respondeu à CNN.

Seguindo os passos de Milei na Argentina, e até tentando superá-lo retoricamente, ele disse que usará «motosserra, machete, tesoura e tudo o que encontrar» para reduzir os gastos públicos.

Doria Medina tem cerca de 21% nas sondagens e viu Quiroga a aproximar-se com 20%. Em terceiro lugar aparecem Rodrigo Paz, filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, e o presidente da Câmara de Cochabamba e ex-candidato presidencial Manfred Reyes Villa. Andrónico Rodríguez aparece em quarto ou quinto lugar, com cerca de 7%. Mas cerca de 30% declaram que votarão em branco, nulo ou que ainda não decidiram o voto, o que poderia alterar os resultados, e há dúvidas sobre como se votará no campo.

A quantidade de votos nulos e em branco também marcará a legitimidade do novo governo, que enfrentará uma austeridade num país marcado por rebeliões sociais – como sabe Quiroga, que, como vice-presidente, viveu a Guerra da Água em Cochabamba, em 2000. Morales contestou o processo eleitoral e tentará evitar ser detido por uma acusação de «tráfico de pessoas agravado», por ter mantido uma relação, segundo a acusação, com uma pessoa que era menor de idade no momento em que o relacionamento começou. Esse processo, iniciado sob a presidência «interina» de Áñez, foi reativado pelo governo de Arce para neutralizar Morales em plena guerra interna.

Desta forma, a Bolívia está prestes a voltar a um cenário semelhante ao dos anos 1990, em que sucessivas crises económicas se combinavam com um sistema político fragmentado que exigia acordos parlamentares constantes e que foi perdendo prestígio ao transformar-se num mercado de troca de cargos. A própria vitória de Morales em 2005 foi apresentada como o fim da chamada «democracia pactada» (naquela época não havia segunda volta e cabia ao Congresso eleger o presidente entre os candidatos mais votados). Agora, com um poder legislativo que se presume será dominado pela direita, é possível que essa democracia fragmentada seja reeditada para buscar governabilidade. Mas o mundo já não está nos anos 1990, e a Bolívia também não. Quando o entrevistei em 2005, Doria Medina disse-me que «não se trata de colocar [na Presidência] uma pessoa de poncho ou pollera, a solução é levar adiante mudanças na economia». Ele poderia repetir o mesmo hoje, 20 anos depois. Mas esses setores indígenas e populares têm hoje uma relação diferente com o poder, embora o discurso sobre a regeneração nacional a partir dos povos originários se tenha desgastado.

Surge um ponto de interrogação sobre a estabilidade política do futuro governo. E sobre o futuro do MAS: será que este espaço de base camponesa-popular, que nos últimos anos foi politicamente hegemónico, conseguirá superar o seu estado de decomposição, desânimo e confusão, ou voltará ao cenário dos anos 1990, quando várias fações camponesas e de esquerda gastavam grande parte das suas energias a rivalizar umas com as outras?

Hoje, numa Bolívia que celebrou um bicentenário sem brilho, os candidatos que até ontem eram «o passado» dizem que, se ganharem a 17 de agosto, quem será «o passado» será o MAS, e que a sua crise é «terminal». Que será o fim de um longo ciclo político.


Pablo Stefanoni é jornalista, economista e doutor em História. Artigo publicado em Nueva Sociedad.

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