Bolívia

A tentativa de golpe militar e as suas consequências

07 de julho 2024 - 10:17

A recente tentativa de golpe militar na Bolívia expõe a crise política no país e a divisão do MAS, o partido do Governo.

por

Pablo Stefanoni

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Militares na Bolívia.
Militares na Bolívia. Foto Nuso

A imagem dos militares a entrar à força no Palácio Quemado percorreu o mundo e semeou a confusão na Bolívia. O golpe frustrado de uma fação do exército, com a rejeição nacional e internacional, ocorreu no contexto da erosão da administração de Luis Arce, em grande parte como resultado das guerras internas do Movimento ao Socialismo (MAS). Apesar do seu rápido fracasso, a rebelião militar terá consequências políticas.

Os tanques na Plaza Murillo acabaram por ser uma espécie de farsa que poderia ter-se transformado em tragédia, num clima político cada vez mais deteriorado pelas disputas dentro do Movimento pelo Socialismo (MAS), agora fragmentado em duas alas: a de Evo Morales e a dos Arcistas. Na tarde de quarta-feira, 26 de junho, o comandante geral do exército, Juan José Zúñiga – que tinha sido demitido na noite de terça-feira, mas recusou-se a reconhecer a decisão do presidente – ocupou a praça emblemática com tanques. Ele até usou um deles para forçar a abertura da porta do Palacio Quemado, a antiga sede do governo, agora compartilhada com a vizinha Casa Grande del Pueblo. A confusão sobre as intenções e estratégias em jogo reinou durante a maior parte do ataque, enquanto vários ministros usavam móveis para impedir a entrada das forças uniformizadas.

A tensão estava a aumentar depois do general Zúñiga se ter referido à impossibilidade do ex-presidente Evo Morales de concorrer novamente à presidência e respondeu a várias das suas acusações chamando-o de “mitómano”. Numa entrevista ao programa local No Mentirás, em 24 de junho, o chefe militar disse que “legalmente, Evo Morales está desqualificado. A CPE [Constitución Política del Estado] diz que ele não pode exercer mais de dois mandatos e ele foi reeleito. O exército e as forças armadas têm a missão de garantir que a CPE seja respeitada e cumprida. Esse homem não pode voltar a ser presidente deste país”.

Zúñiga estava a referir-se a uma decisão polémica do Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) que, numa sentença sobre outra questão, incluiu uma interpretação forçada da Constituição de 2009 que deixaria um presidente eleito por três vezes fora da corrida presidencial. A Constituição estabelece que apenas dois mandatos consecutivos são possíveis, mas o tribunal “interpretou” que são dois no total – consecutivos ou não – o que foi apresentado por Morales como uma tentativa de proscrição política pela “direita endógena”, como parte do que ele chamou de um “plano sujo” para tirá-lo do jogo político, orquestrado, segundo ele, pelos ministros da Justiça, Iván Lima, e do Governo, Eduardo del Castillo.

As declarações ameaçadoras de Zúñiga, que foi nomeado comandante do exército no final de 2022 pelo presidente Luis Arce Catacora, enervaram o ex-presidente e o evismo, que começou a falar de um “auto-golpe” em andamento. “O tipo de ameaças feitas pelo comandante geral do exército, Juan José Zúñiga, nunca foi feito em uma democracia. Se elas não forem desmentidas pelo comandante-chefe das Forças Armadas [Luis Arce], ficará provado que o que eles estão realmente a organizar é um auto-golpe”, denunciou Morales na sua conta no X, de onde critica diariamente o governo de Arce, que considera um traidor do chamado “Processo de Mudança”.

Mas não foi apenas o ex-presidente. As ameaças de Zúñiga violaram os regulamentos militares e a Constituição, o que explica a decisão de Arce de demiti-lo. Mas isso foi visto pelo chefe militar como uma expressão de “desprezo”, apesar da sua lealdade ao presidente. Na quarta-feira, 26 de junho, conforme noticiado pelo diário El Deber, ele foi convocado para ser formalmente destituído das suas funções, mas chegou à Plaza Murillo com veículos blindados e soldados encapuçados. E o país testemunhou um general a agir como um “movimento social”, o que de facto constitui um golpe de Estado, repreendendo o presidente Arce cara a cara depois de entrar à força no Palácio Quemado, enquanto os colaboradores do presidente gritavam que ele era um golpista e exigiam que retirasse os soldados uniformizados.

O isolamento de Zúñiga, sem apoio político ou social, possivelmente explica a sua tentativa de dar conteúdo político à sua rebelião: disse que libertaria “prisioneiros políticos”, como a ex-presidente Jeanine Áñez e o ex-governador de Santa Cruz, Fernando Camacho, e que restauraria a democracia. “Uma elite assumiu o controle do país, vândalos que destruíram o país”, disse do lado de fora do seu carro blindado, em frente ao Palácio Quemado e ao parlamento. O seu argumento de que “as forças armadas estão a tentar reestruturar a democracia, [para que] seja uma democracia verdadeira, não uma democracia de propriedade de senhores que estão no poder há 30 e 40 anos”, caiu em ouvidos surdos. A reação interna e externa foi avassaladora. Até mesmo opositores atualmente presos, como Áñez e Camacho, condenaram a ação militar. O mesmo fizeram os ex-presidentes Carlos D. Mesa e Jorge “Tuto” Quiroga. Fora do país, líderes de diferentes convicções ideológicas – com exceção do argentino Javier Milei, que deixou a questão para o seu ministro das Relações Exteriores – pediram a defesa das instituições e condenaram os rebeldes.

Enquanto isso, organizações motrizes, como a Central Sindical Única de Trabalhadores Camponeses da Bolívia (CSUTCB) ou a Central Obrera Boliviana (COB), bem como Evo Morales, que continua a ser o líder dos sindicatos de plantadores de coca no Chapare, em Cochabamba (ele tem os seus escritórios e a sua empresa de piscicultura lá), convocaram uma greve geral, um bloqueio de estradas e uma grande marcha até La Paz.

Arce, por sua vez, fez um breve discurso, também apelando à mobilização, no meio de confrontos na Plaza Murillo, onde os manifestantes foram expulsos com gás lacrimogénio. E iniciou a nomeação de um novo comando militar nas três forças.

Sem nenhuma rebelião nos quartéis militares ou policiais, a corda de Zúñiga para manter a revolta e conseguir permanecer no seu cargo pela força estava a ficar curta. Envolvido em pelo menos um caso de desvio de dinheiro – o pagamento do bónus de Juancito Pinto, nas mãos dos militares – durante o governo de Evo Morales, e sem um grande desempenho na sua carreira, este militar era considerado muito próximo de Arce e parece ter reagido impulsivamente. A sua retirada da Plaza Murillo assemelhou-se a uma debandada, com manifestantes a perseguir os soldados mais recuados.

Depois de ser preso, juntamente com o vice-almirante Juan Arnez, ex-comandante da marinha, Zúñiga disse que tinha agido sob as ordens do presidente: “O presidente [Arce] disse-me que a ‘situação está muito fodida, é necessário preparar algo para aumentar a minha popularidade'”. Isto deixou uma granada ativada para os próximos dias. A ideia de um auto-golpe stricto sensu parece ser desmentida pelo próprio fio dos acontecimentos – qual era exatamente o plano? – que parecem mais uma sucessão de eventos descarrilados no contexto de uma forte erosão das instituições – e da gestão do governo – que é em grande parte o resultado do confronto no interior do MAS.

Depois do seu retorno ao poder em dezembro de 2020 com Luis Arce, o candidato escolhido a dedo por Morales desde o seu exílio na Argentina, as relações entre o ex-presidente e o seu ministro da Economia durante mais de uma década rapidamente se desgastaram e terminaram numa disputa aberta pelo poder. Arce, que supostamente se tinha comprometido a não concorrer à reeleição em 2025, mais tarde decidiu que buscaria um segundo mandato; e Evo Morales, que tentou uma reeleição após a outra sem levar em conta a letra e o espírito da nova Carta Magna, considera que foi deposto por um golpe em 2019 e que tem o direito de concorrer à presidência novamente. Essa disputa paralisou a Assembleia Legislativa, num contexto económico que hoje tem pouca semelhança com os anos de auge económico anteriores a 2019.

A escassez de dólares e combustíveis revela um esgotamento do modelo aplicado desde 2006, quando Evo Morales foi eleito o primeiro presidente indígena da Bolívia e, na sequência de uma espetacular epopeia política, lançou a “Revolução Democrática e Cultural”, que em termos económicos implantou um “populismo prudente” muito preocupado em não aumentar o déficit fiscal e acumular reservas recordes de divisas no Banco Central.

O próprio Arce reconheceu recentemente que a situação do diesel era “patética” e ordenou a militarização do sistema de abastecimento de combustível, com o objetivo de impedir o contrabando do diesel boliviano subsidiado pelo Estado para os países vizinhos. A crise económica está a afetar especialmente Arce, que, sem muito carisma, construiu a sua legitimidade como ministro do “milagre económico”. Na frente política, o confronto entre o Executivo e o Judiciário enfraqueceu o Legislativo, cuja maioria também está dividida entre arcistas e evistas, com cada lado a acusar o outro de “fazer o jogo da direita”. Os mandatos das autoridades judiciais também foram estendidos, o que é denunciado diariamente pelos partidários de Evo Morales.

O presidente do Senado, Andrónico Rodríguez, um sindicalista dos plantadores de coca treinado por Evo Morales como uma espécie de sucessor, tuitou após a retirada dos militares: “De magistrados com mandatos prorrogados a um suposto golpe ou auto-golpe, o povo boliviano está a afundar-se na incerteza. Esta desordem institucional, em que as autoridades estendem ilegalmente os seus mandatos e os princípios democráticos são minados, está a levar o país a uma situação de caos e desconfiança, agravando a crise e ameaçando a estabilidade e o bem-estar do país”. As consequências do golpe continuarão. Longe de uma trégua dentro do MAS, a luta interna vai-se intensificar.

Parte da disputa é sobre a sigla do Movimento ao Socialismo (MAS), um partido de movimentos sociais que, em 2020, demonstrou a sua capacidade de mobilização eleitoral mesmo em contextos difíceis como o que viveu durante o governo de Áñez – e do ministro do governo Arturo Murillo, posteriormente preso nos Estados Unidos por corrupção –: os congressos de cada ala foram judicializados, com vistas a 2025, ano do bicentenário da Bolívia.

A fraqueza da oposição, que permaneceu associada ao governo autoritário, ineficiente e repleto de corrupção de Jeanine Áñez, e tem grande dificuldade em encontrar novas figuras, está a alimentar a “ch’ampa guerra” entre evistas e arcistas, que pensam o poder como uma disputa “interna”. No entanto, num contexto de volatilidade eleitoral regional e global, esta visão implica um risco, mesmo se considerarmos que a base eleitoral em torno do MAS continua forte e que a experiência de Áñez funciona como uma “dose de memória” para os movimentos sociais e indígenas.

Ainda é muito cedo para saber como o golpe fracassado terá impacto nas relações de poder dentro do MAS (que hoje não existe mais como um partido unificado). Depois de superar o desafio do grupo militar, Arce agora enfrenta o fogo cruzado político de evistas e oponentes, que já começaram a falar de um “show político” numa tentativa de desvalorizar o capital político que o presidente poderia ganhar com o apoio nacional e internacional às instituições e à validade da democracia, e a sua decisão de repreender o “general golpista” cara a cara.


Pablo Stefanoni é jornalista, economista e doutor em História.

Texto publicado originalmente na NUSO. Traduzido para português pela revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.