Está aqui

A iminente guerra da água entre o Egito, Etiópia e Sudão

A Etiópia está a construir a maior barragem do continente africano no Nilo. Para o Egito e Sudão, este rio é uma questão de vida ou de morte. A disputa tem mais de uma década mas agora que chegou à altura de começar a encher a barragem, a intransigência das partes pode conduzir a um conflito armado. Por Julian Vigo.
Enchimento da mega-barragem GERD, julho de 2020. Foto de Hailefida/wikimedia commons.
Enchimento da mega-barragem GERD, julho de 2020. Foto de Hailefida/wikimedia commons.

Depois de quase uma década de negociações com a Etiópia, no mês passado, os governos do Egito e do Sudão levaram a sua disputa sobre a Grande Barragem do Renascimento Etíope (GERD, na sua sigla em inglês) ao Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), onde Adis Abeba declarou que a barragem iria começar a encher em julho, apesar de colocar em perigo a vida de 150 milhões de egípcios e sudaneses. Como resultado desta declaração, celebrou-se uma sessão do Conselho de Segurança em finais de junho, na qual os estados membros africanos, inclusive a África do Sul – atual presidente da União Africana e um membro não permanente do CSNU –, solicitaram tempo para abordar a discussão. Não obstante, Adis Abeba quer que a ONU se mantenha à margem e que seja a União Africana a tomar a iniciativa. No final de junho, o ministro das Relações Exteriores do Egito exortou o Conselho de Segurança da ONU a adotar uma resolução para ajudar a resolver a disputa sobre a barragem hidroelétrica.

Eis a situação. O Nilo, uma corrente de vida para os dez países que atravessa, abastece de água e eletricidade tanto o Sudão como o Egito. A montante, aproximadamente a 30 quilómetros da fronteira sudanesa, a Etiópia está a construir a grande barragem (GERD) que vai afetar a água que recebe o Sudão e o Egito. Quando finalizado, vai ser o maior projeto hidroelétrico de África, sendo a companhia elétrica da Etiópia, a sua proprietária e operadora. A barragem de gravidade, com torres de betão de 145 metros de altura, vai inundar uma extensão de 1874 km2 numa albufeira a 640 metros de altura, e vai ter uma área de captação de 172.250 km2. A barragem terá um volume de 74 mil milhões de m3 de água (mmc) – dos quais 14.800 milhões são de armazenamento não ativo –, e pode conter aproximadamente um 1,6 do caudal médio do Nilo Azul por ano (48.500 milhões de m3/ano), segundo a estação de medição El Diem, que fica um pouco abaixo da fronteira do Sudão.

Os principais protagonistas mantêm-se firmes nas suas posições. O Cairo vê esta barragem como uma ameaça para a segurança internacional e o Sudão teme o impacto negativo para a sua população. Ainda que os países tenham acordado que quando o fluxo da água do Nilo para a barragem caia abaixo dos 35-40.000 mcc (milhões de metros cúbicos), será declarada seca, a Etiópia não tem obrigação de reduzir as suas operações na GERD. O Egito lançou recentemente um aviso de que a GERD, se for enchida com água do Nilo Azul, vai comprometer o futuro de 150 milhões de pessoas no Egito e no Sudão. Espera-se que a construção da gigantesca central hidroelétrica de 4.800 milhões de dólares (4.300 milhões de euros), que começou em 2010, acabe em 2022. Estava programado que a barragem começasse a ser enchida em julho, segundo as autoridades de Adis Abeba.

Dado que a GERD tem uma albufeira do tamanho da Grande Londres, não é difícil prever que essa imensa retenção de água supõe uma “ameaça existencial” à segurança e ao bem-estar da água no Egito e no Sudão. Devido a esta situação, tanto o Sudão como o Egito imploraram ao Conselho de Segurança da ONU que intervenha com o pretexto de que a falta de intervenção pode levar a um conflito. O apelo ao CSNU enquadra-se no Artigo 35 da Carta da ONU que autoriza aos Estados membros alertar o Conselho de Segurança de qualquer situação que possa conduzir a fricções internacionais, ou que possa pôr em perigo a paz e a segurança internacionais.

A GERD vai afetar 90% do abastecimento de água doce no Egito, que atualmente depende do Nilo. O ministro dos Assuntos Exteriores etíope, Gedu Andargachew, na sua carta de junho não mencionou a decisão de Adis Abeba de começar a encher o depósito unilateralmente em julho, o que intensificou o apelo do Egito para a intervenção no CSNU. Ao contrário, Andargachew argumentou que as conversações tripartidas recentes progrediram e foram suspensas porque a delegação sudanesa queria consultar os seus líderes.

Na reunião de fevereiro da União Africana o presidente Sisi disse ao primeiro ministro Abiy que queria discutir as atas das reuniões do grupo de estudo. Estas conversações conduziram a nova proposta egípcia que pedia uma libertação anual mínima de 40000 mmc de água da GERD durante o período de enchimento.

O dr. Mohamed S. Helal, professor de direito na Universidade Estatal de Ohio, realizou uma análise muito detalhada de cada aspeto legal do caso. No entanto, até um advogado que analisa esta situação objetivamente, está limitado a interpretar documentos legais e supõe a boa fé nas negociações. Ainda assim, Helal assinala que o Egito participou constantemente enquanto que a Etiópia “não completou o processo de estudos do Painel de Expertos Internacionai (IPoE), rejeitou o acordo preparado por partes imparciais e está-se a preparar para começar unilateralmente o enchimento”. Há paixões em todos os lados desta questão, mas não podemos não ter em conta a legalidade dos acordos históricos, sublinha a análise de Helal.

Do ponto de vista egípcio, ao encher unilateralmente a barragem, a Etiópia procura estabelecer um controlo sem restrições sobre um rio transfronteiriço, uma violação da Declaração de Princípios de 2015, assinada pelo Egito, Etiópia e Sudão, que estipula que o enchimento e o funcionamento da GERD vai iria realizar em conformidade com as diretrizes e normas acordadas entre os três países.

Todavia, não está claro se a GERD é ilegal segundo o direito internacional ou como as águas do Nilo deveriam ser partilhadas historicamente entre os três países. Primeiro, houve o tratado de 1902 entre o Reino Unido e a Etiópia, segundo o qual a Etiópia renunciava a qualquer direito sobre o Nilo e se comprometia a não tomar nenhuma medida que reduzisse a disponibilidade dos recursos hídricos do Nilo que fluem para o Egito. Este tratado atua como um reconhecimento legal de que a Etiópia não deveria ter construído a barragem.

No entanto, dado que o Egito era um protetorado britânico no momento do tratado, não fica claro se pode reclamar ser um terceiro beneficiário do tratado ou se a independência do Egito converteu o país numa nova entidade política e os tratados negociados em seu nome pela Grã-Bretanha ficaram anulados. De facto, este foi precisamente o argumento legal de Gamal Nasser quando nacionalizou o Canal de Suez em 1956, de propriedade e construído pela Companhia do Canal de Suez, uma companhia britânico-francesa.

Posteriormente, em 1929, Egito e Grã-Bretanha (que representava o Sudão) subscreveram o Tratado Anglo-Egípcio que não só garantiu a hegemonia do Egito sobre as águas do Nilo, mas também, mais importante, deu-lhe o poder de veto sobre qualquer projeto a montante do rio. No Tratado do Nilo de 1959, Egito e Sudão acordaram partilhar as águas permitindo uma cota de 55 mil mmc ao Egito e 18500 mmc ao Sudão, com apenas 10 mil mmc que se evaporam da barragem de Aswan. No entanto, este acordo entre os dois países alcançou-se sem nenhuma participação ou consideração dos direitos dos outros países do Nilo à montante (Burundi, República Democrática do Congo, Egito, Etiópia, Eritreia, Quénia, Ruanda, Sudão do Sul, Sudão, Tanzânia e Uganda). Por isso, a situação não é clara, especialmente dado que historicamente a Etiópia foi excluída durante mais de um século de qualquer discussão sobre o Nilo, ainda que este nasça nas suas montanhas sendo por isso o país que corre menos riscos.

Até há pouco tempo, o plano da Etiópia era encher a barragem da GERD durante a época de chuvas em julho e agosto. A barragem está situada no Nilo Azul, o principal afluente do rio Nilo, e constitui o maior projeto hidroelétrico de África. Rapidamente irá produzir seis mil megawatts de eletricidade, o que é mais que o dobro da atual produção da Etiópia, que atualmente abastece um país onde metade da sua população não tem acesso a eletricidade, para além de que o excesso de eletricidade produzida poderia ser vendida ao Sudão e ao Egito. A Etiópia considera que com a cooperação destes dois países, a barragem poderia gerar riqueza económica para toda a região.

No entanto, o Egito, que depende do Nilo para obter 90% da sua água potável, vê a barragem como uma ameaça existencial que afogará grande parte do abastecimento da água que tanto precisa o país. Já em 2010, quando se anunciou a construção da barragem, o governo do Cairo ponderou a sabotagem, o que incluía bombardeá-la, o que faria igualmente com qualquer outra barragem que a Etiópia pudesse construir.

Contudo, há suspeitas de sabotagem de ambos lados. O mês passado a Etiópia acusou o Egito de lançar ataques cibernéticos a inúmeros sites do governo etíope para interromper o projeto e ambos acusam mutuamente de sabotagem nas conversações e de bloquear estudos independentes para avaliar o impacto da GERD. O Egito solicitou aos Estados Unidos que participassem numa mediação no ano passado, o que levou a negociações durante um período de quatro meses em Washington, mas que finalmente se interrompeu em fevereiro.

Estima-se que no seu primeiro ano, a GERD vai reter 4.900 milhões de metros cúbicos de água, enchendo a parede da barragem até ao seu ponto mais baixo, o que vai permitir à Etiópia testar o primeiro conjunto de turbinas. O fluxo anual total do Nilo Azul é aproximadamente de 49 mil mmc. Durante a época seca, o lago vai recuar, o que vai permitir construir o muro da barragem. Durante o segundo ano vai-se reter outro 13500 mmc. Neste momento, o nível da água terá alcançado o segundo conjunto de turbinas que cronometram o fluxo da água e que se possam gerir com maior precisão.

O principal impedimento para manter a operação da GERD indefinidamente é a sedimentação do depósito. Devido ao seu grande tamanho hidrológico, essencialmente todo o sedimento que ingressa na barragem GERD ficará retido, a menos que se possa libertar através de correntes de densidade turba. Dada a importância nacional do projeto GERD como fonte sustentável de energia, junto com as consequências económicas e sociais do uso da terra degradada na bacia, a gestão da terra para reduzir a erosão vai ter como resultado benefícios a longo prazo em múltiplos níveis.

Dada a quantidade recente de sedimentos reportada pela estação sudanesa de El Diem, e estimando um peso específico da ordem de 1.0 t/m3 para depósitos de sedimentos, supõe-se que a capacidade de armazenamento não ativo da barragem seja suficiente para reter aproximadamente 100 anos de sedimento. Este é um critério de construção convencionalmente aceite, mas não resulta numa sustentabilidade a longo prazo. Em barragens de grande capacidade, como a GERD, os métodos passíveis de gestão de sedimentos limitam-se tipicamente à libertação de correntes de densidade turba e à redução da entrada de sedimentos através da gestão de bacias hidrográficas. Este último enfoque é o tema de um estudo de caso que se centra na exploração da bacia hidrográfica Debre Yakob na sub-bacia do lago Tana.

Não houve um acordo nas negociações sobre a mega-barragem depois de quase uma década de conversações entre o Egito e a Etiópia, com o Sudão preso no meio. No ano passado o Egito procurou a intervenção dos Estados Unidos, o presidente egípcio Abdel-Fattah al-Sisi solicitou que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, mediasse o conflito. A Etiópia foi inicialmente reticente em aceitar. Estados Unidos e o Banco Mundial envolveram-se, mas não conseguiram que a Etiópia validasse um documento acordado com o Egito em fevereiro. Quando os Estados Unidos disse que a barragem não deveria acabar-se sem acordo, Etiópia acusou a superpotência de ultrapassar o seu papel de observador neutro. A União Africana (UA) declarou que vai tentar encontrar uma solução.

As negociações entre Cairo, Cartum e Adis Abeba para partilhar as águas do Nilo interromperam-se mais uma vez, quando a época de chuvas começou já na Etiópia. As águas do Nilo Azul já estão a subir, o que permite que a Etiópia comece a encher parcialmente a grande barragem da GERD. Para cumprir o prazo segundo o qual a maior barragem de África começaria a produzir energia hidroelétrica em 2023, a Etiópia precisa de inundar parcialmente a albufeira este verão para testar duas turbinas durante a época de chuvas, que dura só quatro meses.

Depois dos três países terem participado numa cimeira de emergência da União Africana em junho, a Etiópia combinou não encher a GERD, apesar das suas declarações anteriores. Na cimeira, os líderes destes três países, o presidente Abdel Fattah Al-Sisi, o primeiro ministro Abdalla Hamdouk e o primeiro ministro Abiy Ahmed, acordaram retomar as negociações suspensas e formar uma comissão de especialistas que finalizaria um acordo vinculativo sobre a controversa barragem dentro das próximas semanas.

Se bem que tenha havido relatos de que a Etiópia encheu a barragem na semana passada; Seleshi Bekele, ministro da Água e Regadio da Etiópia, negou-o e clarificou que havia “piscinas naturais” na barragem devido às chuvas. No entanto, o Ministério do Regadio do Sudão declarou na quarta-feira passada que os níveis da água na sua estação de al-Dayem no Nilo Azul mostram uma redução de 90 milhões de metros cúbicos por dia que efetivamente “confirmam o encerramento das comportas da barragem”.

Em qualquer caso, os egípcios estão furiosos porque a Etiópia tem a intenção de seguir em frente sem o seu acordo. Para eles, o Nilo é questão de vida ou de morte, já que o Egito é principalmente um deserto. 95% dos seus 85 milhões habitantes vivem ao longo das margens e do delta do rio, o Nilo é uma questão de sobrevivência. O governo do Cairo argumenta que se a GERD seguir em frente de acordo com os planos atuais da Etiópia, deixará sem trabalho a cinco milhões de agricultores, vai reduzir a produção agrícola do país para a metade e vai desestabilizar ainda mais um país que atualmente luta contra uma insurgência islâmica e procura mitigar os estragos nas suas plantações de arroz, de cana de açúcar na região do delta norte, já danificadas pela intromissão da água salgada do Mediterrâneo.

Depois de uma década de negociações com uma variedade de mediadores, inclusive a administração Trump, estes países não conseguiram encontrar uma solução acordada. As conversações da semana passada foram mediadas pela União Africana e observadas por funcionários norte-americanos e europeus e, de maneira similar, não terminaram num resultado claro. Dado que a Etiópia rejeita a arbitragem vinculativa na etapa final, esta situação poderia levar a um iminente conflito militar.

 

Julian Vigo é uma académica, realizadora de cinema e consultora de direitos humanos. O seu último livro é “Earthquake in Haiti: The Pornography of Poverty and the Politics of Development”. Escreve para sites como o Dissident Voice, Black Agenda Report, The Morning Star, The Ecologist, HuffPost UK e o CounterPunch. A versão original deste texto foi publicada nesse site.

Texto traduzido a partir da versão espanhola, publicada no Rebelión, por Diego Garcia para o Esquerda.net.

Termos relacionados Internacional
(...)