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"Imigração deve ser incentivada e não combatida"

Em entrevista ao Esquerda.net, Carlos Henrique Vianna, co-fundador e ex-presidente da Casa do Brasil de Lisboa, apontou algumas debilidades do Relatório Estatístico Anual 2020 - Indicadores de Integração de Imigrantes. Por Mariana Carneiro.
Carlos Henrique Vianna, co-fundador e ex-presidente da Casa do Brasil de Lisboa. Foto da página de facebook da Casa do Brasil - Arquivo.

O Observatório das Migrações (OM), equipa de projeto do Alto Comissariado para as Migrações, publicou em dezembro o Relatório Estatístico Anual 2020 - Indicadores de Integração de Imigrantes. A propósito deste documento, o Esquerda.net entrevistou Carlos Henrique Vianna, co-fundador e ex-presidente da Casa do Brasil de Lisboa.

O Observatório das Migrações tem feito um trabalho de recolha, sistematização e análise de informação estatística e administrativa respeitante ao fenómeno da imigração. Qual a importância deste trabalho para a construção de políticas de integração de imigrantes e para o associativismo imigrante?

O trabalho do OM é de grande importância, não só o que está indicado na pergunta, mas também o apoio financeiro ao trabalho de muitos investigadores.

A Casa do Brasil fez em 2002 um levantamento sociográfico da comunidade brasileira que tinha chegado mais recentemente nos anos anteriores, a chamada segunda vaga. A amostragem foi de 400 indivíduos, na região da grande Lisboa. Este trabalho foi publicado na revista da OM, então OI, e serviu de referência para muitos autores, pois nenhuma pesquisa de campo com uma amostragem similar tinha sido feita até então.

A Casa do Brasil desde sempre relacionou-se com a Academia, quer portuguesa quer brasileira. Promoveu o I Simpósio Internacional sobre a Emigração Brasileira, em outubro de 1987, juntamente com a Universidade de Campinas e o Consulado do Brasil em Lisboa. Foi um marco fundamental para as atividades de investigação na comunidade académica brasileira.

Sem ciência, sem conhecimento, as políticas públicas estariam parcialmente cegas. Mas nas ciências humanas, a participação ativa das populações objeto das pesquisas é fundamental. Do contrário, pode prevalecer um certo isolamento académico, a ilusão de que é possível apreender o mundo só através do estudo.

Ainda há quem se empenhe em criar um discurso anti-imigração, alegando que os imigrantes vêm para Portugal tirar o emprego a quem cá está e que são subsídio dependentes e desfalcam a Segurança Social. Os Indicadores de Integração de Imigrantes do Relatório Estatístico Anual 2020 não desmentem todo esse argumentário?

Não só deste Relatório, como também de muitos estudos específicos, quer a nível do superavit na Segurança Social, das taxas pagas ao SEF (110 milhões em 2020, aproximadamente), do impacto da imigração no mercado imobiliário de venda e aluguel de imóveis, na criação de centenas de novas empresas, na contribuição na cultura, gastronomia, desporto, enfim Portugal hoje é muito diferente da década de 80, quando a imigração era bem pouca.

Ainda que sublinhe a importância deste documento, tem vindo a apontar algumas insuficiências e omissões, nomeadamente no que respeita à definição do universo de imigrantes em Portugal. Quais são essas omissões?

Observei no Relatório a não inclusão no universo de imigrantes em Portugal de outros subconjuntos conhecidos e quantificáveis ou estimáveis, tais como:

- estrangeiros residentes que obtiveram a nacionalidade nos últimos 13 anos, pelo menos, desde a alteração da Lei em 2007, quer por naturalidade, quer por obtenção de nacionalidade. Tecnicamente já são nacionais, mas sociologicamente são imigrantes.

- estrangeiros residentes que estão à espera da autorização de residência ( subconjunto a que chamo a “fila do SEF” e que são muitos milhares, perfeitamente quantificáveis).

- estrangeiros residentes que estão à espera da nacionalidade (subconjunto a que chamo a “fila da Conservatória” e que são igualmente muitos milhares, perfeitamente quantificáveis.

- estrangeiros ainda não residentes mas que estão à espera de vistos de residência por diversos motivos a serem concedidos nos consulados (subconjunto a que chamo a “fila do MRE”)

- estrangeiros residentes, trabalhadores em situação legal precária na maioria dos casos, como tantos que trabalham na agricultura, de difícil quantificação, mas podem ser razoavelmente estimados.

Tem referido também que o estudo não faz qualquer menção aos milhares de estrangeiros cuja entrada em Portugal é recusada. Perante casos como o de Ihor Homenyuk, que tipo de informação deveria ser incluída no relatório?

Pelo menos os dados contidos a este respeito pelo Relatório Anual do SEF, mas também considerações sobre as razões das recusas. Deveria ser permitido aos investigadores do OM o acesso aos documentos do processo de recusa. O SEF coage os “recusados” a assinar um documento padrão. Os investigadores deveriam contactar uma pequena amostragem dos “recusados” para ouvir a sua versão dos factos, já que só temos os números frios do SEF. Muitas recusas não o seriam, caso houvesse um plantão permanente de advogados mandatados pela Ordem para estarem presentes nos interrogatórios e agirem em favor dos “recusados”.

O Observatório das Migrações dá um relevo significativo à questão dos refugiados. Considera que a abordagem que é feita no documento é a mais adequada?

O relatório debruça-se por quase 20 páginas na questão dos refugiados. Uma questão crucial a nível europeu mas francamente pouco relevante em Portugal. Faz-se muita política e declarações de ações generosas por parte do Estado Português, mas o facto indiscutível é que o número de refugiados em Portugal é mínimo e grande parte dos que aqui chegam nesta condição acabam por ir para outros países. Gasta-se muito, em recursos e discursos, para um resultado medíocre em termos numéricos. Acho desproporcional a atenção do relatório para esta questão.

O relatório revela uma diminuição de inscritos no recenseamento eleitoral de nacionalidades extracomunitárias com direitos de voto. No seu entender, que fatores podem estar na origem desta realidade?

Os fatores são vários.

Na importante questão da participação política dos imigrantes falta ao relatório mais dados e também algum posicionamento dos partidos políticos. Há aqui matéria a ser aprofundada. Há anos eu faço uma proposta no sentido de que o recenseamento eleitoral seja obrigatório para os imigrantes que têm direito a votar nas autárquicas. Isto seria uma maneira de induzi-los a votar. Como não é obrigatório, como era antigamente para os portugueses, somente uma minoria se recenseia. Há um claro desinteresse por parte dos partidos na participação política dos imigrantes. É o que explica a falta de vereadores representativos dos imigrantes e minorias étnicas nas câmaras onde são um número expressivo, como Amadora, Loures.

Mas a incapacidade de mobilização das associações e o baixo nível cultural e de sentimento de pertença também contam. O trabalho de consciencializar deveria ser feito já nas escolas e os partidos deveriam propor candidatos representantes destas minorias, sejam portugueses de origem extra-comunitária, sejam não-nacionais residentes com autorização de residência.

Que outros apontamentos lhe merece o Relatório Estatístico Anual 2020 de Indicadores de Integração de Imigrantes?

Apesar de me congratular com a extensão e riqueza de dados do relatório, fruto seguramente de muito trabalho e colaboração de muitas entidades envolvidas, não posso deixar de colocar algumas reservas no que toca a omissões importantes.

Há indicadores não apontados no relatório e que refletem problemas e deficiências na integração dos imigrantes. Um relatório como este não pode privilegiar os indicadores positivos em detrimento dos negativos.

Os autores dos relatórios deveriam dialogar com as associações de imigrantes, para que sejam colocadas linhas de investigação de interesse para aquelas.

Um exemplo de um erro “academicista” do relatório 2020 é o visualizado no gráfico gráfico 2.1 (pg.34), cujas conclusões daí inferidas pela autora são em grande desmentidas pelo gráfico seguinte, de nº 2.2. A maioria das AR são concedidas por motivo de trabalho subordinado. Não há como inferir tendências a partir da decomposição dos dados de vistos de residência. A maioria das AR são concedidas sem um correspondente visto de residência.

É de justiça assinalar que o estudo faz uma boa discussão da Lei da Nacionalidade, que possibilitou uma explosão de pedidos e concessões desde 2009, quando foi regulamentada. Bem como sua relação com o défice demográfico de Portugal. Tal assunto deveria ser mais discutido, pois este problema estrutural do país só será superado pela combinação do aumento de novos cidadãos com aquisição de nacionalidade também pela Imigração, que deve ser incentivada e não combatida com tantas recusas de entrada.

A crise pandémica atingiu toda a população, mas não com a mesma intensidade. Considera que está a ser assegurada a devida monitorização, bem como o acompanhamento, dos impactos da pandemia entre as comunidades imigrantes? E estão a ser implementadas no terreno as medidas necessárias para minimizar esses mesmos impactos?

Não há medidas específicas para minimizar os efeitos da crise nas comunidades imigrantes. O que existe são as medidas gerais tomadas pelo governo. Há muita informalidade de trabalho nas comunidades e não há acesso às medidas de apoio previstas, algumas das quais não saíram do papel. No caso dos brasileiros, o fechamento do comércio, em particular hotelaria e restauração, é particularmente grave.

Há centenas de famílias de imigrantes a socorrem-se dos auxílios alimentares. A ALCC [Associação Lusofonia Cultura e Cidadania] tem feito um trabalho meritório neste caso particular.

Sobre o/a autor(a)

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Mestranda em História Contemporânea.
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