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Huawei excluída do Android, início de uma guerra fria tecnológica?

A administração Trump colocou a Huawei numa lista negra comercial, forçando a Google a excluí-la do acesso novas versões do sistema Android. Decisão pode representar o início de uma nova "guerra fria tecnológica".
Edifício-sede da Huawei em Shenzhen, China. Foto de Brücke-Osteuropa/Wikimedia Commons.
Edifício-sede da Huawei em Shenzhen, China. Foto de Brücke-Osteuropa/Wikimedia Commons.

A Google restringiu o acesso da Huawei ao sistema operativo Android, numa escalada sem precedente na guerra comercial entre os EUA de Donald Trump e a China. Na quinta-feira passada, a administração Trump colocou a Huawei numa lista negra empresas que os EUA consideram um risco de segurança, impondo restrições às empresas americanas que lhe fornecem produtos e serviços. No seguimento da ordem presidencial, a Google suspendeu o acesso da Huawei às componentes fechadas do sistema Android.

Enquanto a restrição se mantiver, os telemóveis Huawei que se vendam daqui para a frente podem deixar de ter acesso a aplicações básicas da parte fechada do sistema Android, como o Google Maps, GMail, ou Youtube, bem como às atualizações de aplicações que chegam através da Google Play Store.

O segundo maior fabricante de telemóveis do mundo vê assim seriamente ameaçada a sua atividade fora da China. Em 2018, a Huawei ultrapassou a Apple e tornou-se no segundo maior vendedor mundial de telemóveis, com cerca de 208 milhões de unidades vendidas. Cerca de metade das unidades vendeu-se na China, a Europa é o segundo maior mercado da empresa. À sua frente a nível mundial resta apenas a coreana Samsung. Para além dos telemóveis, a Huawei é líder nos equipamentos usados pelas operadoras de redes móveis, setor onde também tem estado sob ataque da administração americana, que tem pressionado governos de todo o mundo para a banir das suas redes.

Para entender as implicações do embargo americano é preciso conhecer a estrutura do Android, o sistema operativo dominante para telemóveis. Na base do Android está o Linux, sistema operativo aberto criado por Linus Torvalds em 1991. O Linux é software livre, o que significa que qualquer pessoa pode obtê-lo gratuitamente e estudar, adaptar e redistribuir o seu código — ao contrário de software fechado como o Windows, o Mac OS, ou o Microsoft Office. O acesso livre ao código permite também que qualquer pessoa o audite para falhas de segurança ou comportamentos maliciosos, o que torna o software livre mais seguro.

A gratuitidade, abertura e segurança tornaram o Linux dominante em setores como as grandes empresas, a investigação científica, as administrações públicas. Companhias como o Facebook e a própria Google têm grande parte dos seus sistemas a correr Linux, o que lhes permite poupar custos e adaptar os sistemas para as suas necessidades específicas. Muitos Estados adotam o Linux por razões de segurança. Mas a gratuitidade e abertura do Linux dificultam a sua apropriação como mercadoria e fonte de lucro, pois qualquer empresa pode distribuir o sistema sem restrições.

Com o Android, a Google conseguiu contornar este problema de monetarização acrescentando em cima do Linux componentes fechados fundamentais para o funcionamento do sistema, como o Google Play Store (através do qual se instala e atualiza as aplicações externas), o Google Maps ou o Gmail. Uma empresa que queira vender telemóveis Android com estes componentes precisa de adquirir uma licença à Google, e poucos utilizadores têm interesse num telemóvel sem eles. Tecnicamente, é possível a um utilizador instalar estes componentes por si próprio, mas a maioria não se dá a esse trabalho pois o procedimento é complexo, além de ser de legalidade duvidosa. Com os anos, a Google tem aumentado a parte fechada do Android em detrimento da parte aberta, exercendo um controlo cada vez mais restritivo sobre a plataforma.

O embargo americano, ao excluir os telemóveis Huawei futuros da Google Play Store e das aplicações Google, torná-los-á inúteis para a maioria dos consumidores ocidentais que dependem desses serviços — na China, os telemóveis foram sempre vendidos com serviços alternativos à Google.

Por enquanto, segundo a Google, os telemóveis Huawei continuam a poder instalar e atualizar aplicações, estando apenas excluídos de receber novas versões do Android. Adicionalmente, fabricantes de chips americanos como a Intel e a Qualcomm (processadores) ou a Broadcom (chips wi-fi) ficam também sujeitos a severas restrições nos fornecimentos à Huawei. Esta restrição deverá todavia ser menos problemática para a empresa chinesa, que tem capacidade de fabrico própria nessas áreas.

A Huawei com efeito já se vinha preparando para o embargo que agora se concretizou: segundo o South China Morning Post, nos últimos tempos reforçou a sua capacidade de fabrico próprio, acumulou chips externos, e acelerou o desenvolvimento de um sistema operativo próprio. A empresa chinesa reagiu para já com cautela, anunciando que continuará a atualizar o software dos seus aparelhos e a fornecer assistência técnica.

Um embargo desta dimensão constitui um golpe sem precedente em todo o sistema de comércio global que se instituiu a partir da década de 1980, prenunciando para muitos analistas uma nova era de "guerra fria tecnológica". Por enquanto, o ministério dos negócios estrangeiros chinês disse apenas que apoiará as empresas chinesas "na defesa dos seus direitos legítimos através de métodos legais". Se o embargo se prolongar, é difícil imaginar que as autoridades chinesas não venham a retaliar sobre empresas americanas na China. A Apple, que tem na China o seu terceiro maior mercado, seria um alvo óbvio.

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