O Hospital Miguel Bombarda, com entrada na Rua Cruz da Carreira, foi o primeiro hospital psiquiátrico do país. Situado no centro de Lisboa, o espaço que agora está encerrado começou como Quinta Rilhafoles, chegou a ser Colégio Militar e Congregação da Missão dos Padres de São Vicente de Paulo, sendo designado como “hospital de alienados” a partir de 1848
Foram lá construídos os balneários D. Maria II para banhos terapêuticos, inaugurados pela própria rainha, em 1853. Em 1892 é nomeado Miguel Bombarda para diretor do hospital, e o seu trabalho acabará por ter tal impacto que mais tarde o hospital psiquiátrico tomará o seu nome.
No passado fim-de-semana, dezenas de pessoas voltaram ao antigo hospital psiquiátrico, que encerrou em 2011, para perceber melhor a história daquele espaço. A história foi contada por Ana Paula dos Santos, bibliotecária do Hospital Júlio de Matos e membro de um pequeno grupo que está a tentar preservar a memória do Hospital Miguel Bombarda.

O espaço daquela imensa quinta tocava muros com o Hospital dos Capuchos, mas agora há uma distância considerável entre ambos. “Tal não é o espaço que a cidade roubou à Quinta Rilhafoles”, diz Ana Paula. O espaço, que foi mudando de nome várias vezes (chegou a ser “Manicómio Miguel Bombarda”), teve como primeiro diretor Caetano Beirão, quinto Presidente da Sociedade das Ciências Médicas de Lisboa.
Quando Miguel Bombarda assume o espaço, estava “sobrelotado e decrépito” garante a bibliotecária. Mas o médico começou a pedir dinheiro e conseguiu construir mais edificado e reabilitar o existente, proporcionando mais condições aos pacientes.
Bombarda não só era médico, mas também revolucionário. Defensor da República, membro da Junta Liberal e pensador da revolução de 5 de outubro de 1910. Foi assassinado por um paciente no seu gabinete, naquele mesmo hospital, em vésperas da revolução, a 3 de outubro. A sua morte forçou os líderes republicanos a reunir de emergêmcia, com a proposta de adiar a revolução. Uma ideia que só foi rejeitada devido ao almirante Cândido Reis, que terá defendido que “a Revolução não será adiada”.
A instituição torna-se Hospital Miguel Bombarda em 1948, e inicialmente só alberga mulheres. A 9 de janeiro de 1950, os homens são transferidos do São José para aquele lugar. “Vieram em grupos de 15 e 20, de forma ordeira”, explica Ana Paula. “As pessoas que os viam passar não sabiam que eram doentes”.
E assim permaneceu até ao século XXI. Depois do seu encerramento, o espaço manteve-se fechado, numa lenta degradação. Isto é, até 2024, quando a cooperativa Largo Residências entrou pelas portas da Rua Gomes Freire, os seus membros decididos a tornar um espaço abandonado num novo centro cultural para a cidade, dando novamente vida a uma pequena parte do património do antigo hospital Miguel Bombarda.
Panótico, património classificado
“O Edifício circular - uma gaiola de ferro, envidraçada - uma lanterna de vidro do tamanho de Ranelagh. Os prisioneiros nas suas celas, ocupando a circunferência. Os oficiais, o centro. Por meio de persianas e outros artifícios, os inspectores escondiam-se da observação dos prisioneiros: daí o sentimento de uma espécie de omnipresença invisível. Todo o circuito pode ser revisto com pouca, ou, se necessário, sem nenhuma, mudança de lugar”.
É assim que Jeremy Bentham descreve o panótico em Panótico, ou a Casa de Inspeção. É uma nova arquitetura de prisão – de sua invenção - que permite a vigilância quase constante dos prisioneiros. Um edifício circular, onde as celas se situam nas circunferências e os guardas no centro, permitindo a observação dos prisioneiros.

No Hospital Miguel Bombarda, um destes edifícios foi construído ainda durante a direção de Miguel Bombarda, com o nome de Pavilhão de Segurança, destinado aos pacientes de maior risco, para suposta segurança dos próprios. Mas Michel Foucault, que analisou a fundo a arquitetura do modelo panótico, teceu-lhe críticas a esse propósito. O modelo funciona porque impõe uma espécie de auto-vigilância aos prisioneiros. Isto é, ao acharem que estão permanentemente a ser observados, são forçados a comportar-se como se isso fosse verdade, mesmo que não o seja.
O panótico do Miguel Bombarda é composto por 26 celas. Uma casa de reunião, um refeitório, uma retrete, uma casa-de-banho e uns lavatórios. Tudo parte da circunferência. No centro, um pátio com o que deveria ter sido relva e um árvore solitária. Todo o espaço a que os pacientes/prisioneiros teriam acesso durante a sua estadia.
LGBTQI+
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Valentim de Barros, bailarino
Ana Paula e a equipa do Largo Residências e do centro cultural Jardins do Bombarda lideraram a excursão ao edifício, com quartos-cela abertos e uma exposição montada no refeitório. O fim-de-semana no centro cultural, que ocupa uma parte do antigo hospital é dedicado à abertura da sala-estúdio Valentim de Barros, em parceria com o Teatro Nacional D. Maria II.
O nome é uma homenagem ao primeiro bailarino internacional português. Valentim de Barros foi institucionalizado do hospital Miguel Bombarda em 1939 e lá terá permanecido durante quase 40 anos, até à sua morte. O seu diagnóstico: homossexualidade.

Antes disso, assistiu ao eclodir da guerra civil Espanhola enquanto trabalhava para uma companhia internacional de bailado. Viveu em Génova e em Marselha, mas mudou-se para a Alemanha, onde terá atuado em várias cidades, com os registos mais consistentes em Estugarda. Aí vivenciou a ascensão do regime nazi de Hitler. Foi expulso e repatriado, mas voltou à Alemanha, sendo repatriado novamente em 1939. Ao voltar a Portugal nesse ano, foi internado pela sua mãe no hospital psiquiátrico. Teve alta várias vezes, mas acabou sempre reinstitucionalizado. Em 1949 foi submetido a uma lobotomia, e lá ficou permanentemente, tendo sido sujeito a terapia de eletrochoques.
Numa conversa dentro do panótico, a propósito do Tributo ao Valentim organizado pelo Largo Residências e pelo Grupo de Voluntários de Inventariação do Hospital Miguel Bombarda e da Unidade Local de Saúde S. José, o dramaturgo André Murraças chamou a essa parte da sua vida, uma “epopeia”. Certo é que, depois do seu internamento, Murraças descreve uma “tragédia”.
Em Portugal, a homossexualidade foi considerada crime até 1982, deixou de ser doença classificada na CID em 1990, Valentim de Barros morreu em 1986. Teve alta em 1974, mas permaneceu no hospital por não ter membros familiares que o acolhessem, circulando livremente pela cidade.
Também presente na conversa, o ex-administrador do Hospital Miguel Bombarda, José Reis Oliveira, lembrou o Valentim de Barros que conheceu pessoalmente, uma figura afável mas com momentos de raiva. Uma figura não sem as suas contradições.
Fazia bonecas no seu quarto-cela, construia-as sempre com os pés em posição de bailarina. Assinava sempre com Bailarino Valentim de Barros. Viveu cerca de 50 anos internado, pintou, bordou e escreveu poesia. Chegou a encenar e protagonizar espetáculos no Hospital Miguel Bombarda, no espaço que agora foi requalificado e que dará espaço à Sala-Estúdio Valentim de Barros.