LGBTQI+

“Havia uma homofobia gritante na forma ideológica do Estado Novo”. Entrevista a António João

15 de março 2025 - 17:26

O Estado Novo usava a repressão, a vigilância e a punição para perseguir e ocultar a homossexualidade. Em entrevista ao Esquerda.net, o autor de Homossexualidade no Tempo de Salazar fala sobre os impactos dessa política na sociedade.

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António João
António João, autor de Homossexualidade no Tempo de Salazar.

A perseguição e repressão de pessoas homossexuais durante o Estado Novo é ainda hoje tema de debate. Com bases na Primeira República, a perseguição aumentou e intensificou-se durante a ditadura, consolidando aí uma forma de discriminação que se mantém até 1982.

António João investigou essa repressão e perseguição, e publicou o resultado nas Edições Colibri, num livro com o título A Homossexualidade no Tempo de Salazar. Em entrevista ao Esquerda.net fala sobre o início da perseguição às pessoas homossexuais, os mecanismos jurídicos e de vigilância empregues pelo Estado Novo e os vários impactos que essa perseguição teve na vida das pessoas. 


Que antecedentes existem para a homofobia antes do Estado Novo?

Há várias opiniões sobre quando começa a homofobia em Portugal. Eu sou da opinião que começa quando surge o termo “homossexualidade”. E a homossexualidade começa a surgir nesses termos na segunda metade do século XIX. Até então havia outros termos relacionais homoeróticos, como sodomita, invertido, sáfica. Mas se nós olharmos para uma identidade com as especificidades que ela abrange, o homossexual só aparece nessa altura e num ambiente em que o sexo entre pessoas do mesmo sexo é criminalizado. Isso aconteceu pela Europa fora e sobretudo na Europa Ocidental. As relações entre pessoas do mesmo sexo começaram a ser encaradas como uma doença. Na Alemanha tenta-se criminalizar e é nessa altura que surge o termo “homossexualidade”.

Como é que essa patologização e criminalização da homossexualidade se desdobra em Portugal?

Cá, temos dois médicos que se destacam logo no início do século XX. O primeiro é Asdrúbal de Aguiar, Presidente do Instituto de Medicina Legal, e o famoso Egas Moniz. Ambos escreveram sobre o tema. Egas Moniz dizia que a homossexualidade é uma patologia e tinha um conservadorismo ideológico. Dizia que os homossexuais não procriam – portanto não cumprem o seu papel – e isso é também algo de natureza criminosa. E chegou a propor vários tratamentos para a homossexualidade, incluindo a psicanálise. Asdrúbal de Aguiar não considera a homossexualidade uma doença, para ele é algo inevitável. Mas distingue dois tipos de homessexualidade, o verdadeiro e o falso. A homossexualidade verdadeira tem implícita a passividade, ou seja, os homossexuais que o eram incontrolavelmente, tendencialmente vistos com linguagens corporais associadas ao feminino. Depois havia a homossexualidade falsa, daqueles que, segundo o próprio, “lá iam parar por intrínseca devassidão”. Homens ou mulheres que eram por questões económicas ou por devassidão do meio em que viviam.

O Estado Novo vai depois construir sobre essas teorias?

Sim, todas estas teorias em volta da homossexualidade vigoraram durante o Estado Novo e foram utilizadas como referência para os médicos que se seguiram, apesar de nem sempre em acordo. Mas o Estado Novo segue um caminho já traçado de criminalização da homossexualidade. O regime de Salazar limitou-se a continuar aquilo que já estava a acontecer, introduzindo a imagem do “Homem Novo”, que é viril e masculino. Tudo o que não fosse nessa direção, era para pôr na margem. A ditadura veio tornar as leis mais elaboradas, porque vinham ainda muito em bruto da Primeira República e veio também construir e designar sítios próprios onde colocar os homossexuais, para os tirar da vista do público.

Como é que a política do Estado Novo sobre a homossexualidade se traduziu a nível cultural?

Havia na forma ideológica do Estado Novo uma homofobia gritante. Claro que não era conceptualizada assim. A ideia do “Homem Novo” e a Mocidade Portuguesa também masculinizava os miúdos desde novos, e diziam que um homem, para ser homem do Estado Novo, “não poderia aderir às ideologias diabólicas do comunismo”. Houve essa tentativa indireta, de desvirilizar o comunismo e de feminilizar o homem que seguisse o comunismo, ou seja, era tudo condensado no mesmo vaso. Portanto, havia uma intenção do Estado, havia uma intenção também dos diferentes poderes do Estado, havia uma narrativa alargada sobre o assunto, e estamos a falar de uma época altamente conservadora, com o ressurgimento do catolicismo depois da Primeira República.

Como é que esse aparato político, legislativo, cultural e repressivo vai condicionar a vida das pessoas homossexuais?

Desde essa altura, a homossexualidade é sempre equiparada a porcaria, sujidade, vergonha, delinquência. Em 1912 é passada a Lei da mendicidade, que já tratava a homossexualidade através dos vícios contra a natureza. Com pena na prisão correccional de um mês a um ano, mas só em 1936, já com o Estado Novo, é que a vadiagem é configurada como sendo perigosa. Perigosos por causa do medo que havia do contágio. Isso só foi possível com a criação da figura penal das medidas de segurança, ou seja, não precisavam de ser apanhados em pleno ato para que fossem sujeitos a medidas de segurança. Por exemplo, havia um senhor que era conhecido como “Paulo, o maricas”. As linguagens corporais dele eram associadas ao feminino, teve várias complicações. Foi várias vezes detido apesar de não ser apanhado em ato flagrante, porque o que se criminalizavam era as práticas sexuais homossexuais. O Paulo passeava muitas vezes no Parque Eduardo VII, em Lisboa. Tem um processo ao qual eu tive acesso, que explica que foi detido e sujeito a medidas de segurança simplesmente por parecer ser homossexual.

Esse tipo de casos implica uma vigilância muito forte. Que mecanismos é que a polícia do Estado Novo usava para perseguir estas pessoas?

Essa pergunta é interessante porque nos permite abordar uma das figuras mais interessantes da época: os arrebentas. Na altura o engate era feito nas ruas, as pessoas iam para os urinóis, para os cinemas, para os bancos, por aí fora. O urinol era muito frequentado por homens homossexuais e havia alguns que eram conhecidos como locais de engate. Os arrebentas iam a esses locais e faziam-se passar por homossexuais para depois poderem chantagear essas pessoas. Uns chegavam a concretizar o ato, outros chegavam à pré-concretização e faziam a chantagem. Muitos desses arrebentas eram pessoas de rua, não tinham nada a perder, enquanto muitas das pessoas com as quais eles se envolviam eram casadas com filhos, alguns até com destaque social. Bastava a ameaça de uma queixa à polícia para ter sucesso na chantagem. Muitos arrebentas tinham algum tipo de conluio com a polícia, no sentido em que a polícia fechava os olhos porque eles acabavam por ser uma espécie de informadores gratuitos.

E relativamente à polícia propriamente dita?

Sim, havia a própria vigilância efetuada pela Polícia Judiciária. No arquivo da PJ tive acesso a um documento interessantíssimo, cujo título é “Vigilância da PJ à homossexualidade”. O que costumavam fazer é vigiar à paisana as ruas onde sabiam que havia muitos encontros. Também vigiavam junto aos estabelecimentos de ensino secundário, porque consideravam que havia alguns sujeitos eventualmente homossexuais que podiam desviar os jovens. Há também casos de chantagem na própria sociedade, e isso está intimamente ligado à vigilância. Se alargarmos o conceito de vigilância, percebemos que numa sociedade que criminaliza o nosso desejo, o nosso corpo está em constante vigilância. Há uma vigilância das polícias, das pessoas, dos arrebentas, dos vizinhos. Vi um processo de dois amigos, cuja natureza da relação não dá para perceber completamente, mas que viviam juntos. A casa deles partilhava uma parede com a casa do vizinho, e esse vizinho disse que uma noite espreitou pela separação e viu os dois homens deitados nus na cama. Foi para o café do bairro, deu um grande escândalo. Os rapazes quando souberam também foram para a rua, defendendo-se, dizendo que era mentira.

Durante o meio século de ditadura, como é que o contexto jurídico da homossexualidade evoluiu?

Como disse, até 1936 mantém-se a Lei da Mendicidade, a partir dai entra em vigor a Lei da Vadiagem. Os protagonistas da perseguição é que vão sendo alterados. Na Primeira República tínhamos a Polícia de Investigação Criminal, e a partir de 1945 é criada a Polícia Judiciária, que se torna protagonista da perseguição. É criado também o Tribunal de Execução de Penas. Em 1954 a homossexualidade passa a constar no código penal pela primeira vez em Portugal, e manter-se-á até 1982. Lembra-te que já depois da revolução, o Galvão de Melo disse que a revolução não foi feita “nem para putas, nem para paneleiros”. A partir de 1954, o Estado Novo veio exacerbar o preconceito. Há claramente um exacerbar da perseguição, mas a partir do final dos anos 60, pelos processos que me chegaram à mão, parece que a coisa se atenuou um bocado, mas a perseguição nunca deixa de acontecer.

Ainda na lógica da criminalização e perseguição da homossexualidade, podemos falar também um pouco sobre as prisões. Como e em que condições é que o regime de Salazar trancava estas pessoas e as excluía da sociedade?

Temos alguns sítios que são marcantes e que são de grande destaque. Para os homens o Limoeiro, para as mulheres as Mónicas. Temos muita informação sobre os processos judiciais que colocavam as pessoas lá dentro, mas muito pouca sobre a vida dentro dessas prisões. Na Penitenciária de Lisboa temos alguns relatos. Há um caso de 1944, da relação de dois reclusos que tinham sido presos por furto e envolveram-se lá dentro e eu tive acesso a cartas de amor trocadas entre eles. Coisas que diziam um ao outro, como “qualquer dia cometo uma loucura e beijo-te em público", ou “dizemos ao mundo que somos irmãos para que ninguém desconfie da nossa relação amorosa”. Portanto, já começa a aparecer uma proto-possibilidade de estas pessoas encararem ter uma vida em comum. Até aqui era raríssimo. 

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Para além das prisões, há mais algum outro dispositivo prisional ou de saúde onde as pessoas homossexuais fossem detidas?

Havia uma prisão-escola em Leiria. Foi um instituto, um estabelecimento criado para menores de idade receberem um género de educação para evitarem os desvios. Eram uma espécie de casa de correção daquela altura. Houve, por exemplo, um jovem que tinha 16 anos e foi para lá porque constava que ele se envolvia com outros homens. E lá dentro havia uma completa lavagem cerebral para a heterossexualidade compulsória. Perguntaram-lhe as três piores ações que já tinha feito e ele respondeu: furto, vadiagem e homossexualismo. Perguntaram-lhe o maior defeito e ele disse: ser homossexual. Perguntaram-lhe os seus maiores desejos e ele afirmou: casar com uma mulher. 

Há pouco falaste da década de 1960. É a partir dessa década que começa uma resistência mais intensa à ditadura: as crises académicas, a organização dos movimentos estudantis, os movimentos pela libertação das colónias. O socialismo e o comunismo começam a ser temas em discussão entre a juventude. Há algum registo de uma resistência organizada ou espontânea das pessoas homossexuais?

Entrevistei o António Serzedelo e o Miguel Vale de Almeida e o que ambos me disseram foi: em Portugal, as coisas não chegavam. Essas vivências que se viviam lá fora, não chegavam cá. E quando chegavam, chegavam às elites, que tinham algum acesso de viagens que faziam. O meu trabalho, como se centra na pessoa comum, na “pessoa do urinol” e não apanha essas resistências, se as houve. Mesmo nos anos 70, não há uma noção identitária da homossexualidade, as pessoas olhavam para si mesmas como alguém que tem um defeito. Não havia ainda uma tentativa de auto-emancipação, mesmo nas elites. Havia sim uma resistência nas linguagens ocultas que desenvolviam, que só os próprios entendiam. Porque quando estas identidades começam a criar linguagens próprias para se entenderem entre si, começam a criar uma ideia de grupo. É a identidade que se está a começar a formar.

No livro, exploras também a relação dos homens homossexuais com o exército. A que conclusões chegas?

O Cruzeiro Seixas disse-me o seguinte: “Era uma animação quando íamos todos para o Cais do Sodré à espera das gaivotas [os marinheiros, que vinham do branco e vinham do mar]”. O marinheiro era uma figura erotizada, idílica. Depois, militares juntos, fechados, o fruto proibido é o mais apetecido. Divagamos, portanto, sobre a abrangência do desejo. Sobre a questão da perseguição, os militares eram julgados por tribunais militares, a pena ia até dois anos se fossem apanhados com outros homens. Muitos desses militares vinham do interior do país, de zonas fechadíssimas e chegavam a Lisboa, onde tinham contacto com outras ambiências. Abria-se a porta a que muitos militares que eventualmente tinham este desejo homossexual pudessem conhecer outros iguais a eles. Isso reflete-se numa série de casos que encontrei.