“A Herdade” e o atavismo marialva

02 de outubro 2019 - 11:05

O filme recentemente estreado "A Herdade" conta vários dramas, sobretudo o da incapacidade para perceber o sentido da história e das mudanças que, em vésperas do 25 de Abril de 1974, começavam a ganhar uma velocidade inusitada. Por Maria do Carmo Bica

porMaria do Carmo Bica

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"A Herdade" é ficção com muitas ligações a uma realidade histórica contemporânea
"A Herdade" é ficção com muitas ligações a uma realidade histórica contemporânea

Num pequeno e atrasado país europeu de meados do século XX, João Fernandes é dono de um território agrícola a sul do Tejo com 14 mil hectares e, no topo da hierarquia social da época, um dos representantes do atavismo cultural marialva. O filme recentemente estreado "A Herdade" conta vários dramas por ali passados entre 1946 e 1991, pessoais, familiares e sociais, mas sobretudo o da incapacidade para perceber o sentido da história e das mudanças que, em vésperas do 25 de Abril de 1974, começavam a ganhar uma velocidade inusitada.

O latifundiário João Fernandes (representado pelo ator Albano Jerónimo) é uma espécie de senhor feudal. O centro da sua vida é o reino das suas terras ancestrais que lhe dão o poder de tudo controlar, da família aos trabalhadores, passando pelo feitor e até pela GNR. O chamado Estado Novo admira, apoia e protege. Apenas exige reciprocidade e uma declaração de apoio ao regime.

O filme expõe as contradições das relações pessoais e de classe, o sistema brutal de exploração dos trabalhadores agrícolas que, ao longo dos tempos, perpetuou os privilégios de uma casta terratenente que sustentou o fascismo e o atraso social e económico endémicos daquelas terras.

Ao longo das mais de duas horas e meia de filme, a relação de João com a mulher, Leonor (representada pela atriz Sandra Faleiro), é central pela alienação que representa. Preparada pela sociedade patriarcal para ser esposa dedicada, parece não ter consciência, pela passividade, da dominação e da violência exercida pelo marido, segundo um comportamento tipicamente marialva.

É a obsolescência da cultura do marialvismo, cruzada com um modelo de exploração semi-feudal em choque com o próprio capitalismo, que está sob os holofotes em "A Herdade". Aquela é a cultura relacional da subserviência da mulher e do autoritarismo do homem; da geração seguinte que tem a obrigação de reproduzir o atavismo da anterior; também da subserviência e autoritarismo na relação entre trabalhador, incluindo a sua família, e patrão. Imposta pela classe dominante e pelo machismo ao resto da sociedade, transformou-se em hegemónica e atinge, inclusivamente, os que começavam a despertar para a consciência de explorado.

Também Leonor começa a perceber os mecanismos de poder e de exploração do marido quando já só a mentira e a agressividade conseguem encobrir a realidade. Uma sucessão de insurreições à ordem marialva vão acabar por surgir e até a propriedade começa a ficar em causa. João não muda, apenas recua para o seu pequeno castelo. Como sempre.

"A Herdade" é ficção com muitas ligações a uma realidade histórica contemporânea. A intriga é queirosiana, mas a tragédia de João Fernandes é o prelúdio das mudanças e das lutas pela igualdade, pelos direitos das mulheres, pelos direitos laborais, pelo fim das tantas formas de discriminação e de exploração. Como tantas vezes acontece.

Texto de Maria do Carmo Bica

Maria do Carmo Bica
Sobre o/a autor(a)

Maria do Carmo Bica

Engenheira agrícola, presidente da Cooperativa Três Serras de Lafões. Autarca na freguesia de Campolide (Lisboa). Escreve com a grafia anterior ao acordo ortográfico de 1990