Esta comunicação, começando por referir o colapso dos mercados financeiros em 2007-08, sustenta que esta crise consubstanciou a conjugação da especulação financeira e do colaboracionismo institucional político-estatal, em que diversos Estados vieram em socorro dos bancos em detrimento de dinheiro dos contribuintes, com enormes repercussões sociais e económicas decorrentes de um política de austeridade imposta pela Troika (FMI, BCE, CE), sendo de relevar a liberalização e a especulação do mercado imobiliário. No caso de Portugal, não obstante a consagração da habitação como direito constitucional, a habitação pública está reduzida a 2% e as políticas públicas do Estado têm-se limitado a subsidiar bonificações de juros basicamente favoráveis à banca. Apesar desta situação, têm sido escassos, isolados ou praticamente inexistentes movimentos de moradores pobres a reivindicar coletivamente o seu direito a habitação digna, o que implica tentar explicar o problema de discrepância entre as reais condições objetivas de vida e de habitação degradadas e a exígua ou prática ausência de movimentos políticos urbanos sobre esta matéria.
Esta questão, na sequência da investigação, em sede de doutoramento, sobre o 'conservadorismo' do campesinato nortenho na obra Resistir e Adaptar-se. Constrangimentos e estratégias camponesas no Noroeste de Portugal, prosseguida em diversas publicações sobre a 'passividade' também doutras classes sociais desprovidas, conduz-nos a revisitar as teorias/modelos principais em torno da presença ou ausência da ação coletiva: (i) o funcionalista e cultural-normativista; (ii) o sociopsicológico; (iii) o de poder; (iv) o marxista, articulado, num balanço crítico, com o princípio da segurança (safety first) da economia moral e elementos do modelo de poder, nomeadamente weberiano.
É justamente esta abordagem pluricausal e plurinível que nos permite compreender e explicar as formas de 'acomodação', 'consentimento' e resistência passiva dos moradores/as. Por outro lado, é feita breve reflexão sobre o espaço urbano e diversos modelos de cidade, assim como sobre a urbanização na sequência da industrialização, expansão e acumulação do capital e suas fases com as respetivas consequências sobre as classes sociais mais desprovidas. Por fim, com base numa pesquisa socio-antropológica sobre modos de vida e formas de habitar nas 'ilhas' e bairros populares do Porto e de Braga, baseado numa metodologia plural (inquérito, entrevista, trabalho de campo), são resumidos alguns dos resultados vertidos na publicação de 4 livros coletivos e um a título pessoal.
Neste livro intitulado Moradores de Bairros populares no Porto e em Braga, considerando diversos indicadores em termos de escolaridade, condições de trabalho, rendimento e de habitação, comprova-se que, apesar da precariedade e da relativa privação, não se constatam, em regra, movimentos de contestação ou revolta, tomando os moradores/as, nas suas estratégias de sobrevivência, atitudes defensivas, de 'assentimento' e/ou de resistência passiva numa lógica de segurança mínima, eventualmente associadas a políticas de tipo clientelar.
II
A crise de habitação que se está a viver na última década traduz-se num aumento muito significativo dos preços da habitação e dos valores das rendas, sobretudo a partir de 2013, o que torna difícil para os grupos mais vulneráveis (ex. imigrantes, idosos, estudantes, famílias com baixos rendimentos, etc) aceder a uma habitação condigna e suportar crescentes taxas de esforço (parcela do rendimento para pagamento da habitação).
Iniciou-se no centro de Lisboa e Porto e rapidamente se expandiu pelo território das áreas metropolitanas e depois para as principais capitais de distrito do país e, finalmente, a todo o território nacional nos últimos anos, incluindo nos territórios de baixa densidade do interior. O aumento do preço das casas e dos valores das rendas excedeu em muito o relativo aumento dos rendimentos das famílias (quase três vezes mais), aumentando o fosso entre o preço da oferta e a capacidade da procura de a esta aceder.
Atualmente, a crise é já transversal a vários grupos etários e mesmo diferentes classes sociais, sendo as classes baixas e a classe média baixa as mais afectadas. A actual crise de habitação tem raízes profundas na crónica falta de investimento público em habitação e reabilitação urbana ao longo das décadas, sendo o sector da habitação um dos pilares mais frágeis do nosso Estado Social. Esta crise estrutural agudizou-se com a crise económico-social de 2008-2009, com a crise pandémica e com a recente crise inflacionária.
À falta de investimento do Estado em habitação, há que acrescentar causas mais recentes que contribuíram para uma diminuição muito significativa da oferta de casas a preços acessíveis: o excesso da turistificação e expansão do alojamento local; as isenções fiscais aos fundos de investimento imobiliário; as leis de reabilitação urbana que simplificaram procedimentos para uma rápida revitalização dos centros históricos; a liberalização da lei do arrendamento que gerou milhares despejos (a liberalização começou nos anos 90 mas atingiu o seu auge com a lei de 2012, o NRAU – Novo Regime de Arrendamento Urbano, vulgo "Lei dos Despejos"); a criação de programas governamentais para atracção de investimento estrangeiro em imobiliário (Residentes Não Habituais, Vistos Gold e Nómadas Digitais); a atracção de novas procuras residenciais internacionais endinheiradas e com elevado poder de compra, comparativamente aos portugueses. Nesta apresentação partimos da tese de que a crise de habitação é estrutural ao modo de produção capitalista português, enquanto país de semiperiferia, de modernidade inacabada.
Remataremos com algumas recomendações políticas no sentido de uma Política Pública de Habitação consequente com um efectivo Direito à Habitação verdadeiramente inalienável, incondicional e universal.