Habitação

"Há vários grupos que estão há muito tempo numa crise de habitação". Entrevista a Simone Tulumello, investigador e ativista

02 de abril 2025 - 11:30

A crise de habitação tornou-se um centro da discussão política, mas já é uma emergência social há muito tempo, que se foi tornando cada vez mais ampla. Em entrevista ao Esquerda.net, Simone Tulumello, investigador, ativista e autor, fala sobre este processo de ampliação e sobre como resolver o problema estrutural.

porDaniel Moura Borges

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Simone Tulumello
Simone Tulumello. Fotografia cortesia do próprio.

A crise de habitação é um problema estrutural da política do Estado português. Com um foco excessivo numa visão mercantilista, o mercado de arrendamento e compra de imóveis ficou fragilizado e vulnerável à especulação imobiliária e às vontades do turismo. Agora, a crise de habitação torna-se cada vez mais ampla.

Mas que "crise" é essa? Em Habitação para além da "crise": políticas, conflito, direito, Simone Tulumello problematiza a ideia de que a crise é conjuntural, e aponta que há vários grupos que sofrem com a falta de acesso à habitação historicamente. Nesta entrevista ao Esquerda.net, o autor do livro desenvolve essa ideia e fala sobre soluções para este problema estrutural.

Simone Tulumello é investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, autor e ativista no movimento pelo direito à habitação, participando há décadas em ações dos coletivos ativos em Lisboa. 


A partir da crise de 2008-2009, os governos começaram a estruturar a economia com base no turismo e na especulação imobiliária. Mas não é aí que o problema de habitação começa, pois não?

As escolhas que foram feitas a partir da crise tem obviamente um impacto na crise que estamos a atravessar hoje, mas a culpa é de escolhas feitas anteriormente. Nem no Estado Novo, nem em democracia, com aquela parêntese do PREC, se trabalhou realmente em Portugal para a construção de um regime de habitação que fosse estruturado através de uma ideia de um Estado-Social e do direito universal à habitação. Os investimentos foram insuficientes na construção da habitação pública e cooperativa e foram excessivas na promoção privada através da bonificação dos juros. E aqueles instrumentos de regulação do mercado que existiam, como o congelamento das rendas, foram progressivamente sendo abolidos. Isso deixou-nos com um mercado amplamente desregulado e sem uma infraestrutura de habitação pública e social que conseguisse realmente garantir um acesso universal à habitação quando chegou a crise. A causa dessa crise foi a explosão da boia da securitização da dívida imobiliária baseada na promoção pública, em muitos casos, da habitação de propriedade através da dívida.

A crise do subprime que teve como epicentro os Estados Unidos da América.

Era um mecanismo em que havia uma enorme especulação financeira centrada no crescimento contínuo dos valores de habitação nessa fase para compra. No momento em que o crescimento se torna demasiado grande para a base, começa a rebentar. Rebenta de forma mais explosiva nos Estados Unidos. na Espanha, na Irlanda, mas isso tem implicações para a finança em todo o resto do mundo, especialmente noutros países como Portugal, que tinham também bolhas imobiliárias. A austeridade, imposta aos países do sul da Europa e que as elites desses países aceitaram, significou transferir dinheiro das classes trabalhadoras para a finança. E, por outro lado, implicou insistir numa política de relançamento económico a partir dos setores com baixo valor acrescentado. São setores que iam depois levar a um novo crescimento do imobiliário e da construção. Turismo, procura de investimento externo. E isso é feito através de políticas que aprofundam a desregulação do mercado.

Que tipos de políticas?

A famosa lei Cristas, que acaba com a pouca regulação do mercado de arrendamento que existia e cria um mercado de rendimento completamente grotesco. Em 2012, havia a possibilidade de fazer um contrato de arrendamento com a duração de um dia, uma coisa impensável. Depois houve algumas correções mais à frente. É com toda uma panóplia de instrumentos para tentar atrair investimento. A perceção é de que as famílias não têm dinheiro para pedir crédito, então, para relançar o imobiliário e a construção escolhe-se o investimento exterior. É a financeirização da habitação assente no arrendamento, no turismo, no alojamento local, na atração de novos grupos e novas formas de financiamento. E isso acontece por cima de um regime de habitação que não estava pronto. E esse crescimento muito rápido do preço da habitação, observamos isso em todos os países, mas não observamos tão rápido como em Portugal, porque estes setores, turismo e construção imobiliária, não são tão centrais nessas economias. Em todos os países da Europa temos uma crise da habitação, mas em nenhum país de forma comparável em rapidez, impacto e abrangência social. E isso só se compreende pela junção do antes e do depois. É uma questão estrutural da economia capitalista, mais especificamente das escolhas que fomos fazendo em Portugal ao longo destas cinco décadas. 

No livro, problematizas a ideia de “crise” de habitação. A situação piorou e tornou-se mais visível depois da pandemia, tornou-se num centro do debate político, não?

Nesse processo que começa por 2012, com o aumento dos preços, ampliam-se progressivamente as camadas sociais que são impactadas. Nos primeiros anos, isso não era central na agenda do Bloco ou de outros partidos, havia apenas um pequeno grupo de ativistas a trabalhar a questão. Quem falava mais da habitação eram alguns movimentos sociais. A partir de 2016 ou 2017 já se começa a ampliar o leque de quem fala na questão da habitação. Há a Caravana pelo Direito à Habitação em 2017, que tem alguma visibilidade. Tem a presença da Leilani Fahra, que na altura era Relatora Especial da ONU para Habitação, que visita Portugal em fevereiro de 2016 e publica o seu relatório em fevereiro de 2017. Há ali um primeiro crescimento do discurso sobre habitação, porque também é uma fase em que as classes médias começam a ser atingidas, embora não da forma que estão a ser atingidas agora. Há aquela reportagem de Joana Gorjão Henriques sobre a catástrofe dos sem direitos, que é sobre os impactos do PER, da expulsão das pessoas da habitação precária. Em 2019, antes da pandemia, há um outro momento. Há manifestações como o Rock in Riot, é um processo de ampliação, de massificação.

Essas vagas têm resposta do Governo. Primeiro com a Nova Geração de Políticas de Habitação, depois com a Lei de Bases da Habitação.

Exatamente. Em 2017, António Costa nomeia Ana Pinho para secretária de Estado da Habitação, que não existia até então, e começa a preparar essa nova geração de políticas. Em 2019, o parlamento aprova a Lei de Bases de Habitação. Ou seja, há sinais de que o Partido Socialista se preocupa com a crise de forma mais evidente. Em 2017, António Costa diz que a habitação é a nova prioridade, mas é sempre para as classes médias. A pandemia vem abrandar todo esse processo, apesar de haver algumas lutas, sobretudo pela moratória aos despejos, terem efeitos. Depois da pandemia, volta o crescimento económico, muito assente no turismo e no investimento estrangeiro. Os preços continuam a crescer, numa fase que já se achava que não podiam crescer mais. É com essa explosão que a habitação se torna um problema central, até a direita admite que é um problema. Mas esta ideia da crise associa-se muito ao facto de que agora até as classes médias não conseguem pagar o arrendamento ou comprar casa, só que isso tem um risco, os movimentos interrogam-se desde 2017 sobre como é que fazemos que isto não venha à custa de esquecermos que há problemas históricos e estruturais das populações que sempre foram excluídas do mercado da habitação.

Quando problematizas a ideia de “crise” é a isso que te estás a referir? Ou seja, ao que sempre foi um problema histórico que agora se amplia?

Contestar a ideia da crise é, por um lado, observar que esta não é uma questão conjuntural pontual. Ou seja que tem a ver com dinâmicas muito mais antiga, que afeta grupos para os quais a habitação é constantemente uma crise. Em Portugal são fundamentalmente as populações racializadas e outros grupos também. A população idosa é uma outra população, não se fala muito disso, que foi protegida historicamente pelas rendas congeladas, mas à custa de condições de habitação terríveis. Há muitos grupos que estão constantemente nesta crise da habitação. Desconstruir um pouco esta ideia de que se possa responder a isto só em termos conjunturais. Se queremos construir um sistema de habitação onde há um acesso universal à habitação condigna, é preciso repensar desde o início onde está assente o nosso modelo de desenvolvimento e o que entendemos por habitação.

Entretanto tivemos um governo de direita com o programa Construir Portugal, com a nova lei dos solos. Em termos de política pública, que balanços fazes da posição da Aliança Democrática?

Desse ponto de vista, o Partido Social Democrata e o Partido Socialista não são estruturalmente diferentes no tipo de respostas. Ou seja, se observamos as políticas que foram feitas desde 2018 até agora, a continuidade está em apostar em correções, ou seja, ir procurando certos pontos onde tocar para corrigir certas questões específicas. Nomeadamente habitação social para os grupos mais desfavorecidos. Há algumas reformas pontuais do mercado de arrendamento que reduzem aquelas dimensões mais grotescas. A nível nacional o 1.º Direito, na capital o Habitar Lisboa. Ou seja, há toda uma série de programas que podemos elencar que corrigem alguns dos aspectos da crise, mas em nenhum momento entra nas raízes profundas do problema. O governo de direita duplica o investimento no 1.º Direito, mas termina com aquela muito tímida medida de controle de rendas que tinha sido introduzida no Mais Habitação pelo último governo Costa, que limitava o aumento das rendas em contratos que já tinham valores extremamente altos.

E há uma narrativa inerente a isso. Aliás, o programa chama-se Construir Portugal...

A direita diz que é a promoção da habitação que resolve a cries e que temos de aumentar a construção. O clássico argumento liberal que mais construção vai baixar os preços. Completamente falso. Nunca aconteceu isso, especialmente num contexto em que o preço da habitação não é guiado pela procura de quem quer morar, mas é guiado pela procura especulativa. Construir mais não vai regular os preços e há uma prova evidente, que é o aumento das taxas de juros em 2022, a seguir ao crescimento da inflação. Toda a gente de esquerda diz; “Atenção, mas esta não é uma inflação guiada pela procura, então isto não vai ter efeito”. De facto, não teve efeito. A inflação foi descendo só porque as razões estruturais da inflação se foram apaziguando. Contudo, o aumento das taxas de juros em Portugal faz cair os empréstimos à habitação. A expectativa dos economistas é de que isto vai fazer cair o preço da habitação. Mas o preço da habitação só continua a crescer, porque é guiado por investimento externo principalmente.

A nova lei dos solos segue essa lógica, mas é particularmente grave.

Sim, Em Portugal, já temos terrenos urbanizáveis para mais três países com a mesma população. Ou seja, há milhões de habitações que se podiam teoricamente construir. Já o Partido Socialista tinha simplificado o licenciamento. Já há uns anos é muito mais simples construir do que antes. Não se está a construir muito nas áreas periféricas. A ideia da direita é que temos de relançar uma construção nas periferias, na margem da mancha urbana, para que a classe média possa comprar habitação ali. Então fazem o Construir Portugal, e depois essa coisa escandalosa, facilitar a mudança do solo rústico para urbano, que vai simplesmente fazer aumentar os valores do solo rústico, provavelmente nem vai causar um efetivo aumento da construção, porque nestes anos Portugal nunca diminuiu o rácio famílias-habitações. Ou seja, cria-se dinheiro do nada. Este é o mesmo princípio básico do especulação. Criar dinheiro do nada.

Têm de haver políticas de emergência e políticas estruturais para o mercado de habitação. São níveis diferentes de intervenção. Que políticas são essas? 

Historicamente, não há exemplos de regimes de habitação funcionais que garantam o acesso a uma habitação condigna e universal em que não haja uma maioria do parque habitacional fora do mercado. Há várias formas de fazer isto. Pode ser porque 100% da habitação é pública, como no caso das repúblicas soviéticas, que tinham muitos problemas de qualidade de habitação, mas toda a gente tinha uma casa. Há modelos mais assentes numa mistura, que é o mais comum na Europa Ocidental. Uma mistura de habitação pública, social, desmercantilizada, que pode ser 10 a 40% do parque habitacional, e de regulação do mercado. Se nós queremos resolver o problema de fundo, temos de chegar a esses níveis do parque habitacional público, para que os preços não sejam determinados pelo mercado. Essa é a medida de longo prazo. Precisamos de fazer mais habitação pública através de compras, expropriações, conversões, etc. E também de promover a habitação privada fora do mercado, com cooperativas a sério, em que se mantenha a propriedade cooperativa.

E medidas de emergência?

É evidente que a medida que é ao mesmo tempo, conjuntural, emergente e estrutural, porque tem que ficar no longo prazo, é o controlo de rendas. Não se pode defender isso só como uma medida temporária. É urgente agora, mas tem de ficar pelo menos até chegarmos a 60% de habitação pública. Dizem que assim as pessoas deixam os apartamentos vazios, ou passam a alojamento local. É evidente que essa medida só funciona, como todas as políticas do mundo, em conjunto com outras leis. Se amanhã vais construir hospitais mas depois não crias um mecanismo pelo qual a gente possa aceder aos hospitais, vão ficar vazios. É a mesma coisa. Para que um controlo de rendas funcione, é preciso regular o investimento especulativo e é preciso acabar com a ideia de que a habitação seja um ativo financeiro. Podemos taxar os imóveis vazios. Temos de acabar com o alojamento local nos apartamentos. Temos de mexer em mil coisas que estão à volta disso. Por exemplo, os apoios aos arrendatários. No mercado desregulamentado, contribuem para o aumento dos preços. No mercado regulamentado, onde as rendas são fixas pelo Estado, podem realmente dar apoio às pessoas para pagarem uma renda que não conseguem. 

Foste ao PREC à procura de políticas e soluções para a crise estrutural do mercado de habitação. A que conclusões chegaste?

Quando a ditadura acabou, deixou uma crise de habitação enorme. Era uma crise qualitativa. Além da questão dos preços incomportáveis, nomeadamente no arrendamento, havia mesmo uma falta de habitações e uma necessidade de construção. A habitação clandestina começa a aparecer, ocupações de terras, bairros de lata. Foi a partir das pessoas populares que surgiram os reflexos e as soluções da crise de habitação. Começaram as ocupações, começaram a emergir as comissões de moradores. É nesta dialética entre uma mobilização popular poderosa e o Estado que se começa a pensar em soluções. Numa primeira fase, as ocupações como resposta inevitável a um problema evidente. A primeira coisa é esta dialética entre um Estado que formalmente não reconhece as ocupações, mas que concretamente vai aceitando em certos momentos também regularizando as ocupações, que é um mecanismo precisamente do ponto de vista dos movimentos. A segunda coisa é o lançamento do SAAL, para ajudar os bairros de lata a fazer, com equipas técnicas, com materiais, a melhorar suas condições habitacionais. As tentativas de construção daquele duplo poder vem precisamente das comissões de moradores. Não é um acaso que em 1976, acabado o PREC, na fase em que Portugal se transforma num Estado liberal, o decreto-lei que acaba com o SAAL, diz que muitas comissões de moradores excederam o objetivo. Estão a fazer coisas que não é bem construir casas. Estão a fazer mais. A lição que retiramos disto, mais do que específicas políticas, é na dialética. Não precisamos do SAAL, precisamos de políticas que permitam que o Estado se torne parte de um processo de transformação do regime da habitação. Precisamos ver como é que envolvemos as populações e não impomos soluções vindas de cima.

Entre a política pública e o movimento social, que conflito é que precisamos para resolver a crise da habitação? São os dois em simultâneo?

A história demonstra-nos que, desde novembro de 1975, o Estado foi na direção de promover a habitação enquanto objeto que está no mercado e depois oferecer algumas correções mais ou menos de emergência. Então, como é que nós empurramos o Estado nessa direção? Para ter a força para que essas políticas estejam efetivamente diferentes, precisamos de construir poder autónomo. O pouco que foi feito vem a custa do movimento, da pressão do movimento. Se o Estado não fizer as coisas que são necessárias, o povo vai para o seu caminho. Não tivemos um movimento de ocupação suficientemente poderoso para que houvesse medo por parte dos proprietários. Não houve uma capacidade de pressionar, de levar os partidos políticos da esquerda, que são os únicos que têm nos seus programas reformas que não são reformistas, que são reformas que falam de mudar estruturalmente à ampliação. O Bloco tem o controle de rendas no seu programa desde há vários anos. O Bloco fez uma proposta de controlo de rendas. É uma reforma não reformista, é uma reforma que contribui a mudar o rumo. Mas estes partidos não foram empurrados para ganhar e ampliar. Eu acho que está na altura de pensar seriamente as ocupações como um instrumento de política pública.

Daniel Moura Borges
Sobre o/a autor(a)

Daniel Moura Borges

Militante do Bloco de Esquerda.