A gentrificação que afeta Lisboa deixa bairros inteiros vazios e expulsa as pessoas da cidade. Nas periferias, surgem novos bairros de barracas. Esse modelo replica-se por todo o país, fruto de uma política de financeirização da habitação e turistificação das cidades que ocorre com a viragem da crise de 2008-2009.
Luís Mendes é geografo e professor universitário há vinte anos. Participa também em movimentos cidadãos como a Plataforma Morar em Lisboa e a Associação de Inquilinos de Lisboa. Defendeu, em fevereiro de 2025, a sua tese de doutoramento sobre Gentrificação Turística e Financeirização da Habitação no Centro Histórico de Lisboa.
Em entrevista ao Esquerda.net, o académico e ativista pelo direito à habitação fala sobre os processos de financeirização e turistificação e faz um apanhado das políticas de habitação dos últimos 40 anos, focando-se em particular na cidade de Lisboa.
O que entendes por financeirização da habitação?
A financeirização em si é o aumento da influência e do impacto de atividades e serviços financeiros no tecido social e económico do território. E permeia todos os interstícios possíveis do tecido populacional. Pelo menos numa classe média e baixa, de gente que se endivida até ao fim da vida para conseguir pagar a sua habitação. Isso garante uma das frentes da financeirização, que é o rentismo. A banca, para manter os seus níveis de extração de dinheiro sobre dinheiro, precisa e vive de um espírito e de uma ideologia profundamente rentista, que é conseguir extrair rendas de forma sistemática e constante ao campo do trabalho e desviá-las para o campo do capital.
Como caracterizas o processo de financeirização de habitação em Portugal?
É um processo bastante complexo. Inicia-se nos anos 80, um pouco antes da entrada na Comunidade Económica Europeia, com o imperativo de abrir a banca portuguesa à banca internacional. Uma das formas de concretizar isso foi através do apoio ao crédito generalizado e bonificado às famílias. Essa foi a primeira fase de financeirização, foi visto como uma das únicas soluções para garantir o acesso mais eficiente das famílias à habitação. Isto escondia os interesses de favorecimentos à banca e ao setor imobiliário através da nova construção e através da reprodução de mais-valia. É talvez um dos estádios mais interessantes da financeirização, do ponto de vista da articulação de níveis de intervenção do governo e da própria União Europeia, que vão agilizar favorecimento a injeção de investimento no imobiliário.
Mas há uma fase mais recente que se inicia depois da crise de 2008.
Exato. Há aí dois processos. Um que se iniciou previamente à crise, em 2004, com a criação das Sociedades de Reabilitação Urbana, grandes empresas público-privadas que tinham o objetivo de capitalizar investimento e substituir o Estado na injeção desse capital no ambiente construído. Em Lisboa, isso marca aquilo que eu tenho designado como a viragem neoliberal nas políticas urbanas, uma inflexão entre os anos 70, 80 e 90 - em que tínhamos políticas urbanas muito concentradas nas necessidades das populações, tentando estancar o despovoamento - e a criação das Sociedade de Reabilitação Urbana através de um decreto em 2004, cujo preâmbulo faz toda uma viragem que se vai consolidando ao longo destas primeiras duas décadas do século XXI, orientando a reabilitação urbana para o mercado.
Mas acontece também com outras políticas de âmbito nacional, não?
No plano nacional, esse segundo estádio inicia-se precisamente no rescaldo da crise de 2008-2009, com a criação do regime dos residentes não habituais em 2009. Garanta-se que um cidadão que fixe a sua morada fiscal em Portugal consiga ficar fiscalmente isento da carga de pagamento de impostos ao Estado, quer no país de origem, quer em Portugal. O objetivo do governo do Sócrates era garantir a atração de uma classe criativa. A lei é muito clara. O que se queria eram CEOs, profissionais de topo, de indústrias de inovação, do meio criativo e artístico, que se instalem e que a partir daí exerçam um efeito de influência, quer no meio imobiliário, quer depois no estilo de vida. E isso dá início a um período que se mantém depois com os vistos gold em 2012, e com as isenções fiscais aos nómadas digitais. Portanto, a aparelhagem estatal lubrificou uma máquina poderosíssima de facilitação da circulação e transferência de capital, puxando os grandes fluxos transnacionais de capital ao ambiente construído local. É o que David Harvey chama de ajuste espacial do capital. O capital investe no território e no ambiente construído em função de vantagens comparativas interterritoriais. Ou seja, um território que ofereça mais vantagens nas leis da fiscalidade, atrai mais capital.
Achas que os nossos governos puseram em prática essa política fiscal de forma agressiva?
Portugal fez isso de forma multi-escalar, ou seja, a trabalhar em vários níveis. Tens os vistos gold e os residentes não habituais a uma escala nacional, depois tens a lei do arrendamento de 2012, vulgo lei dos despejos, que facilita o despejo e simplifica-o, para além de liberalizar totalmente o crescimento das rendas. Isso vai, a nível local, desbloquear uma parte significativa do parque imobiliário habitacional do centro de Lisboa, que coincidia com áreas muito nobres, através do despejo. Chamamos a isso acumulação de capital por despossessão, no sentido em que as pessoas são expulsas. E através da expulsão das pessoas garante-se que novas procuras residenciais se estabelecem no centro histórico e se desbloqueia parte desse parque habitacional para alimentar os fundos de investimento imobiliário.
Na tua investigação falas do urbanismo austeritário pós-crise. É a essa expressão mais violenta que te referes?
Sim, a expressão é do Jamie Peck. Ele defende que, após a crise capitalista de 2008-2009, nós tivemos, do ponto de vista do urbanismo, um conjunto de medidas de política urbana altamente austeritárias e revanchistas que alavancaram a gentrificação transnacional e a atração de fluxos transnacionais de capital, injetando-o no ambiente construído. Esta relação cíclica e dialética entre o capital e o ambiente construído, que às vezes não é só imobiliário, materializa capital fixo na paisagem de uma cidade. A nível da política urbana vê-se a facilidade com que os fundos de investimentos garantem a compra de quarteirões inteiros e os deixam vazios, a facilidade que se tem em aumentar rendas para níveis nunca vistos, totalmente pornográficos, excluindo as classes populares e trabalhadoras do centro histórico.
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Depois dessa vaga de políticas de atração de capital estrangeiro, o governo de António Costa aprova a Nova Geração de Políticas de Habitação (NGPH). Que balanço fazes dessas políticas?
A Nova Geração de Políticas de Habitação foi um documento importante porque pelo menos, por força dos movimentos sociais e das lutas que inundaram a agenda pública, se criou efetivamente a Secretaria de Estado da Habitação em 2017 e a NGPH. Apesar de ser um documento inovador e até progressista em alguns momentos, a verdade é que encerra várias contradições. A primeira tem que ver com assentar sobre todo um conjunto de financiamento da política pública mobilizado a partir de fundos e de estímulos ao mercado. Por exemplo, o programa de arrendamento acessível, que tinha boas intenções, isentava fiscalmente todos os senhorios que colocassem as suas rendas 20% abaixo da mediana do mercado. Mas o mercado está de tal forma sobreaquecido que apenas alguma classe média mais estável conseguiu aceder a estas casas. A segunda é a de afirmar um Estado neoliberal, agilizador e liberalizador, e não construtor, provisor direto, executor. A terceira contradição é a municipalização da habitação, acreditando que desconcentrando certas competências ao nível da produção de habitação para os municípios se garante o direito à habitação. Esta municipalização está-se a fazer à custa de investimento e de dinheiro injetado pelos fundos comunitários, que têm origem externa. Ou seja, antes de todos os municípios terem uma estratégia para a habitação, quem ia primeiro com a mão ao pote era quem conseguia trazer o dinheiro do PRR. Não é assim que se gere uma estratégia nacional de combate a um problema grave.
Concordando com o que dizes sobre a municipalização, há, no entanto, bons exemplos de gestão de políticas habitacionais a nível municipal. Veja-se Viena...
Viena é um caso muito excecional, que nós damos sempre como exemplo de boa prática. Mas parece que é outro planeta, não é? Estive com a vereadora da habitação durante vários dias em Viena, no final de 2019, e é um outro mundo. O que tu notas é que há todo um século de política socialista. O século XX foi um século de profunda ideologia de política pública. E depois tens aquilo que a nossa Constituição defende, que é sensivelmente 1/3 do parque habitacional em cooperativo, 1/3 em parque público e social, e depois 1/3 em mercado livre. Chegas até a ter a própria União Europeia a acusar o governo local de Viena de estar a comprometer as leis da concorrência. Há um equilíbrio muito grande que se construiu ao longo de um século e que nós vamos levar um século a construir se encetarmos políticas corretas. Mesmo assim, percebe-se que o mercado livre em Viena está a subir, os preços e as rendas também estão a atingir níveis quase incomportáveis. Só que a componente social e pública cooperativa é tão forte que se consegue regular sem intervenção muito direta do Estado.
Voltando ao percurso das políticas de habitação em Portugal, depois da pandemia temos o Mais Habitação e agora o Construir Portugal, do governo de direita.
O que nós temos é uma sucessão de crises. Tivemos a crise capitalista, depois a crise da austeridade, a crise pandémica, agora a crise inflacionária. Cada uma delas contribui para um fim geral e último, que é transferir capital do trabalho para o capital propriamente dito. É a isso que nós estamos a assistir nas últimas décadas, há um revanchismo total para fazer recuar direitos sociais e económicos que foram garantidos durante a segunda metade do século XX. O Mais Habitação teve, no mínimo, a intenção de conseguir cirurgicamente tentar operar algumas mudanças no arrendamento e na habitação. Temos de assumir que o programa tinha numa vertente medidas profundamente progressistas e mesmo comunistas. A tomada de posse administrativa, o escalonamento do arrendamento pela duração do contrato, o congelamento dos contratos antigos. Depois tinha outras medidas liberalizantes. Eu digo que é um programa de terceira via, porque tenta conciliar uma visão socialista e capitalista de resolução do problema. E, finalmente, o Construir Portugal, que se baseia num axioma que é falso, que é que a nova construção vai resolver o problema da habitação. Assim seria se não tivéssemos um superavit de 1.500.000 casas. E se dessas, 725.000 não estivessem totalmente desprovidas de função económica e social, ou seja, literalmente vazias. Só na área metropolitana de Lisboa existem 150.000, na cidade de Lisboa existem aproximadamente 47.000. Estamos no top três dos países da OCDE com maior número de devolutos. Em cada 100 casas, 13 estão vazias, e isso é verdadeiramente amoral.
Com base no histórico de políticas de habitação de que já fomos falando, quais são as principais características da gentrificação em Lisboa?
No pós-crise, assistimos ao que eu chamo de super-gentrificação ou gentrificação transnacional. Tem um perfil diferente comparativamente à gentrificação que se verificou no Bairro Alto e em Alfama nos anos 70, 80 e 90. Essa é uma gentrificação marginal, na qual os novos moradores até tinham algum alguma relação social com a comunidade. Esta gentrificação é motivada por novas procuras residenciais, ativadas por uma elite transnacional. Estamos a falar de uma nova classe média-alta, que tem um poder aquisitivo completamente diferente da média dos portugueses e, portanto, faz com que os preços da habitação e os valores do arrendamento descolem da realidade local e comecem a situar-se num nível completamente estratosférico em comparação com outras cidades globais. Esse movimento produz imensas externalidades. Os despejos e a massificação turística das ruas, com todos os fenómenos de precariedade e exclusão habitacional que nós conhecemos, o sistema de cama quente, a sobrelotação, a reprodução de barracas e de tendas. Coisas que nós já não víamos desde os anos 80.
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Essa gentrificação tem a conivência do Estado e das autoridades locais?
Para além de deter novos players e um constante auxílio de agilização por parte do Estado nos seus diferentes níveis escalares de análise e produção de leis, a gentrificação transnacional tem dois grandes pilares. A financeirização dos mobiliários, de que já falámos, e a turistificação, com expansão muito significativa em Lisboa. 42% de crescimento do alojamento local ao ano entre 2009 e 2019. Entre 2014 e 2018, o setor duplicou todos os anos. Mas também não podemos deixar de referir as largas dezenas de unidades hoteleiras e outros produtos de alojamento turístico que foram autorizados a abrir em Lisboa. Estes novos usos do território desviaram muita habitação do uso residencial e habitacional para uso recreativo e turístico. Isso estrangula mais a oferta, porque está a comprometer uma parte significativa do parque imobiliário que, em vez de ter função residencial, passa a ter função turística. Esses dois pilares criaram esta tempestade perfeita que nós ainda estamos a verificar e que alimenta fenómenos de gentrificação internacional.
Para além do impacto na habitação, a turistificação tem transformado o centro da cidade num lugar vazio, sem espaços de encontro. Esse fenómeno tem crescido?
Eu diria que ele tem crescido e tem-se expandido perifericamente. Mas adensa-se sobretudo em áreas que amarram e que atraem um destino turístico importante. Vila de Cascais, Vila de Sintra, Ericeira, Cacilhas, Lisboa são claramente espaços que afirmam este fenómeno. Mas a turistificação é um fenómeno hegemónico que promove uma base de monocultura na economia, e que afeta um território independentemente da sua escala. Nós somos o terceiro país da Europa com maior concentração de riqueza no PIB produzida pelo turismo. Somos uma economia que caminha no sentido da turístificação. Toda a economia se reestrutura no sentido de responder única e exclusivamente aos interesses da classe turística. Portanto, perdem-se serviços de apoio à população e ganham-se serviços, equipamentos e comércio orientado apenas para os turistas. Isso vai criar alojamento local, vai estrangular a oferta e vai desviar casas para o turismo. Isso acaba por tornar-nos menos resilientes e mais dependentes externamente.
No caso da cidade de Lisboa, que papel é que têm os hóteis como função de um planeamento urbano apontado ao turismo?
Nós durante muitas décadas tínhamos a nossa oferta hoteleira e capacidade instalada de camas turísticas nas Avenidas Novas. No centro da cidade tínhamos um enorme rent gap criado pelos devolutos, isto é, uma enorme mancha de edifícios devolutos não utilizados. E agora estão a ser comprados pelos grupos económicos de hotelaria para desenvolver alojamento local e grandes unidades hoteleiras. Ou seja, os devolutos são uma condição do espaço urbano essencial para atrair essa nova oferta, e o licenciamento de dezenas de unidades de hotéis no centro histórico. Uma tendência massificada de desviar prédios inteiros e quarteirões inteiros para a função turística. Se bem que traz alguma dinâmica urbana vibrante, a verdade é que reforça esmagadoramente o processo de turistificação. É claramente um setor que tem de ser regulado, porque acabou por distorcer ainda mais o mercado local de habitação.
Face a todos estes desafios, quais são as políticas fundamentais para responder à crise da habitação? Isto em várias fases, tanto num programa de emergência como medidas para mudar estruturalmente o mercado.
As medidas têm de respeitar a multidimensionalidade do problema. Envolve múltiplos agentes e o principal, que é o Estado, não está muito interessado. Precisamos de uma mistura de políticas a várias escalas: a nível local, a nível regional, a nível nacional e até a nível comunitário europeu. Há algumas medidas que eu acho fundamentais e elas vão-se articulando. Uma nova lei do arrendamento, porque o mercado de arrendamento é aquele que consegue responder às necessidades de procura de uma forma mais imediata. O nosso mercado está totalmente desregulado, e precisamos de responder de forma estrutural a muitas das pequenas reestruturações que se foram fazendo. Essa lei tem de ter direitos e deveres para senhorios e inquilinos. Os valores praticados de renda têm de ser ajustados àquilo que se chama uma taxa de esforço de 1/3, ou seja, uma família não pode gastar mais do que 1/3 do seu rendimento em habitação. Precisamos de uma carga fiscal sobre os senhorios muito mais justa, em função da duração dos contratos mas também do preço praticado por metro quadrado. O mercado tem de ser regulado por uma entidade externa independente, não só à Autoridade Tributária, mas ter em conta uma autoridade reguladora. Também sou há muito tempo defensor de um Registo Nacional de Arrendamento, uma plataforma nacional onde se coloca toda a oferta habitacional para arrendamento. É importante que as rendas sejam indexadas à inflação, por exemplo. É preciso aumentar massivamente a oferta pública de habitação.
Essas medidas respondem ao mercado de arrendamento. E a nível mais estrutural para a habitação em geral?
Temos de desenvolver novas formas de cooperativismo, garantindo o valor de uso das casas e libertando-as do valor de troca. Isso permite retirar casas ao mercado e colocá-las num sistema anti-mercantil e anti-especulação. Depois temos de combater a financeirização da habitação, a habitação não pode estar dependente de fundos de investimento privados e reféns de lógicas distorcidas de mercado que querem fazer lucro com este setor. E finalmente ordenar turisticamente as nossas cidades. Pode criar-se uma carta municipal turística que perceba quais são os principais focos turísticos na cidade, quais são os principais pontos de grande atração, como é que nós vamos gerir estes fluxos, como é que se pode a manter e perceber a evolução da capacidade instalada. Eu tenho defendido a criação de um Conselho Municipal Turístico, um órgão consultivo que permita juntar moradores ao setor da hotelaria e do turismo, académicos, políticos, ativistas e todos os interessados em matéria de turismo.