Memória

Há 60 anos, a PIDE assassinou Humberto Delgado

12 de fevereiro 2025 - 21:21

A eliminação física do principal inimigo da ditadura foi uma decisão tomada ao mais alto nível. Desde 1958 que Humberto Delgado era o inimigo número um de Salazar, protagonizando uma incansável luta pelo fim da ditadura. Delgado e Arajaryr Campos foram assassinados a 13 de fevereiro de 1965.

porÁlvaro Arranja

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Delgado e Arajaryr Campos. Última foto antes de partirem para a cilada de Badajoz.
Delgado e Arajaryr Campos. Última foto antes de partirem para a cilada de Badajoz.

Em 13 de fevereiro de 1965, a PIDE assassinou o general Humberto Delgado.

A eliminação física do principal inimigo da ditadura foi uma decisão tomada ao mais alto nível. Desde 1958 que Humberto Delgado era o inimigo número um de Salazar, protagonizando uma incansável luta pelo fim da ditadura.

Em 16 de maio de 1958, Delgado é impedido de seguir para o centro  de Lisboa, durante a campanha eleitoral.
Em 16 de maio de 1958, Delgado é impedido de seguir para o centrode Lisboa, durante a campanha eleitoral.

Após a fraude eleitoral, nas eleições presidenciais de 1958, Humberto Delgado foi forçado a pedir asilo na embaixada e depois a seguir para o exílio no Brasil. Ali rapidamente se deu conta que a distância impedia qualquer atuação eficaz em Portugal. A odisseia do paquete Santa Maria tinha sido eficaz como propaganda internacional contra o regime, mas ineficaz para conseguir o derrube do regime a curto prazo.

Delgado decide voltar à Europa (ou ao norte de África), para concretizar ações em Portugal. Em 22 de setembro de 1961 parte do Brasil. Aquilo que viria a ser a revolta do quartel de Beja, chefiado pelo capitão Varela Gomes e por Manuel Serra, era o tipo de operação em que Delgado apostava.

Em 29 de dezembro entra em Portugal. De bigode e óculos de grandes lentes, acompanhado por Arajaryr de Campos (sua secretária, agora supostamente a sua sobrinha brasileira), entra pela fronteira de Vila Verde de Ficalho, onde a PIDE carimba o seu passaporte. Vem diretamente para Lisboa, hospeda-se numa pensão da Rua Castilho, encontra-se com o capitão Carlos Vilhena e pede-lhe que contacte Varela Gomes, desce a Avenida da Liberdade e, de um telefone público, fala (apresentando-se como o sr. Silva) para casa com a sua filha Iva.

A 31 sabe que a revolta já está em marcha e parte de imediato para Beja. Já passavam das duas da madrugada do dia 1 de janeiro de 1962, quando chegam e se defrontam com uma patrulha da PSP a ordenar que parem. Delgado diz ao condutor que fuja a toda a velocidade e só iriam parar em Vilar de Frades, onde encontrariam refúgio.  Ali sabem que a revolta de Beja não teve êxito, apesar da coragem de Varela Gomes e dos homens do grupo civil de Manuel Serra.

Delgado revela à imprensa brasileira como entrou em Portugal. Revista Manchete, 3 de fevereiro de 1962.
Delgado revela à imprensa brasileira como entrou em Portugal. Revista Manchete, 3 de fevereiro de 1962.

Os acontecimentos de Beja, nos quais a ditadura vê o estilo de Delgado, aumentam o receio pela ação do General Sem Medo. Salazar sabe que ele não se contenta com os protestos pacíficos protagonizados pela oposição republicana e socialista ou pelo PCP.

Será essa diferença quanto aos métodos a utilizar no derrube da ditadura que o afastará das oposições anti-salazaristas. Isso será evidente na rotura ocorrida em Argel, entre Delgado e os exilados reunidos na FPLN (Frente Patriótica de Libertação Nacional).

O general aposta tudo numa operação que envolveria a tomada de uma unidade militar no Algarve e o desembarque de uma força, comandada pelo próprio Delgado, nas praias algarvias, vinda da Argélia.

Tem o apoio do Presidente da Argélia, Ben Bella, herói da resistência contra o colonialismo francês. Em declarações à RTP, num documentário de Diana Andringa, Ben Bella declarou ter pensado «ir muito, muito longe, contra Salazar e Franco». Questionado se teria em apoiar uma ação militar de portugueses e espanhóis contra as ditaduras, respondeu:

«Pensámos nisso e pensámos em disponibilizar os meios para isso…Delgado era uma das coisas em que estava sempre a pensar.»1

Operação Outono gizada pela PIDE, com o objetivo de eliminar Delgado, tem início com a nova direção que toma posse após a humilhação sofrida pela polícia política com a  entrada do general clandestino em Portugal, durante os acontecimentos de Beja.

Já com a operação em andamento, a PIDE recebe uma proposta de ajuda que se torna decisiva na eliminação de Delgado. Um tal Mário de Carvalho,  por iniciativa própria, tinha contactado Humberto Delgado, apresentando-se como exilado político antisalazarista em Roma. Na realidade era um condenado de delito comum que tinha fugido para Itália, arquitetando aí o plano de se aproximar de Delgado, para vender informações à PIDE.

Lentamente vai ganhando a confiança de Delgado, ao mesmo tempo que se torna no mais bem pago informador da PIDE. Sabendo da opção do general por uma ação de força, convence-o de que tem contactos com militares interessados em participar num golpe para derrubar Salazar. Com a PIDE forja contactos com supostos militares em Portugal desejosos de derrubar a ditadura. Uma carta de um brigadeiro, falecido dias antes, é forjada pela PIDE e enviada a Humberto Delgado.

A PIDE e Mário de Carvalho organizam mesmo, em Paris, no Hotel Caumartin, em dezembro de 1964, um encontro entre Delgado e um jovem advogado antifascista que supostamente tem muitos contactos com militares oposicionistas. O advogado «Dr. Castro Sousa», era o agente da PIDE Ernesto Lopes Ramos e a reunião visava atrair Delgado para um encontro, próximo da fronteira portuguesa, com militares desejosos de afastar Salazar.

Em 9 de fevereiro de 1965, Humberto Delgado e Arajaryr de Campos aterraram no aeroporto de Casablanca. Ajudados por alguns correligionários seguem para Tetuan.

A Henrique Cerqueira diz:

«Se eu não estiver de volta até 21 de fevereiro, alerta os nossos amigos. Se eu não estiver de volta a 23 de fevereiro, alerta a imprensa. Nesse dia ou estarei preso ou estarei morto.»

Em 11 de fevereiro, atravessam o estreito de Gibraltar, de Ceuta para Algeciras. Seguem de autocarro para Sevilha, onde ficam alojados no Hostal América Palace. No dia seguinte viajam para Badajoz, também de autocarro, hospedando-se no Hotel Simancas.

Em 12 de fevereiro de 1965, os elementos da brigada da PIDE rumaram a Espanha, em duas viaturas, atravessando a fronteira, na manhã de 13 de fevereiro, e dirigiram-se a Badajoz, acompanhados do chefe do posto fronteiriço dessa polícia, António Semedo.

Como tinham combinado previamente, Delgado e Arajaryr enviaram  postais de Badajoz, como forma de provar a sua presença na cidade.

Postal enviado por Humberto Delgado (Deolinda) a Emídio Guerreiro (Alice Guerra), colocado nos correios de Badajoz poucas horas antes do assassinato, em 13 de fevereiro de 1965.
Postal enviado por Humberto Delgado (Deolinda) a Emídio Guerreiro (Alice Guerra), colocado nos correios de Badajoz poucas horas antes do assassinato, em 13 de fevereiro de 1965.

Convencido de que iria reunir com os seus correligionários políticos, Delgado encontrou-se, ao meio-dia, na zona da Estação dos Caminhos de Ferro de Badajoz, com o  «Dr. Castro Sousa» (o PIDE Ernesto Lopes Ramos), que o levou a ele e a Arajaryr Campos, para um local onde a pretensa reunião estaria aprazada.

Chegados junto à ribeira de Olivença, em Los Almerines, cerca das 15 horas, Ernesto Lopes Ramos terá parado o seu automóvel, a cerca de dez metros da outra viatura, onde estava António Rosa Casaco, indicado como um coronel que seria pretensamente correligionário político de Delgado.

Foto do local do assassinato (Los Almerines, Olivença), feita no âmbito do inquérito judicial espanhol.
Foto do local do assassinato (Los Almerines, Olivença), feita no âmbito do inquérito judicial espanhol.

Na sequência desta falsa indicação, este terá saído do veículo e, ao mesmo tempo que Rosa Casaco se dirigia ao encontro do general, o chefe de brigada Casimiro Monteiro ganhou a dianteira, junto de Delgado, que se terá apercebido de que se tratava de uma armadilha da PIDE.

O que se passou a seguir está envolto em polémica.

Já depois da Revolução de 25 de Abril, de 1978 a 1981 decorreu o julgamento dos assassinos de Humberto Delgado. Os juízes acharam convincente - e conveniente - a tese de que a brigada da PIDE tinha ido a Badajoz apenas para "raptar" Humberto Delgado, e não para o matar. Ignorando deliberadamente as perícias espanholas, consideraram que o homicídio, às mãos de Casimiro Monteiro (elemento da brigada de Rosa Casaco), foi uma derrapagem aos planos estabelecidos. O processo judicial inocentou a hierarquia superior da PIDE e Salazar. O culpado era o autor material do crime, Casimiro Monteiro (que convenientemente se encontrava em parte incerta e nunca foi preso).

Em 1982, o jornalista Manuel Geraldo publicou o livro “A Segunda Morte do General Delgado”,2 para denunciar o julgamento de Santa Clara, onde todos os réus foram ilibados à exceção do autor material do homicídio, Casimiro Monteiro. A tese do tiro de pistola do incontrolado Casimiro Monteiro começava a ser desmontada.

Mas foi a investigação de Frederico Delgado Rosa, neto do general, publicada no livro “Humberto Delgado: biografia do general sem medo3 em 2008, que deu uma contribuição decisiva para esclarecer a questão partindo das provas constantes do processo elaborado pelas autoridades espanholas, deliberadamente esquecidas no julgamento ocorrido no Tribunal de Santa Clara.

Humberto Delgado não foi morto a tiro mas sim brutalmente espancado até à morte. O assassinato não foi um impulso homicida repentino associado a um disparo, em que os outros elementos da brigada já não podiam fazer nada. A morte não foi imediata nem repentina, mas um processo muito violento, com uma extensão no tempo, em que os outros elementos da brigada não fizeram nada para o impedir porque tinham ordem para o matar. Arajaryr de Campos foi igualmente assassinada, já que não podiam deixar testemunhas do acontecido.

Depois a brigada da PIDE levaria os corpos para uma vereda, sete quilómetros a sul da vila fronteiriça de Villanueva del Fresno, num local conhecido como Camiño de los Malos Passos, por ser rota de contrabandistas, onde foram enterrados.

Villanueva del Fresno, local onde a PIDE enterrou Humberto Delgado, hoje assinalado por um monumento.
Villanueva del Fresno, local onde a PIDE enterrou Humberto Delgado, hoje assinalado por um monumento.

Um dos carros da brigada tinha trazido cal e pás desde Lisboa, para usar no enterramento, o que configura uma evidente premeditação. Dois meses depois os corpos são encontrados por dois rapazes. As autoridades espanholas que tinham registado a entrada de uma brigada da PIDE naquelas datas, pela fronteira de S. Leonardo, contactam Lisboa para concertar alguma estratégia de ocultação entre as duas ditaduras, mas Salazar recusa. Perante isso entregam o inquérito a um juiz que, com testemunhos do local do crime e a autópsia, estabelece a verdade dos factos.

Local onde a PIDE enterrou Arajaryr Campos (a alguns metros de Humberto Delgado).
Local onde a PIDE enterrou Arajaryr Campos (a alguns metros de Humberto Delgado).

Todos estavam implicados, nomeadamente desde o chefe de brigada, e por aí subindo na hierarquia toda até chegar à figura de Salazar.

Sempre sob a orientação pessoal de Salazar (que despachava diretamente com o Diretor), tudo o que era importante ser feito dentro da PIDE tinha o aval do ditador.

Jamais um assassinato, com tão grandes repercussões políticas, seria efetuado sem a concordância de Salazar.


Notas:

1 Diana Andringa, Humberto Delgado – obviamente assassinaram-no, RTP, 2005.

2 Manuel Geraldo, Memória de um processo – A segunda morte do General Delgado, Lisboa, Edições Caso, 1982.

3 Frederico Delgado Rosa, Humberto Delgado: biografia do general sem medo, Lisboa, A Esfera dos Livros, 2015.

Álvaro Arranja
Sobre o/a autor(a)

Álvaro Arranja

Professor e historiador.