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Grécia: um governo perigoso, que se agarra ao poder por todos os meios

O escândalo das escutas telefónicas a opositores do governo e jornalistas independentes abalaram a governação de Mitsotakis. E parece difícil que das eleições do próximo ano saia uma maioria estável de governo. Por Antonis Ntavanellos
Kyriakos Mitsotakis. Foto União Europeia.

O governo da Nova Democracia (ND) dirigido por Kyriakos Mitsotakis, o líder proeminente da fação ultra-neoliberal do partido de direita, enfrenta a crise política mais grave desde que chegou ao poder a 8 de Julho de 2019, depois de o SYRIZA ter perdido as eleições.

As revelações sobre as escutas telefónicas do Serviço Nacional de Informações (EYP) de opositores políticos do governo, bem como de jornalistas independentes invocando razões de "segurança nacional", são um escândalo político estrondoso. Não há dúvida de que terá graves consequências.

Mitsotakis e o Estado privatizado

Na origem deste escândalo está uma política de... privatização no núcleo duro do Estado burguês, aquele que opera no campo do "contra-terrorismo" e da espionagem, que é o domínio tradicional do célebre EYP, um serviço estatal opaco que foi generosamente financiado e totalmente "protegido" por todos os governos gregos - incluindo o de SYRIZA.

Esta política de privatização tem sido destacada de duas maneiras. Primeiro, existe a cooperação entre o Estado e o setor privado, com empresas de "segurança" que fornecem spyware ilegal e incontrolável. Em segundo lugar, este obscuro mecanismo de vigilância e controlo de dados e atividades (com óbvias possibilidades de chantagem) foi colocado sob o controlo direto de Kyriakos Mitsotakis e do seu séquito, sem utilizar o pretexto de que tal atividade seria organizada em benefício do regime sociopolítico como um todo.

Depois de chegar ao poder, Kyriakos Mitsotakis colocou o controlo do EYP directamente sob a sua responsabilidade. Nomeou Panagiotis Kontoleon como chefe do EYP, um homem do setor privado que tem experiência como chefe de uma empresa de segurança [a filial grega da transnacional G4S]. Ao fazê-lo, Mitsotakis quebrou com uma longa tradição segundo a qual o chefe do EYP é sempre um distinto "funcionário do Estado", geralmente um diplomata ou oficial de carreira. Além disso, Mitsotakis confiou a "coordenação" do Gabinete do Primeiro Ministro (que agora inclui a liderança política do EYP) ao seu sobrinho, Grigoris Dimitriadis. É um jovem lobo, que já tinha provado a sua "flexibilidade e eficiência" em escândalos e fraudes do passado (nomeadamente no setor da energia).

As escutas telefónicas oficialmente autorizadas atingiram um número sem precedentes de 15.000 a 17.000 por ano, mais uma vez por razões de "segurança nacional". Deve lembrar-se que o número real é muito mais elevado, uma vez que o EYP mantém o privilégio de decidir se deve controlar todos os interlocutores de cada "suspeito" cujo controlo tenha sido "autorizado". Todas estas pessoas foram colocadas (por razões de "segurança nacional") num espaço obscuro onde não existem direitos democráticos ou garantias constitucionais. Como parte da vigilância, um núcleo específico do EYP utilizou o spyware Predator, que é fornecido em leasing pela Intellexa, uma empresa de vigilância israelita. Não é por acaso que se diz que a Intellexa tem laços financeiros com o sobrinho do Primeiro Ministro e coordenador do governo, o jovem advogado Dimitriadis! [1]

O governo em estado de choque com o Predator

A primeira fissura nesta estrutura sinistra apareceu quando ficou provado que o EYP tinha instalado o spyware Predator no telemóvel de um jornalista, Thanasis Koukakis [jornalista financeiro a trabalhar para a CNN Grécia], que investigava os escândalos financeiros do período anterior (incluindo uma lei do governo Mitsotakis que permitiu a "reabertura" de algumas contas bancárias importantes que estavam anteriormente "bloqueadas" devido a suspeita de branqueamento de dinheiro). A fissura transformou-se numa fenda quando ficou provado que o EYP tinha posto o telemóvel sob escuta do eurodeputado eleito em 2014, Nikos Androulakis, quando ele era candidato à liderança do PASOK.

Nikos Androulakis ganhou confortavelmente as eleições do partido e é o atual líder do PASOK [desde 12 de Dezembro de 2021]. A sua vitória deve-se principalmente ao facto de, ao contrário do seu rival Andreas Loverdos [que foi Ministro da Educação de Junho de 2014 a Janeiro de 2015 sob o governo da Nova Democracia de Antonis Samaras], ter recusado comprometer-se a formar uma coligação com Mitsotakis no caso da Nova Democracia necessitar de apoio parlamentar para governar após as próximas eleições. O motivo de uma potencial chantagem política contra Androulakis é mais do que óbvio.

Na tempestade política que se seguiu às revelações, até as publicações abertamente pró-governamentais já não conseguiam defender Mitsotakis. Kathimerini (um diário do armador Giannis Alafouzos) revelou que existem pelo menos sete ou oito outros opositores políticos de Mitsotakis que estão sob vigilância. Christos Spirtzis - ex-ministro das Infra-estruturas, Transportes e Redes de 4 de Novembro de 2016 a 9 de Julho de 2019 e braço direito de Alexis Tsipras - já alegou que o spyware Predator foi instalado no seu telemóvel. To Vima (um jornal propriedade do armador Evangelos Marinakis) revelou que a Intellexa fornece software espião Predator em regime de aluguer a mais de 30 clientes na Grécia, para além do EYP e outras autoridades públicas. Parece que grupos empresariais, bancos, fundos de investimento e outros estão envolvidos no desporto da vigilância ilegal (o custo do aluguer do Predador ou outro spyware é de pelo menos 8 milhões de euros por "alvo"...).

Perante o peso destas revelações, Mitsotakis foi obrigado a pedir as demissões de Panagiotis Kontoleon e Grigoris Dimitriadis, culpando-os por "falhas operacionais". Mas no debate parlamentar, tentou proteger o potencial de vigilância, defender as atividades do EYP e bloquear qualquer investigação adicional invocando a natureza "classificada" das operações de contra-terrorismo e espionagem. A sua irmã, Dora Bakoyannis [o seu filho é o presidente da câmara de Atenas], avisou publicamente todos os envolvidos para se calarem, declarando que qualquer pessoa que comprometa a segurança de informações 'classificadas' enfrenta 10 anos de prisão. Para justificar este tipo de maquinações, Mitsotakis retrata a Grécia como estando em estado de guerra: refere constantemente a ameaça de "invasões" de imigrantes/refugiados e algum tipo de ameaça "híbrida" da Turquia. Mais uma vez, está provado que o racismo e o nacionalismo são uma ameaça aos direitos democráticos da maioria da sociedade.

Pois todos compreendem que se Kyriakos Mitsotakis não hesita em ultrapassar todos os limites contra o líder de um partido, como o PASOK, que já foi maioria e esteve no poder, então o que poderia sobrar dos direitos dos sindicalistas militantes, ativistas do movimento social, membros organizados da esquerda política?

O início do desagregamento da Nova Democracia

A incapacidade do governo em apresentar uma defesa convincente face ao escândalo da vigilância pôs em evidência as dificuldades que Mitsotakis enfrenta no seio do seu próprio partido, e especialmente nos seus esforços para permanecer ao leme de um bloco político mais amplo "anti-esquerda" que se formou na Grécia durante as lutas de 2010-15 (poderia ser descrito grosso modo como o bloco político que defendeu o "sim" no referendo de 5 de Julho de 2015). Assim, Kostas Karamanlis - antigo primeiro-ministro [de 2004 a 2009] e antigo líder da Nova Democracia [de 1997 a 2009] e membro da poderosa família que tradicionalmente lidera uma fração do partido chamada "direita popular" - tinha optado pela tática do silêncio total desde a eleição de Mitsotakis como líder do partido. Recentemente, contudo, inverteu esta tática pela primeira vez. Apelou a uma investigação completa sobre o Mitsotakisgate e advertiu que não é politicamente aceitável invocar a natureza "secreta" das operações dos serviços de segurança para contornar a supervisão parlamentar e os procedimentos constitucionais.

Este foi também o argumento político dos antigos sociais-democratas que representam o "centro extremo" na Grécia, tais como Evangelos Venizelos [vice-primeiro-ministro de Junho de 2013 a Janeiro de 2015 no governo Antonis Samaras], Anna Diamantopoulou [comissária europeia para o emprego de 1999 a 2004, então ministra da educação, entre outros], Nicos Alivizatos [ex-ministro do interior, brevemente em 2004], etc. Desde 2013, este meio político tem sido um aliado valioso para o partido de direita e uma "reserva" útil para Mitsotakis, em antecipação da difícil batalha eleitoral da Primavera de 2023.

Por muito importante que seja, o escândalo da vigilância não é suficiente para explicar estes movimentos. Podem parecer agora moleculares, mas ameaçam a coesão da corrente política que permitiu a vitória eleitoral da direita em 2019. O escândalo também não é suficiente para explicar as mudanças óbvias na apresentação internacional de Mitsotakis. As principais publicações e meios de comunicação social internacionais estão a relatar as revelações e a apoiar uma investigação mais aprofundada, enquanto os políticos da Nova Democracia estão sob forte pressão no seio das instituições da União Europeia. O fracasso da política económica e social de Mitsotakis está na raiz deste desenvolvimento, o que poderá conduzir a uma nova crise social e política profunda na Grécia.

Ao discursar na anual Feira Internacional de Salónica, Kyriakos Mitsotakis escolheu recordar à classe dirigente a sua determinação em servir os seus interesses. Reduziu ao mínimo a tributação dos lucros; reduziu drasticamente as contribuições dos empregadores para a segurança social; eliminou qualquer controlo ou tributação sobre a transferência de heranças de grandes fortunas; e acima de tudo insistiu na flexibilização das relações laborais, bem como na reforma reacionária da legislação laboral, a fim de tornar mais difícil a ação grevista e a organização sindical. Esta política tem de facto produzido alguns resultados. Apesar das dificuldades da economia internacional, as empresas cotadas na bolsa de valores estão a registar grandes lucros. As exportações do capitalismo grego estão a bater recordes atrás de recordes. As receitas do turismo permanecem a níveis muito elevados, enquanto os armadores gregos veem na guerra na Ucrânia novas oportunidades (legais e não tão legais...) de transferir GNL (gás natural liquefeito) dos EUA e petróleo russo.

Crise de liderança política e governamental

Mas, do outro lado da sociedade, a situação é marcada pelo desespero. Segundo estimativas sindicais, em 2022 o salário médio de um trabalhador a tempo inteiro perdeu 19,2% do seu poder de compra. Ao descer a escada do rendimento, onde as pessoas têm de gastar todo o seu rendimento para cobrir as suas necessidades básicas no imediato, o impacto da inflação é ainda mais grave: o salário médio de um trabalhador a tempo parcial [um estatuto que é tudo menos excecional] perdeu 30% do seu poder de compra em 2022. Na Grécia, 30% dos agregados familiares da classe trabalhadora gastam 45% do seu rendimento mensal em habitação (renda e contas da luz, etc.).

Esta escalada extrema da desigualdade social é uma preocupação política, mesmo nos círculos do establishment conservador. A previsão de que serão necessárias amplas coligações governamentais para organizar um consenso social mais alargado está a tornar-se cada vez mais proeminente na grande imprensa.

Este clima de ansiedade política no país é combinado com um certo nível de mal-estar que se reflete na atitude de algumas instituições europeias. Os fundos europeus de "solidariedade" são fornecidos à Grécia para serem utilizados para apoiar os interesses gerais do sistema no seu conjunto. Assim, não é fácil para a Comissão Europeia e as suas instituições sentarem-se e observarem em silêncio enquanto o grupo em torno de Mitsotakis organiza uma "feira" que assegura uma distribuição que só beneficia os acólitos do primeiro-ministro.

Por enquanto, a liderança da Nova Democracia permanece no controlo da situação política, optando por realizar uma eleição no final do mandato de quatro anos de Mitsotakis, na Primavera de 2023. Mas ninguém pode ter a certeza de que até lá Mitsotakis estará numa posição melhor, ou mesmo que o seu governo irá durar até lá. Pois todos sabem que o Inverno será duro.

As sondagens de opinião que foram publicadas após o Mitsotakisgate alertam para o risco de um impasse político nas eleições de 2023. As suas principais conclusões podem ser resumidas assim:.

1° A perspetiva de uma maioria parlamentar para a Nova Democracia já não é possível. A perspetiva de uma coligação governamental entre a Nova Democracia e o PASOK existe quanto ao número de representantes eleitos necessários, mas já não é politicamente viável, na sequência da rutura das relações de Mitsotakis com a atual liderança do PASOK e também com outros políticos social-democratas, que até há pouco tempo tinham estado mais "dispostos", como Evangelos Venizelos.

2° A perspetiva alternativa de uma coligação entre o SYRIZA e o PASOK existe em termos de força eleitoral, mas ainda enfrenta problemas políticos importantes. A declaração de Nikos Androulakis, em Setembro, de que o seu objetivo é a formação de um governo sob o lema "Nem Mitsotakis - nem Tsipras" é uma indicação disso mesmo.

3° As restantes perspetivas, quer de uma Grande Coligação (ND-SYRIZA) ou de um governo tecnocrático, quer através de mudanças nos principais partidos políticos com a emergência de "novas e imaculadas lideranças" são ainda incertas e não foram tomadas medidas concretas para tal orientação.

As sequelas passadas e presentes da orientação de Tsipras

Este retrato da situação político-governamental - sem resposta clara à questão central do poder governamental durante os próximos seis a nove meses - é uma expressão da instabilidade política que está a emergir e que pode acelerar à medida que o escândalo de vigilância se desenrola. Em última análise, as esperanças de Kyriokos Mitsotakis de manter o controlo do jogo político assentam na impressionante fraqueza da oposição e especialmente do SYRIZA.

A posição de Alexis Tsipras é fragilizada pelas iniciativas do seu governo entre 2015 e 2019. Dados sobre as atividades do EYP (que tiveram de ser tornados públicos nesta fase do escândalo) mostram que o primeiro aumento do número de escutas telefónicas teve lugar em 2016, quando Tsipras teve de lidar com a imposição do terceiro memorando e a cisão do SYRIZA em Agosto [cerca de 25 deputados]. Além disso, as negociações entre o Estado grego e a Intellexa - que introduziu o spyware Predator no país - começaram em 2016, abrindo caminho para os escândalos atuais de Grigoris Dimitriadis e dos seus amigos. Mas a posição de Tsipras é ainda mais enfraquecida pela estratégia política que escolheu para o SYRIZA, uma estratégia totalmente "institucional", ajustada às necessidades de aliar-se ao partido social-democrata e à perspetiva de um governo "progressista", ou seja, uma estratégia que gira unicamente em torno de eleições.

Enquanto Kyriakos Mitsotakis discursava em Salónica a 10 de Setembro, Tsipras foi o orador principal no festival anual da juventude do SYRIZA. Estava a dirigir-se ao público mais radical que restava no partido. A única coisa que ele escolheu dizer aos jovens das fileiras do partido foi um apelo a... votarem, sempre que se realizem eleições.

Esta política dá a Mitsotakis a oportunidade de se defender. Mas mais importante, dá ao establishment a oportunidade de mudar o eixo político numa direção conservadora, na sua busca de uma alternativa eleitoral/governamental após as eleições.

Face ao que parece ser um Inverno mais do que difícil, a questão crucial é se o movimento da classe trabalhadora e os jovens encontrarão forças para intervir de forma massiva e independente. Isto irá determinar o destino das suas exigências face à crise, mas terá também um impacto importante na situação política.


Antonis Ntavanellos é membro da organização Esquerda Operária Internacionalista (DEA), pertenceu ao Secretariado do Syriza e depois à direção da União Popular. Publicado em A l'Encontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net

Nota:

[1] De acordo com Le Monde de 8 de Agosto de 2022: "O software Predator é comercializado na Grécia pela empresa Intellexa, cujo CEO é Tal Dilian, um antigo agente dos serviços secretos israelitas. O seu custo, de 14 milhões de euros, torna difícil o acesso aos particulares". O vice-director da Intellexa, de acordo com relatórios dos media gregos, Felix Bitzios, foi um colaborador próximo de Grigoris Dimitriadis, sobrinho de Mitsotakis. (Nota do editor)

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