Grécia: após o "acidente" ferroviário, nada fica como antes

26 de março 2023 - 18:48

Com as sondagens a indicarem a queda contínua do partido da direita, Mitsotakis procura adiar as eleições na esperança de recuperar intenções de voto. Mas esta tática está repleta de riscos. Por Antonis Ntavanellos.

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Primeiro-ministro grego Kyriakos Mitsotakis. Foto União Europeia.

Todos os analistas políticos da imprensa tradicional e institutos de sondagens partilham a mesma estimativa sobre o impacto político do "acidente" mortal em Tempé, ou seja, a colisão frontal de dois comboios nos caminhos-de-ferro privatizados na Grécia [ver o artigo de Antonis Ntavanellos publicado neste site a 13 de Março]. Este é um acontecimento importante que marca claramente uma rotura no tempo político, dividindo-o num "antes" e num "depois". Nada fica como antes.

O crime de Tempé "resumiu" à sua maneira as amargas experiências acumuladas no passado pelas camadas populares. Teve um grande peso e deu-lhes uma orientação política. Estas experiências referem-se, por um lado, às mortes recorde durante a pandemia, à precariedade do trabalho, à austeridade salarial e ao elevado custo dos alimentos, e, por outro lado, aos lucros indecentes dos grupos industriais e comerciais, ao colossal programa de armamento, ao escândalo da vigilância do Serviço Nacional de Informações, tudo isto (e mais) entrelaçou-se e traçou uma imagem clara da realidade existente.

Este entendimento mais lúcido já não é partilhado apenas por uma vanguarda política importante mas pequena, mas também por uma grande parte da sociedade. Esta consciência levou a uma explosão de raiva. As lutas sociais e políticas do passado, que se baseavam principalmente na atividade organizada das forças de esquerda, demonstraram agora o seu valor: a cólera das massas foi expressa com uma dinâmica em direção à esquerda do espectro político. Ela utilizou o repertório prático "típico" da classe trabalhadora e do movimento de esquerda: greves e manifestações de massas que infligiram sérios golpes ao governo de Kyriakos Mitsotakis [em funções desde 8 de Julho de 2019], que já se encontrava no centro das atenções devido às suas responsabilidades óbvias no crime.

Após a fatídica noite de Tempé, foram organizadas com sucesso duas greves gerais de 24 horas (a 8 e 16 de março). Estes dias de greve também deram lugar a manifestações de grande dimensão nas grandes cidades. Nas cidades médias e pequenas, mesmo nas zonas mais remotas ou conservadoras do país, as manifestações foram as maiores desde as mobilizações de massas de 2010-2013. Nas ruas, foi possível constatar a grande presença e atividade dos jovens, alicerçada em iniciativas de protesto nas universidades e escolas secundárias, ligando a sua raiva contra Tempé à sua rejeição da repressão governamental e do autoritarismo, mas também das medidas de privatização da educação pública.

O ambiente de protesto penetrou em espaços onde existe uma tradição de "não-política", como os estádios de futebol. Nos dias de jogo, os adeptos agitam sistematicamente "mega-faixas" denunciando a privatização e a primazia dos lucros sobre a vida. Isto apesar dos esforços das autoridades futebolísticas e dos proprietários dos clubes para os impedir.

Os protestos são apoiados por uma maioria social mais ampla, incluindo setores que não participam nas mobilizações propriamente ditas. Há aqui um elemento substancial de força política. Nas manifestações do dia da greve, tais como a 16 de março, o governo testou o método repressivo através do destacamento de unidades especiais da polícia que recorreram intensivamente ao gás lacrimogéneo. No entanto, em vez de criar medo, as imagens dos confrontos nas ruas provocaram uma escalada da raiva. Mitsotakis foi forçado a recuar de forma desordenada. Demitiu o chefe da polícia, deixando entender que tinha sido "demasiado zeloso".

O aparecimento de mobilizações de massas durante o período pré-eleitoral "delicado" é um fenómeno raro na história política grega. Mas parece que vai continuar. Os sindicalistas de esquerda já estão a pressionar para mais uma greve geral de 24 horas antes da Páscoa. Qualquer que seja o resultado dos protestos sociais, o impacto político que eles já tiveram é significativo.

No seio do partido de direita Nova Democracia, o grupo dirigente em torno de Mitsotakis já se encontra numa situação crítica. Mesmo quando uma maioria de analistas considerou Mitsotakis como um líder de grande estatura e potencial papel a longo prazo para o capitalismo grego, defendemos em artigos anteriores que as suas políticas neoliberais extremas já tinham minado o apoio eleitoral/político da direita e a confiança da classe dirigente nele depositada. Isto conduziu inicialmente a um debate público em torno da perspetiva de governos "de amplo consenso".

Mitsotakis optou por resistir a esta tendência, perseguindo o objetivo de um governo de partido único, assegurando uma maioria absoluta para a Nova Democracia, a fim de promover uma continuidade constante das contra-reformas neoliberais. Nas condições tempestuosas que se seguiram a Tempé, apresentou para discussão e votação no Parlamento as decisões de privatização: do único hospital público infantil que trata do cancro, destinado a ser "oferecido" à poderosa família Vardinogiannis... [presente no petróleo, na navegação, no imobiliário, na banca e nos media]; e da rede pública que gere os recursos hídricos, o que já provocou novas mobilizações, pois é considerada uma contra-reforma brutal e muito importante...

O próprio Mitsotakis e os yuppies que o rodeiam - é interessante notar que muitos deles vêm de um contexto social-liberal... - estão orientados para uma estratégia thatcherista, o que implica que estão a apostar o seu futuro político na implementação em larga escala da sua orientação política em todas as frentes. Mas este compromisso rígido com uma estratégia neo-liberal reduz consideravelmente o potencial de manobra tática por parte de um governo que já está na corda bamba.

Numa tentativa de mudar de assunto após Tempé, o Governo organizou uma campanha de comunicação em torno de aumentos salariais iminentes. Mas quando saíram as decisões, a "surpresa" transformou-se em amargura: o salário mínimo mensal dos trabalhadores a tempo inteiro mantém-se nos 780 euros (antes de impostos e contribuições para a segurança social), enquanto o salário mínimo diário dos operários é "aumentado" de 31,85 para 34,84 euros (antes de impostos e contribuições para a segurança social). No entanto, os contratos formais são em grande parte a tempo parcial, mesmo que o trabalho seja a tempo inteiro. Isto é, portanto, um escárnio que tem sido denunciado mesmo pelos setores mais conservadores da burocracia sindical. Confrontado com a reivindicação sindical de aumentos salariais para compensar a inflação [a taxa de inflação em fevereiro de 2023 para a alimentação era de 14,8% em comparação com o mesmo mês do ano passado], o Governo argumenta que a introdução de uma "espiral salários-preços" seria um "pesadelo" para a competitividade das empresas gregas.

Face a esta situação política, a Nova Democracia está a caminho de uma derrota política. Depois de Tempé, todas as sondagens indicam uma queda de mais de 5% no seu apoio eleitoral. Mitsotakis enfrentou a situação adiando as eleições - para o final de maio? para o verão? Em setembro, esgotando assim todos os limites constitucionais? - na esperança de que, dentro de algumas semanas ou meses, o apoio eleitoral seja recuperado. Mas esta tática está repleta de riscos.

Antes de mais, não há nada no horizonte que aponte para um potencial crescimento do apoio político à direita. Pelo contrário, mesmo a grande imprensa adverte que, se o objetivo de obter uma maioria absoluta já está perdido para o partido de direita, o prolongamento do período pré-eleitoral poderá levar à perda da primeira posição nas eleições.

Em segundo lugar, o desmantelamento de todos os serviços públicos que têm de fornecer elementos de segurança acarreta o risco constante de um novo "acontecimento" como o de Tempé. A imprensa adverte que navios no Egeu (transportando mais de 35 milhões de passageiros durante o Verão), autocarros urbanos nas ruas, hospitais públicos com falta de pessoal, serviços de bombeiros, etc. há muito que ultrapassaram a "linha vermelha" em termos de segurança. Todos compreendem que outra tragédia [incêndio, naufrágio, acidente rodoviário] como Tempé conduziria a um colapso imediato e desordenado do Governo...

Nesta situação, um dos factos políticos mais marcantes é a estagnação do apoio ao SYRIZA. O declínio da Nova Democracia reduz a diferença entre os dois partidos, mas a estagnação (ou mesmo um ligeiro declínio) de SYRIZA não produz uma solução governamental alternativa. De facto, segundo as atuais sondagens, mesmo uma aliança do SYRIZA com o PASOK [o PASOK restruturado recuperou força eleitoral nas eleições de 2019] não é suficiente para formar uma solução governamental alternativa. Ao campo "progressista" deve juntar-se um terceiro partido (talvez o partido de Yanis Varoufakis?) a fim de reclamar uma maioria.

A interpretação desta estagnação do SYRIZA é politicamente simples. Alexis Tsipras falhou em se livrar das suas responsabilidades na traição de 2015. E o que aconteceu a seguir é um lembrete destas responsabilidades: o ato final da privatização dos caminhos-de-ferro gregos foi assinado pelo SYRIZA no poder. Mais importante, Tsipras está relutante em comprometer o seu partido, mesmo em compromissos básicos que poderiam convencer alguns eleitores de que ter uma "segunda oportunidade" no poder permitiria uma direção diferente em termos de implementação de certas medidas a favor dos trabalhadores, medidas que exigiriam uma rotura com o status quo ante. Tsipras tem evitado sistematicamente comprometer-se com a renacionalização dos caminhos-de-ferro. Declarou que um possível governo liderado por ele "renegociaria os termos do contrato com a FDSI-Ferrovie dello Stato Italiane" [proprietária da Hellenic Train SA], mesmo quando os principais membros do PASOK falam de "rescisão do contrato com os italianos" e de excluir a FDSI de qualquer discussão sobre o futuro dos caminhos-de-ferro gregos. Esta é uma prova clara da trajetória política do SYRIZA: Tsipras reivindica o poder governamental como líder de um "campo" de centro-esquerda que completou a sua mutação para o social-liberalismo.

Afinal, esta é a razão pela qual Tsipras está a acelerar as mudanças dentro do partido no sentido da sua transformação numa força do 'centro' político. Os cargos cruciais no partido são ocupados por social-democratas que serviram o projeto de 'modernização' (uma versão grega da 'terceira via' blairista) do ex-primeiro-ministro e ex-líder do PASOK Kostas Simitis [presidente do Movimento Socialista Panhellénico-PASOK de 30 de junho de 1996 a 7 de janeiro de 2004 e primeiro-ministro de janeiro de 1996 a 10 de março de 2004]. O cargo de porta-voz do partido é ocupado [desde 1 de janeiro de 2023] por Popi Tsapanidou, uma jornalista "brilhante" que fez carreira a trabalhar nos programas da manhã nos principais canais privados de televisão [ANT1, Open TV].

É muito provável que as listas eleitorais do SYRIZA incluam políticos de uma corrente do partido de direita - uma corrente tradicionalmente próxima do antigo líder Kostas Karamanlis [primeiro-ministro de 10 de março de 2004 a 6 de outubro de 2009] - tais como, entre outros, Evangelos Antonaros, antigo porta-voz de um governo da Nova Democracia [expulso em 2018]. Este cartel de partido-eleitoral do centro-esquerda apresenta-se como assegurando uma maior eficiência eleitoral mas é ainda incapaz de obter uma vitória política clara, depositando as suas esperanças num Mitsotakis que está a apodrecer cada vez mais a partir do interior.

Este declínio simultâneo da Nova Democracia e a estagnação do centro-esquerda liderado por Tsipras colocam um problema político à classe dirigente. É a primeira vez desde a queda da ditadura em 1974 que nos encontramos a meio de um período pré-eleitoral e os capitalistas locais não sabem quem será o próximo governo. Contudo, isto está a acontecer num momento delicado para o capitalismo grego. A ameaça de deterioração financeira internacional lembra-nos que o clima local de "sucesso" é instável e incerto. Petros Efthymiou, um antigo ministro social-democrata experiente, traçando um paralelo com a queda do comboio de Tempé, disse que "o país está a dirigir-se imprudentemente para uma colisão frontal no final de 2023". Ele aponta para a decisão europeia de pôr fim ao período de "relaxamento" financeiro e de regressar às regras do Pacto de Estabilidade. Recorda que a dívida grega está próxima dos 190% do PIB e acredita que mesmo que o Pacto de Estabilidade seja revisto de uma forma mais favorável, as pressões sobre qualquer governo grego continuarão a ser sufocantes assim que o Pacto esteja de novo em vigor.

É neste contexto que tem havido um forte aumento das previsões de que o resultado das próximas eleições resultará num governo de "amplo consenso". Alguns órgãos de imprensa (incluindo a imprensa de direita!) começaram a publicar nomes de personalidades 'independentes' que poderiam assumir o cargo de primeiro-ministro num 'governo técnico' com o apoio parlamentar de dois, três ou mais partidos. Entre eles encontramos o banqueiro central Giannis Stournaras [em funções desde junho de 2014] - que durante anos tentou apresentar-se como um Mario Draghi grego - ou o constitucionalista Nikos Alivizatos, um proeminente representante do centro democrático, mas que também desempenhou um papel de liderança na formação da "frente anti-esquerda" em 2010-15, a fim de garantir que a Grécia permanecesse na zona euro. E estamos apenas no início destes debates...

Um tal cenário não será assim tão fácil ou simples de concretizar. Uma "solução" desse tipo implica uma crise nos dois principais partidos: a queda de Mitsotakis da liderança da Nova Democracia e um desafio ao domínio de Tsipras no seio do SYRIZA. Mas acima de tudo, tal "solução" não dará origem a um governo estável capaz de responder eficazmente à nova vaga de reivindicações da classe trabalhadora.

Após Tempé, a tendência para votar anti-sistema tem aumentado. Isto pode levar a um aumento no apoio eleitoral ao Partido Comunista e ao MERA25 de Yanis Varoufakis. No que nos diz respeito, este seria um resultado positivo no "aumento da temperatura" do nosso povo. Traduzirá um maior potencial para a oposição da esquerda e a partir de baixo para qualquer novo governo, que começará a "tomar conta dos assuntos" a partir de onde Mitsotakis os deixou.

Mas o mais importante será um período eleitoral marcado pela tendência de crescimento das lutas e pela emergência de uma plataforma "transitória" de reivindicações da classe trabalhadora, elaborada e estabelecida como base para lutas unidas, massivas e radicais. Com o objetivo de transformar a crise política do governo Mitsotakis num verdadeiro potencial para fazer recuar as contra-reformas neoliberais e derrotá-las.


Antonis Ntavanellos é membro da direcção da DEA e editor do jornal Ergatiki Aristera. Artigo recebido a 21 de Março de 2023; traduzido e publicado por A l'Encontre. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.

 

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