Após eliminar o Ministério dedicado aos direitos das mulheres e à diversidade, decretar o fim da linguagem inclusiva nas comunicações oficiais, dissolver a área dedicada à proteção das vítimas de violência de género e cortar 80% do orçamento para o programa “Acompanhar”, que apoiava as sobreviventes, o governo ultradireitista de Javier Milei está agora empenhado numa campanha que tem como alvo as escritoras feministas como Dolores Reyes, autora de “Cometierra”, ou Aurora Venturini, a falecida autora de “As Primas”, o romance que a consagrou aos 85 anos, as duas consideradas referências da literatura latinoamericana contemporânea.
No caso da primeira obra, a vicepresidente Victoria Vallarruel fala em “degradação e imoralidade” de um livro que considera “pornográfico” e que quer retirar das bibliotecas escolares.
“Este é o caso mais brutal de censura a escritoras de que temos conhecimento desde que Milei tomou posse na Argentina. Se toda a literatura fosse lida do ponto de vista dos ultraconservadores, restaria muito pouca literatura. Nem sequer o Dom Quixote estaria nas bibliotecas, para não falar da Bíblia, onde se encontram coisas como duas filhas que violam o pai ou até um homem que manda matar outro homem para ficar com a mulher do primeiro”, indigna-se uma das autoras visadas, cuja identidade prefere manter no anonimato para evitar ameaças de morte, ‘como já aconteceu a várias companheiras’, disse ao Público.es.
Tal como acontece noutros países, a campanha dos extremistas contra a literatura feminista assenta em mentiras para escandalizar o público, como a da idade dos destinatários destes livros. Por exemplo, afirmam que os professores obrigam as crianças de doze anos a lerem em voz alta as cenas de conteúdo sexual nas aulas, quando na verdade estes livros são de leitura facultativa e para maiores de 16 anos. “Isto afeta de forma terrível a nossa liberdade de expressão porque se trata de ataques coordenados que nos tratam como corruptoras de menores e vão ao ponto de fazerem ameaças”, afirma uma das autoras.
“Se querem ler ficção, que leiam em casa”
“As crianças têm de ler livros para educar. Se querem ler ficção, que leiam em casa”, afirmou Barbara Morelli, a responsável pela fundação que interpôs uma ação judicial contra o responsável pela pasta da Educação em Buenos Aires por “sexualizar menores de idade” ao permitir a inclusão de obras como “Cometierra” no programa educativo dedicado à diversidade.
Para contrariar esta campanha, as obras visadas pelos censores de Milei foram lidas coletivamente por 120 autores e autoras argentinas numa sessão solidária realizada há semanas que encheu o Teatro Picadero de Buenos Aires.
Outra consequência involuntária da campanha da ultradireita foi o boom das vendas de “Cometierra” nas livrarias nas últimas semanas, ultrapassando “A Vegetariana” da recém-Prémio Nobel da Literatura Hang Kang. A polémica deu uma nova vida a este livro publicado em 2019 e que conta a história de uma jovem da área metropolitana de Buenos Aires que descobre que consegue comunicar com os mortos ao comer terra. A obra aborda temas como os femicídios, a desigualdade, as ligações familiares e a busca por justiça.