Das conversas que tive com Mário Soares, de quem se celebra agora o centésimo aniversário do seu nascimento, recordo uma discussão de tática política em que ele impunha literalmente toda a unidade da esquerda: "Uni todas as forças contra o gonçalvismo, agora é preciso unir todas as forças contra o cavaquismo". Soares era Presidente e Cavaco primeiro-ministro. Soares tinha esse lado de prontidão de combate e não era seráfico. Se eu aqui anoto as suas posições é porque ele não se encobria no institucionalismo para poupar quem quer que fosse e disso não havia segredo. Soares temia, sob longa maioria absoluta de Cavaco, a “mexicanização” do país (ao modo do PRI do México) e insistia na denúncia do Estado Laranja que se apropriava da administração até aos poros. Vários anos depois, passados governos neoliberais do PS, Soares envolveu-se nas Aulas Magnas contra Passos Coelho e Paulo Portas com o mesmo entusiasmo com que organizou uns Estados Gerais anticavaquistas.
Desde o prenúncio do cavaquismo, Mário Soares estava advertido da viragem à direita internacional, com expressão portuguesa na direita mais conservadora. Pela análise social de uma vida, Soares alertava para a nebulosa reacionária que se condensava no PSD. Hoje, face à emergência da extrema-direita, podemos comprovar essa intuição. Dizer que Soares vociferou contra o neoliberalismo é dizer pouco. A sua crítica ao neoliberalismo foi muito incisiva, assentando em Tony Blair e em toda a social-democracia europeia, incluindo Guterres, que estava a privatizar o Estado social à peça e desistindo de regular o mercado. Para Soares, sem falha de lealdade partidária, isso tinha sido entregar "o ouro ao bandido", assim mesmo, como no aforismo popular. Daí ter saudado a geringonça de 2015 com otimismo excessivo . Excessivo porque o PS de Costa recuou para a cartilha liberal europeia assim que pode e se desembaraçou dos seus parceiros. E, por isso, foi promovido.
O mesmo Mário Soares que se combinou com o imperialismo norte-americano para travar a revolução em Portugal nos idos de 1975 - e foi isso a conspiração e o golpe do 25 de Novembro -, marchava anos mais tarde pelas ruas contra várias guerras levadas a cabo pelos EUA. Saliento o protesto enérgico face à invasão do Iraque, e a reprovação da violação do direito internacional e da própria ideia de "guerras preventivas".
Soares tratava a política internacional por tu e até aproveitava para nos gozar a seu jeito. Uma vez, explicou que interrompia brevemente uma reunião connosco para atender uma chamada telefónica do imperialismo americano, e riu-se da franqueza. O próprio secretário de Estado norte americano, Henry Kissinger, o subestimou, num episódio conhecido, apontando-o como o menchevique que iria ser eliminado pelos bolcheviques, numa alusão à história da revolução dos Sovietes. Os paralelos eram difíceis, porque a Revolução de Fevereiro de 17, que abriu o caminho à tomada do poder dos bolcheviques em Outubro do mesmo ano, não era o 25 de Abril; nem o PREC gerou qualquer poder alternativo, como sucedeu na Rússia.
Mencheviques e bolcheviques de uma geração mais nova haveriam de ter muitas diferenças, a começar pela transposição dos interesses atlantistas, no caso de Soares, e dos da União Soviética, por parte de Cunhal. Aquele que viria a ser fundador e líder do Partido Socialista, um ano antes do 25 de Abril, tinha-se insurgido contra o estalinismo e abandonou o PCP, ali pelos anos 50. Soares entendeu propor outro modelo para a "revolução socialista". O Programa original do PS, na sua Declaração de Princípios, afirma: "considerando a revolução socialista como marco fundamental da humanidade, o PS propõe um socialismo que acolha e desenvolva o pluralismo...". Soares entendia que podia haver diversidade de vias para o socialismo, embora no respeito pelos princípios do Estado de direito, combatendo os modelos burocráticos e totalitários de socialismo que ele próprio definia como antimarxistas. Dizia que esses modelos eram contraditórios com "a inspiração essencial do marxismo" (Declaração de Princípios do PS, 73).
O mesmo Soares, dois anos depois, "desmarxizou" o PS, embora continuando a criticar a social-democracia europeia pelo seu "neocapitalismo" e até, pasme-se, a sua expressão da época, a Comunidade Económica Europeia (CEE, que antecedeu a União Europeia), de que anos depois se tornou ardente defensor. Em 1978, volta a reposicionar o seu partido: "Não se trata de pôr o socialismo na gaveta" - e o país inteiro percebeu que era disso mesmo que Soares tratava. E se dúvidas pudessem existir, não resistiriam ao anúncio de um governo de coligação com o CDS, feito com aquele ar dos miúdos quando balbuciam um "foi sem querer". De arauto da revolução socialista, Soares passou à repressão do movimento popular em 1975 e ao "congelamento" da aplicação dos princípios socialistas da Constituição.
Ninguém nega a Soares os pergaminhos de destemido advogado de presos políticos, resistente antifascista na legalidade, na masmorra ou no exílio. Toda a sua vida foi a de um democrata exemplar. Soares merece essa homenagem e é um fundador do regime democrático, republicano e constitucional, saído da revolução de Abril. Os sacrifícios da sua militância foram compensados pelo fim do "Portugal Amordaçado". O povo deve-lhe a verticalidade com que desempenhou o seu papel na descolonização de África, fazendo jus aos movimentos de libertação, o que lhe valeu perpétuo ódio da extrema-direita e a exasperação de Spínola, irredutível defensor de federativas continuidades coloniais. O fim da guerra colonial abraçou tanto a minha geração como a chegada da democracia.
Com adversários ou aliados, era igualmente frontal e direto, tratava com valor democrático toda a gente e tinha um sarcasmo de acidez ultra. Mais do que as características bem conhecidas da personalidade de Soares, importa olhar para o seu percurso. O seu percurso demonstra que, nos tempos de hoje, não há espaço para uma social-democracia que se dobra à globalização neoliberal. A expressa insatisfação dos anos finais do ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República testemunhou essa impossibilidade e a impotência dessa intenção histórica. Nesses anos finais, Mário Soares identificou um espaço centrista, sempre a deslizar para a direita liberal - e não era fácil antecipar os seus movimentos. Frequentemente, o improvável aconteceu.
Essa conjunção moldou-lhe o carisma e desenhou a sua combatividade. E legitima que lhe apontemos as muitas gavetas do seu pensamento e ação, tantas vezes contraditórias, submetidas por ele à regra de que "só os burros é que não mudam de opinião". A história de Soares não é um hino à coerência, mas talvez seja um desafio a que a esquerda de hoje, ao convocar de novo a ideia socialista, seja firme e não dogmática, sem precisar de apontar ao simpático quadrúpede.