Política

As gavetas de Soares

06 de dezembro 2024 - 10:26

A história de Soares não é um hino à coerência, mas talvez seja um desafio a que a esquerda de hoje, ao convocar de novo a ideia socialista, seja firme e não dogmática.

porLuís Fazenda

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Mário Soares
Foto: JOSÉ SENA GOULÃO/LUSA

Das conversas que tive com Mário Soares, de quem se celebra agora o centésimo aniversário do seu nascimento, recordo uma discussão de tática política em que ele impunha literalmente toda a unidade da esquerda: "Uni todas as forças contra o gonçalvismo, agora é preciso unir todas as forças contra o cavaquismo". Soares era Presidente e Cavaco primeiro-ministro. Soares tinha esse lado de prontidão de combate e não era seráfico. Se eu aqui anoto as suas posições é porque ele não se encobria no institucionalismo para poupar quem quer que fosse e disso não havia segredo. Soares temia, sob longa maioria absoluta de Cavaco, a “mexicanização” do país (ao modo do PRI do México) e insistia na denúncia do Estado Laranja que se apropriava da administração até aos poros. Vários anos depois, passados governos neoliberais do PS, Soares envolveu-se nas Aulas Magnas contra Passos Coelho e Paulo Portas com o mesmo entusiasmo com que organizou uns Estados Gerais anticavaquistas.

Desde o prenúncio do cavaquismo, Mário Soares estava advertido da viragem à direita internacional, com expressão portuguesa na direita mais conservadora. Pela análise social de uma vida, Soares alertava para a nebulosa reacionária que se condensava no PSD. Hoje, face à emergência da extrema-direita, podemos comprovar essa intuição. Dizer que Soares vociferou contra o neoliberalismo é dizer pouco. A sua crítica ao neoliberalismo foi muito incisiva, assentando em Tony Blair e em toda a social-democracia europeia, incluindo Guterres, que estava a privatizar o Estado social à peça e desistindo de regular o mercado. Para Soares, sem falha de lealdade partidária, isso tinha sido entregar "o ouro ao bandido", assim mesmo, como no aforismo popular. Daí ter saudado a geringonça de 2015 com otimismo excessivo . Excessivo porque o PS de Costa recuou para a cartilha liberal europeia assim que pode e se desembaraçou dos seus parceiros. E, por isso, foi promovido.

O mesmo Mário Soares que se combinou com o imperialismo norte-americano para travar a revolução em Portugal nos idos de 1975 - e foi isso a conspiração e o golpe do 25 de Novembro -, marchava anos mais tarde pelas ruas contra várias guerras levadas a cabo pelos EUA. Saliento o protesto enérgico face à invasão do Iraque, e a reprovação da violação do direito internacional e da própria ideia de "guerras preventivas".

Soares tratava a política internacional por tu e até aproveitava para nos gozar a seu jeito. Uma vez, explicou que interrompia brevemente uma reunião connosco para atender uma chamada telefónica do imperialismo americano, e riu-se da franqueza. O próprio secretário de Estado norte americano, Henry Kissinger, o subestimou, num episódio conhecido, apontando-o como o menchevique que iria ser eliminado pelos bolcheviques, numa alusão à história da revolução dos Sovietes. Os paralelos eram difíceis, porque a Revolução de Fevereiro de 17, que abriu o caminho à tomada do poder dos bolcheviques em Outubro do mesmo ano, não era o 25 de Abril; nem o PREC gerou qualquer poder alternativo, como sucedeu na Rússia.

Mencheviques e bolcheviques de uma geração mais nova haveriam de ter muitas diferenças, a começar pela transposição dos interesses atlantistas, no caso de Soares, e dos da União Soviética, por parte de Cunhal. Aquele que viria a ser fundador e líder do Partido Socialista, um ano antes do 25 de Abril, tinha-se insurgido contra o estalinismo e abandonou o PCP, ali pelos anos 50. Soares entendeu propor outro modelo para a "revolução socialista". O Programa original do PS, na sua Declaração de Princípios, afirma: "considerando a revolução socialista como marco fundamental da humanidade, o PS propõe um socialismo que acolha e desenvolva o pluralismo...". Soares entendia que podia haver diversidade de vias para o socialismo, embora no respeito pelos princípios do Estado de direito, combatendo os modelos burocráticos e totalitários de socialismo que ele próprio definia como antimarxistas. Dizia que esses modelos eram contraditórios com "a inspiração essencial do marxismo" (Declaração de Princípios do PS, 73).

Mário Soares em 1975. Foto Hans Peters/Anefo/WikimediaCommons.
Mário Soares em 1975. Foto Hans Peters/Anefo/WikimediaCommons.

O mesmo Soares, dois anos depois, "desmarxizou" o PS, embora continuando a criticar a social-democracia europeia pelo seu "neocapitalismo" e até, pasme-se, a sua expressão da época, a Comunidade Económica Europeia (CEE, que antecedeu a União Europeia), de que anos depois se tornou ardente defensor. Em 1978, volta a reposicionar o seu partido: "Não se trata de pôr o socialismo na gaveta" - e o país inteiro percebeu que era disso mesmo que Soares tratava. E se dúvidas pudessem existir, não resistiriam ao anúncio de um governo de coligação com o CDS, feito com aquele ar dos miúdos quando balbuciam um "foi sem querer". De arauto da revolução socialista, Soares passou à repressão do movimento popular em 1975 e ao "congelamento" da aplicação dos princípios socialistas da Constituição.

Ninguém nega a Soares os pergaminhos de destemido advogado de presos políticos, resistente antifascista na legalidade, na masmorra ou no exílio. Toda a sua vida foi a de um democrata exemplar. Soares merece essa homenagem e é um fundador do regime democrático, republicano e constitucional, saído da revolução de Abril. Os sacrifícios da sua militância foram compensados pelo fim do "Portugal Amordaçado". O povo deve-lhe a verticalidade com que desempenhou o seu papel na descolonização de África, fazendo jus aos movimentos de libertação, o que lhe valeu perpétuo ódio da extrema-direita e a exasperação de Spínola, irredutível defensor de federativas continuidades coloniais. O fim da guerra colonial abraçou tanto a minha geração como a chegada da democracia.

Com adversários ou aliados, era igualmente frontal e direto, tratava com valor democrático toda a gente e tinha um sarcasmo de acidez ultra. Mais do que as características bem conhecidas da personalidade de Soares, importa olhar para o seu percurso. O seu percurso demonstra que, nos tempos de hoje, não há espaço para uma social-democracia que se dobra à globalização neoliberal. A expressa insatisfação dos anos finais do ex-primeiro-ministro e ex-Presidente da República testemunhou essa impossibilidade e a impotência dessa intenção histórica. Nesses anos finais, Mário Soares identificou um espaço centrista, sempre a deslizar para a direita liberal - e não era fácil antecipar os seus movimentos. Frequentemente, o improvável aconteceu.

Essa conjunção moldou-lhe o carisma e desenhou a sua combatividade. E legitima que lhe apontemos as muitas gavetas do seu pensamento e ação, tantas vezes contraditórias, submetidas por ele à regra de que "só os burros é que não mudam de opinião". A história de Soares não é um hino à coerência, mas talvez seja um desafio a que a esquerda de hoje, ao convocar de novo a ideia socialista, seja firme e não dogmática, sem precisar de apontar ao simpático quadrúpede.

Sobre o/a autor(a)

Luís Fazenda

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.
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