Gabriel Zucman: "A lista de paraísos fiscais da UE é uma anedota

18 de fevereiro 2024 - 14:07

O economista francês tornou-se uma figura de referência no estudo da fiscalidade mundial, bem como das injustiças e desigualdades geradas pelos sistemas fiscais concebidos ao gosto das multinacionais e dos milionários. Entrevista de Yago Álvarez Barba.

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Gabriel Zucman
Gabriel Zucman. Foto de Álvaro Minguito/El Salto

Que os paraísos fiscais estão a provocar uma perda considerável de receitas para os outros Estados, que os ricos escondem enormes somas de dinheiro graças a estes refúgios fiscais e que as multinacionais recorrem à engenharia fiscal para pagar menos do que uma PME são afirmações que quase ninguém ignora nesta altura. Mas talvez ninguém tenha realizado tantos estudos e investigações empíricas para desvendar estas práticas e propor soluções como fez o economista francês Gabriel Zucman.

Com o seu livro A riqueza oculta das nações [editado em Portugal pela Temas e Debates em 2014] e a investigação académica que resultou nesse texto, Zucman colocou-se no mapa dos economistas que se debruçaram sobre as desigualdades que geram um mundo cheio de paraísos fiscais e sistemas fiscais regressivos. Com a sua obra seguinte, com Emmanuel Saez, El triunfo de las injusticia: cómo los ricos evaden impuestos y cómo hacer que pagen (Taurus, 2019), Zucman desenhou um mapa para avançar para um sistema fiscal global mais justo, em que os ricos paguem uma parte mais justa, para além de tudo o que têm vindo a sonegar há décadas, e explica a importância dos impostos para o desenvolvimento das sociedades.

Depois de ter trabalhado como professor durante vários anos na Universidade de Berkeley, dirige atualmente o EU Tax Observatory, um centro de investigação de política fiscal promovido pela Comissão Europeia, responsável por investigar e propor políticas públicas para acabar com a evasão fiscal e que não evita apontar o dedo à própria União Europeia por permitir paraísos fiscais internos como a Irlanda, a Holanda ou o Luxemburgo. Veio a Madrid acompanhado pela Oxfam Intermon para apresentar o Global Tax Evasion Report 2024, que detalha a quantidade de dinheiro que as empresas espanholas e os ricos escondem nos paraísos fiscais, e recebe o El Salto para falar sobre as negociações em curso e os instrumentos propostos para avançar no sentido de uma justiça fiscal global.

Há dois meses, numa Assembleia Geral das Nações Unidas, assistimos à fratura entre os países do Sul e do Norte. Vimos como os países em desenvolvimento, liderados pelos africanos, concordaram em negociar um novo quadro fiscal global, enquanto os países do Norte, principalmente a UE e os EUA, o rejeitaram. Parece que os países ocidentais só querem um quadro fiscal justo quando são eles que o concebem e controlam.

Penso que estes países cometeram um enorme erro ao votarem, na sua maioria, contra a criação de um quadro global. É extremamente importante que o debate sobre a fiscalidade seja verdadeiramente global e inclusivo, o que não tem sido o caso do quadro da OCDE até à data, pela simples razão de que a OCDE não é uma organização global, mas representa apenas 38 países. É normal que os decisores políticos destes países estejam legitimamente zangados, mas têm de compreender que estes acordos internacionais, os do processo da OCDE, não são o fórum e a forma eficaz de o fazer. Espero que estes países deixem de ser tão protecionistas, é bom ter estes outros países e organizações na negociação. É bom ter alguma concorrência, ter outras organizações com novas ideias, com novas estruturas... por isso espero que estes países acabem por reconhecer isso.

Há uns dias, em Davos, vimos muitos líderes mundiais, incluindo Pedro Sánchez, fazerem discursos a favor de uma tributação mais justa, em que os que têm mais devem contribuir mais. Mas nesses mesmos discursos, poucos segundos depois, também elogiavam os benefícios do mercado livre, protegiam a globalização, a liberdade de capitais e defendiam novos acordos de comércio livre. Acha que tudo isto é compatível com um sistema fiscal global mais justo?

É possível, mas precisamos de uma mudança significativa na forma como regulamos a globalização. Precisamos de reescrever os acordos internacionais, como os Acordos Europeus de Comércio Livre, para colocar a tributação no centro desses tratados. A globalização que temos tido desde os anos 80 é a que fechou muitos destes acordos, mas não disse absolutamente nada sobre tributação. A globalização sem restrições fiscais produz enormes desigualdades e não é sustentável.

Mas podemos fazê-lo de forma diferente, podemos mudar muitas coisas. Podemos dizer às empresas, por exemplo, que, se quiserem ter acesso ao mercado espanhol, haverá condições, como o pagamento de um montante mínimo de impostos. Podemos ir ainda mais longe. A Espanha poderia dizer às empresas que, se querem ter acesso ao mercado espanhol, devem também pagar um montante justo de impostos noutros países e, se não o fizerem, a Espanha pode cobrar uma parte dos impostos que não foram cobrados por esses outros territórios. Podem ser colocados muitos tipos de restrições deste género às empresas que pretendem aceder ao mercado espanhol.

Tem defendido que o imposto mínimo global de 15% sobre as empresas que foi acordado e que alguns países estão a começar a aplicar é um bom passo, mas que é insuficiente e tem falhas e lacunas. Não acha que podemos correr o risco de que estes países e governos tenham feito este acordo porque é realmente muito fraco e que serve como um simples biombo para mostrar que se está a fazer alguma coisa, mas que não se faz mais nada e tudo fica como está? Será que esses 15% se podem transformar mais numa barreira do que num primeiro passo?

Trata-se de um risco, um risco real. Mas, ao mesmo tempo, todos, todos os principais agentes económicos, compreendem que este mínimo de 15% não faz sentido. As empresas pagam mais do que isso, as pessoas pagam muito mais do que isso. Por isso, não é sustentável que na globalização existam empresas que podem beneficiar de impostos mais baixos, enquanto aqueles que não podem beneficiar da globalização estão a pagar impostos muito mais elevados.

Por isso, penso e espero que, a dada altura, avancemos para uma taxa de imposto efetiva mais elevada. É muito importante que compreendamos que precisamos de acordos globais para qualquer tipo de progresso e evolução, porque, caso contrário, ficamos de mãos atadas e será muito difícil vermos qualquer tipo de progresso. O que é absolutamente necessário é que vejamos coligações de países a levantarem-se e a dizerem que 15% não é suficiente e que temos de avançar para um imposto mínimo efetivo de 20% ou 25%.

Outro instrumento que foi introduzido nos últimos anos é o relatório por país [as empresas devem declarar o volume de negócios, os lucros, os trabalhadores e o que pagam em impostos em cada país onde operam]. Mas as empresas dão essa informação à Agência Tributária, depois são publicadas estatísticas sobre o que pagam, mas não sabemos quem são. Se esta informação fosse pública, tanto os investigadores académicos como os jornalistas poderiam investigar, publicar e explicar ao público como funcionam estas empresas com nomes e apelidos. Não há problema em publicar que 31 multinacionais espanholas pagaram uma média de 1,75% de imposto sobre os seus lucros globais em 2020, mas seria melhor saber quem são essas 31 empresas e como o conseguem.

Concordo plenamente e não há qualquer razão para que não seja público. De facto, o sector financeiro tem vindo a publicar as suas atividades, país por país, desde há dez anos e isso não lhes causou quaisquer problemas de competitividade ou algo do género. As empresas apresentam frequentemente a desculpa de que, se forem obrigadas a publicar esta informação, poderão revelar segredos comerciais que poderão ser utilizados pelos seus concorrentes e este tipo de desculpas, mas a realidade é que temos dez anos de informação muito pormenorizada sobre o que os bancos fazem e não houve qualquer problema. Portanto, não há razão para não obrigarmos as empresas de qualquer sector a publicar o relatório país por país.

Há anos que a OCDE tem vindo a discutir a tributação da economia digital. Iniciaram os debates com propostas como a de que os impostos devem ser pagos onde o produto é comprado e o serviço é prestado, onde a riqueza é gerada, e não onde a empresa é residente para efeitos fiscais. O Observatório Fiscal da UE está a trabalhar nesta questão da tributação da economia digital?

Claro que sim, mas penso que concentrarmo-nos apenas num sector da economia, como o digital e o tecnológico, é um erro. Porque a transferência de lucros, a evasão fiscal por parte das multinacionais, é um fenómeno transfronteiriço que pode ser observado em todos os sectores, nos produtos farmacêuticos, na indústria, nas finanças e, claro, na tecnologia. Mas não se trata de um problema de um único sector, pelo que não devemos procurar soluções específicas, mas sim soluções globais que afetem todos os sectores. A proposta mais poderosa é lutar por um imposto mínimo global mais elevado sobre os lucros.

Gabriel Zucman e Yago Álvarez Barba
Gabriel Zucman e Yago Álvarez Barba durante a entrevista. Foto de Álvaro Minguito/El Salto

E o que pensa da lista negra de paraísos fiscais da UE?

A lista de paraísos fiscais da UE é uma anedota, toda a gente sabe que é uma anedota.

E o Observatório está a pressionar para que haja uma mudança e para que a Comissão Europeia aponte o dedo a países como a Irlanda ou os Países Baixos?

Claro que sim. Esta lista negra é uma anedota porque não se baseia em qualquer tipo de medida objetiva. O que estamos a fazer precisamente no Observatório Fiscal da UE é criar listas que se baseiam em indicadores objetivos, como por exemplo, onde as multinacionais declaram grandes quantidades de negócios, onde declaram lucros enormes em comparação com as empresas locais e, por outro lado, quais são as taxas de imposto efetivas que estão a pagar sobre esses lucros. Com base em indicadores objetivos, podemos, naturalmente, dizer quais são os paraísos fiscais.

E o que pensa da proposta de um imposto permanente sobre os lucros excessivos?

Penso que é uma boa opção, especialmente para os combustíveis fósseis, para a sua produção, extração, etc. Deveria existir um imposto sobre os lucros excessivos da indústria dos combustíveis fósseis que fosse muito elevado, quase confiscatório. Só porque precisamos de eliminar gradualmente os combustíveis fósseis o mais rapidamente possível. Portanto, este tipo de propostas faz todo o sentido, mas ao mesmo tempo temos de ter em conta que não é suficiente. Os impostos sobre as empresas e os lucros têm de ser complementados por impostos individuais e progressivos sobre o património.

O que acha que pode acontecer, olhando para o futuro, num mundo onde a polarização está a crescer, os conflitos geopolíticos estão a aumentar e a globalização parece estar a dar passos atrás, se não conseguirmos avançar para um sistema fiscal global mais justo?

Precisamos de criar novos tipos de organizações e de repensar as organizações que regulam a globalização. Novas organizações que tenham uma perspetiva verdadeiramente global. Acabar por aumentar esta taxa mínima de imposto paga pelas grandes empresas, acabar com a corrida para o fundo, em que os Estados estão a competir, por uma corrida para o topo. Quem sabe quanto tempo vai demorar e o que vamos conseguir.

Pois, mas o que é que julga que vai acontecer se não formos bem sucedidos?

Um maior crescimento das desigualdades, com todas as consequências graves que daí podem advir, como a instabilidade social.


Entrevista de Yago Álvarez Barba, editor de Economia do portal El Salto. Publicado em El Salto, traduzida por Luís Branco para o Esquerda.net.