Habitação

Fundos imobiliários: Tribunal de Contas aponta benefícios fiscais perversos

17 de abril 2025 - 14:25

O Tribunal de Contas auditou os benefícios fiscais concedidos aos fundos de investimento imobiliário e concluiu que resultaram em aumento de rendas e desigualdade de tratamento entre residentes e não residentes. O que são estes fundos? Como evoluíram e que favorecimento fiscal receberam em Portugal?

porMadalena Figueira

PARTILHAR
prédio
Foto de Paulete Matos

Os últimos dados do Eurostat são bem claros sobre a dimensão da crise da habitação em Portugal: as rendas aumentaram 7% face a 2023, mais do dobro da média da UE e, no ano passado, uma em cada três famílias gastou mais de 40% do seu rendimento disponível na renda.

É uma tendência longa: entre 2010 e 2024, os preços das casas e das rendas em Portugal aumentaram, respetivamente, 120% e 45%. Este aumento beneficiou os fundos de investimento imobiliário, que registaram o ano passado lucros recorde. Trata-se de uma transferência direta dos rendimentos do trabalho, gastos na renda, para os rendimentos do capital financeiro.

O Tribunal de Contas publicou recentemente as conclusões de uma auditoria aos benefícios fiscais direcionados aos organismos de investimento imobiliário, em que se destaca o fraco controlo da Autoridade Tributária, o erro no tratamento desigual entre residentes e não residentes e a inflação dos preços das rendas.

O Tribunal de Contas assinala que “a atividade dos fundos imobiliários gerou uma receita fiscal reduzida, num total de 27 M€ entre 2020 e 2022, que, neste período apenas duplicou, enquanto os rendimentos excluídos da tributação mais do que quadruplicaram (358,9%), evidenciando o impacto do regime de tributação mais favorável”.

Nas suas recomendações, o TdC salienta que o governo deve quantificar “a receita que deixa de ser cobrada em resultado do regime de tributação aplicável aos organismos de investimento coletivo constante dos artigos 22.º e 22.º-A do Estatuto dos Benefícios Fiscais” e eliminar “as situações discriminatórias identificadas pela jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e do Tribunal de Justiça da União Europeia decorrentes da aplicação do regime fiscal aos organismos de investimento coletivo residentes e não residentes”.

Como tem evoluído este mercado?

Segundo o TdC, no final de 2023, encontravam-se em atividade 265 fundos imobiliários, o número mais elevado desde 2009, a que correspondeu o maior valor sob gestão - 14,4 mil milhões de euros, cerca de 5% do PIB. Embora a maior parte dos participantes sejam investidores não profissionais, o facto é que as instituições de crédito, os fundos de investimento e de pensões, bem como outras pessoas coletivas detêm a maior parte do valor sob gestão dos fundos imobiliários.

De acordo com o Expresso, os fundos de investimento imobiliário nacionais registaram, entre novembro de 2023 e novembro de 2024, uma taxa de retorno média de 35%, marca histórica em Portugal. Em 2024, o montante sob gestão dos fundos imobiliários em Portugal subiu quase 10%, até 15,9 mil milhões de euros.

O segmento com maior crescimento é o dos fundos fechados de desenvolvimento, com o fundo Oceanico III (gerido pela Interfundos, do Millennium BCP) a alcançar 1,3 milhões sob gestão e uma taxa de retorno acima de 2600%. O fundo Aliança Atlântica Ativos, gerido pela Lynx Asset Managers, teve uma rendibilidade de 328% e geriu €16 milhões em ativos. As três líderes de mercado são a Square Asset Management (12%), a Sierra IG (9%) e a Lynx Asset Managers (9%).

Após uma década a crescer aquém do resto da Europa, este mercado regista em Portugal o terceiro ano de crescimento acima do conjunto da região. De acordo com o Banco Central Europeu, este ritmo de crescimento é quase sete vezes o aumento registado na zona euro.

E que impacto teve no aumento dos preços das rendas?

Segundo o TdC, este aumento significativo deveu-se à conversão, em 2022 e 2023, de sociedades de compra e venda de imóveis e de promoção imobiliária, que passaram a integrar este universo com um regime fiscal mais favorável: acesso simplificado à atividade de fundos imobiliários e alargamento dos ativos suscetíveis de investimento (introduzidos pelo Regime de Gestão de Ativos de 2023) e inclusão abrangidos dos rendimentos resultantes da compra e venda de imóveis e de operações de promoção imobiliária no Estatuto dos Benefícios Fiscais (Despacho 92/2020-XXII).

Daqui decorre o impacto no preço das rendas. O TdC salienta que os ativos mais relevantes na carteira dos fundos imobiliários são imóveis arrendados, 62% do valor médio sob gestão entre 2009 e 2023. Apesar de 69% dos imóveis arrendados serem destinados a serviços e ao comércio e apenas 6,6% a habitação, o TdC assinala que o aumento de 64% das rendas para habitação entre 2022 e 2023 foi influenciado pela entrada de sociedades de compra e venda de imóveis e de promoção imobiliária no universo abrangido por benefícios fiscais.

Os dados de novembro de 2024 da Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), citados pelo Expresso, já apontam um peso de 14,8% para a habitação.

Como funcionam os Fundos de Investimento Imobiliário?

Em 1985, ano em que se deram os primeiros passos na liberalização do setor financeiro, surgiram os Fundos de Investimento Imobiliário. O intuito era criar um produto de investimento coletivo, capaz de captar as poupanças de pequenos e médios investidores, para aplicar em ativos imobiliários.

São autorizados e regulados pela Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), entidade a quem reportam a sua atividade, devendo cumprir um conjunto de critérios no que diz respeito à composição dos seus ativos. Em 2015, criou-se o Regime Geral dos Organismos de Investimento Coletivo (RGOIC), sendo revogado e substituído, em 2023, pelo Regime de Gestão de Ativos (RGA).

Existem vários tipos de fundos. A primeira grande distinção diz respeito à variabilidade de capital: os fundos abertos permitem que as unidades de participação sejam emitidas, revendidas e resgatadas a qualquer momento, enquanto os fundos fechados têm unidades de participação fixas e os seus detentores compram ou vendem-nas mediante queiram investir ou desinvestir. Os fundos abertos estão associados, assim, a maior liquidez.

No reporte de dados, a CMVM agrega a informação em três grandes tipologias: Fundos de Investimento Imobiliário (FII), Fundos Especiais de Investimento Imobiliário (FEII), Fundos de Gestão de Património Imobiliário (FUNGEPI).

Na primeira, para além dos FII, o tipo mais comum, também se incluem os Fundos de Investimento Imobiliário para Arrendamento Habitacional (FIIAH) e as Sociedades de Investimento Imobiliário. Na segunda categoria, para além dos FEII, estão incluídas as Sociedades Especiais de Investimento Imobiliário.

O que são as Sociedades de investimento e gestão imobiliária?

Em 2019, o governo de António Costa criou um ordenamento jurídico específico para atrair Sociedades de Investimento e Gestão Imobiliária (SIGI), conhecidas na terminologia inglesa por Real Estate Investment Trusts (REIT). O Bloco de Esquerda opôs-se a este regime, por não garantir arrendamento a preços acessíveis e por intensificar a lógica de financeirização da habitação.

A grande diferença face aos Fundos de Investimento é que são sociedades anónimas cotadas em bolsa, o que torna ainda mais fácil o acesso a este tipo de investimento por parte de pequenos investidores, bastando adquirir ações no mercado de capitais.

A economista Ana Cordeiro Santos, que se tem dedicado ao estudo da financeirização da habitação em Portugal, explica que tanto os Fundos como as SIGI permitem “transformar a propriedade imobiliária, por natureza um bem fixo num determinado território, num ativo transacionável, permitindo que agentes de uma qualquer proveniência possam extrair as rendas fundiárias geradas numa outra parte, sem a necessidade de manter com ela qualquer ligação relacional, com a responsabilização associada à pertença a uma dada comunidade”.

Como são tributados os Organismos de Investimento Imobiliário?

O investimento em organismos de investimento imobiliário (os OII incluem as sociedades e os fundos de investimento que investem em ativos imobiliários)  origina rendimentos ao nível dos investidores individuais (participantes) e ao nível das entidades (os OII).

O desenho fiscal foi feito no sentido de atuar apenas num nível de tributação. Desde 2015 que, pela mão de Passos Coelho, vigora o modelo designado de tributação à saída. Por alteração do Estatuto dos Benefícios Fiscais (EBF), isto significa uma “não tributação” ao nível dos OII e tributação na esfera dos participantes.

Em maior detalhe, na esfera coletiva: aplica-se uma taxa de IRC de 21%, mas estão excluídos dos lucros tributáveis os rendimentos prediais, de capitais e mais-valias; isenta-se o pagamento das derramas municipal e estadual, bem como do imposto selo sobre contratos de financiamento; dispensa-se de IMT as aquisições de prédios para revenda, desde que o adquirente se encontre inscrito nessa atividade específica, que aconteça num prazo de três anos e apenas uma vez; e as aquisições de terrenos para construção (quatro anos) e prédios para revenda (três anos) não pagam IMI.

O único agravamento da tributação diz respeito a entidades com residência ou domicílio em territórios com um regime fiscal claramente mais favorável. Nesses casos, o lucro tributável inclui todos os rendimentos e a taxa aplicada é de 35%.

Na esfera de tributação dos participantes (que podem ser coletivos ou singulares) são tributados os rendimentos prediais, quando são originados na distribuição, ou as mais-valias imobiliárias, nos casos de resgate, liquidação e transação ou venda. Aplicam-se taxas diferenciadas: para pessoas singulares residentes vigora a taxa de 28% (com possibilidade de englobamento), para pessoas coletivas residentes aplica-se 25% e para singulares não residentes aplica-se 10%.

Em junho de 2024, o governo de Luís Montenegro fez uma alteração para que os rendimentos auferidos pelos investidores beneficiem de uma exclusão parcial de tributação, em IRS ou em IRC, entre 2,5% e 10%, em função da percentagem dos ativos destinados ao arrendamento a preços acessíveis.

Madalena Figueira
Sobre o/a autor(a)

Madalena Figueira

Economista