Friedrich Engels e o desenvolvimento do marxismo

28 de dezembro 2024 - 15:10

O legado de Engels mostra a necessidade de usar o que há de melhor do arsenal teórico e científico para compreender a realidade a ser transformada e de lutar pela organização do partido revolucionário dos trabalhadores.

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Michel Goulart da Silva

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Estátua de Engels e Marx.
Estátua de Engels e Marx. Foto de Berlin Ambient/Flickr.

Friedrich Engels, em parceria com Karl Marx, foi o responsável por sistematizar filosófica, política e taticamente as ferramentas que os trabalhadores poderiam manejar para compreender a realidade da sociedade capitalista e, com isso, fazer a revolução. Essa elaboração deu-se através da superação dialética da filosofia idealista alemã e do socialismo utópico, procurando constituir-se na expressão teórica e política dos trabalhadores organizados em luta. Lenine, que definiu Engels como o “mestre do proletariado contemporâneo”, dizia, em 1895:

“Marx e Engels foram os primeiros a demonstrar que a classe operária e as suas reivindicações são um produto necessário do regime económico atual que, juntamente com a burguesia, cria e organiza inevitavelmente o proletariado; demonstraram que não são as tentativas bem-intencionadas dos homens de coração generoso que libertarão a humanidade dos males que hoje a esmagam, mas a luta de classe do proletariado organizado. Marx e Engels foram os primeiros a explicar, nas suas obras científicas, que o socialismo não é uma invenção de sonhadores, mas o objetivo final e o resultado necessário do desenvolvimento das forças produtivas da sociedade atual”.1

Embora muitos dos textos mais conhecidos sejam aqueles que escreveu com Marx, como a Ideologia Alemã (1846) e o Manifesto comunista (1848), Engels contribuiu de forma decisiva para as formulações iniciais do materialismo histórico e dialético. Possivelmente, o seu escrito mais importante na juventude tenha sido A situação da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Nessa obra Engels realiza um detalhado estudo sobre as condições dos operários na Inglaterra, mostrando as construções do processo de transformação social conhecido como revolução industrial. Engels afirma que “na medida em que a indústria e o comércio se desenvolvem nas grandes cidades do modo mais completo, é exatamente nelas que emergem, de forma mais nítida e clara, as consequências de um tal desenvolvimento sobre o proletariado”.2 Em função disso, segundo Engels, nas grandes cidades existe apenas “uma classe rica e uma classe pobre, desaparecendo dia a dia a pequena burguesia”.3

Um fator que chama a atenção nessa obra de Engels é a cuidadosa análise das fontes – orais e impressas – utilizadas, mostrando a preocupação com a análise cuidadosa da realidade, fundamental no desenvolvimento do materialismo histórico. Engels afirmou, em certo momento desse estudo sobre o operariado da Inglaterra, que “o conhecimento das condições de vida do proletariado é, pois, imprescindível para, de um lado, fundamentar com solidez as teorias socialistas e, de outro, fundamentar os juízos sobre a sua legitimidade”.4 Mesmo no seu período de formação política e teórica, Engels já mostrava a clareza de que não devia partir de ideias abstratas, como o faziam os filósofos idealistas, mas da realidade concreta em que estavam inseridos os trabalhadores.

Outro aspeto destacável nessa fase de formação de Engels está no facto de que, mesmo sem utilizá-los de forma plena e desenvolvida, alguns dos principais conceitos da crítica da economia política aparecem no artigo “Esboço de uma crítica da economia política”. Marx referiu-se a esse texto como um “genial esboço de uma crítica das categorias económicas”.5

Publicado em fevereiro de 1844, Engels apresenta embrionariamente alguns apontamentos que foram posteriormente desenvolvidos por Marx em O capital (1867). Nesse texto, Engels apresenta os seus objetivos: “ao criticarmos a economia política, portanto, examinaremos as categorias fundamentais, revelaremos a contradição trazida pelo sistema de livre comércio e traçaremos as consequências de ambos os lados da contradição”.6

Neste esboço está presente tanto ideia de crítica da economia política como uma compreensão dialética da dinâmica do capitalismo. Essa relação com as contribuições desenvolvidas num período posterior por Marx pode ser percebida também quando Engels discute o conceito de valor em sua obra de juventude. Engels afirma:

“O valor é a razão entre custos de produção e utilidade. A aplicação mais precisa do valor é a decisão sobre se alguma coisa deve ser produzida, ou seja, se a utilidade compensa os custos de produção. Somente então se pode discutir a aplicação do valor para a troca. Uma vez equiparados os cursos de produção de duas coisas, a utilidade será o fator decisivo para determinar o seu valor comparativo”.7

Estão aqui esboçadas, ainda a serem lapidadas, a ideia de valor de uso e valor de troca. Outro exemplo da contribuição de Engels encontra-se na passagem em que discute preço, apresentado como equivalente monetário do valor:

“A diferença entre valor real e valor de troca é baseada num facto – a saber, que o valor de uma coisa é diferente do chamado equivalente dado a ela no comércio, ou seja, que esse equivalente não é equivalente. Esse chamado equivalente é o preço da coisa e, se o economista fosse honesto, ele usaria a palavra ‘valor comercial’. No entanto, ele ainda precisa manter certa aparência de que o preço está de alguma forma relacionado ao valor, para que a anti-eticidade do comércio não venha à tona”.8

Embora existam aqui algumas limitações, que posteriormente foram resolvidas, como a questão de uma compreensão moral das formas capitalistas, este texto mostra o papel fundamental de Engels no desenvolvimento do materialismo histórico. Essa colaboração também se observa na elaboração de obras de caráter histórico e político, escritas nas décadas seguintes, intercaladas pela intensa atividade política de Engels. Estas obras são, entre outras, As guerras camponesas na Alemanha (1850) e Revolução e contrarrevolução na Alemanha (1851), bem como a textos de polémica com outras correntes que atuavam no movimento operário, como Sobre a questão da habitação (1872), um embate com Pierre-Joseph Proudhon, e Os bakuninistas em ação (1873), sobre atuação de uma das mais proeminentes correntes do anarquismo. Neste período também produziu com Marx uma série de artigos jornalísticos fundamentais para compreender a Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865).

Engels também produziu um conjunto de reflexões sobre o desenvolvimento dos diversos campos do conhecimento científico, diante dos seus gigantescos avanços no século XIX, mostrando o materialismo dialético como parte desse processo. Na obra Do socialismo utópico ao socialismo científico (1880), Engels afirma:

“o materialismo moderno resume e compendia os novos progressos das ciências naturais, segundo os quais a natureza tem também a sua história no tempo, e os mundos, assim como as espécies orgânicas que em condições propícias os habitam, nascem e morrem, e os ciclos, no grau em que são admissíveis, revestem dimensões infinitamente mais grandiosas”.9

O tema é retomado, a partir de uma perspetiva diferente, noutras obras, das quais uma das mais conhecidas é o livro Dialética da natureza (1883). Nessa obra, nas primeiras linhas do prefácio, Engels afirma:

“A moderna investigação da Natureza é a única que conseguiu um desenvolvimento científico, sistemático e múltiplo, em contraste com as geniais intuições filosófico-naturalistas dos antigos e com as descobertas, muito importantes, mas esporádicas e na sua maior parte carentes de resultados, realizadas pelos árabes”.10

Na mesma obra, Engels relaciona o desenvolvimento do conhecimento científico à dialética, na sua forma moderna, sistematizada por Hegel. Engels afirma que as leis da dialética são “extraídas da história da Natureza, assim como da história da sociedade humana. Não são elas outras senão as leis mais gerais de ambas as fases do desenvolvimento histórico, bem como do pensamento humano”.11 Nesta obra, Engels também enfatiza a importância da compreensão dialética para no desenvolvimento, afirmando que os cientistas “acreditam que se libertam da filosofia, ignorando-a ou insultando-a. No entanto, não podem fazer progresso algum sem pensar; e, para pensar, necessitam de certas determinações mentais”.12

Engels também demonstra o desenvolvimento do socialismo moderno como parte desse processo, bem como a sua relação com as revoluções burguesas ocorridas nos séculos XVIII e XIX. No começo do livro Do socialismo utópico ao socialismo científico, Engels afirma:

“O socialismo moderno é, em primeiro lugar, pelo seu conteúdo, fruto do reflexo na inteligência, por um lado dos antagonismos de classe que imperam na moderna sociedade entre possuidores e despossuídos, capitalistas e operários assalariados, e, por outro lado, da anarquia que reina na produção. Pela sua forma teórica, porém, o socialismo a apresentar-se como uma continuação, mais desenvolvida e mais consequente, dos princípios proclamados pelos grandes pensadores franceses do século XVIII. Como toda nova teoria, o socialismo, embora tivesse suas raízes nos factos materiais económicos, teve de ligar-se, ao nascer, às ideias existentes”.13

A expressão teórica desse processo encontra o seu ponto mais elevado no socialismo desenvolvido por Marx e Engels, síntese dialética entre a prática de luta dos trabalhadores e sua expressão científica. Entende-se, assim, com Engels, que

“as causas profundas de todas as transformações sociais e de todas as revoluções políticas não devem ser procuradas nas cabeças dos homens nem na ideia que eles façam da verdade eterna ou da eterna justiça, mas nas transformações operadas no modo de produção e de troca; devem ser procuradas não na filosofia, mas na economia da época de que se trata”.14

O legado da trajetória de Engels mostra, por um lado, a necessidade de usar o que há de melhor do arsenal teórico e científico para compreender a realidade a ser transformada, e, por outro, de lutar pela organização do partido revolucionário dos trabalhadores. O conjunto das suas formulações teóricas, construídas em parceria com Marx, procuraram dotar os trabalhadores da ferramenta para derrubar o capitalismo e lutar por uma sociedade socialista.


Michel Goulart da Silva é historiador doutorado e pós-doutorado pela Universidade Federal de Santa Catarina.

Editado pelo Esquerda.net para português de Portugal.


Notas

1 Vladímir Ilitch Lénine. Friedrich Engels. In: Obras escolhidas em seis tomos. Moscou: Progresso; Lisboa: Avante, 1984, vol. 1, p. 9.

2 Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 65.

3 Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 65.

4 Friedrich Engels. A situação da classe trabalhadora na Inglaterra. São Paulo: Boitempo, 2008, p. 41.

5 Karl Marx. Contribuição à crítica da economia política. 2ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2008, p. 49.

6 Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 164.

7 Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 168.

8 Friedrich Engels. Esboço para uma crítica da economia política e outros textos de juventude. São Paulo: Boitempo, 2021, p. 169.

9 Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2005, p. 64.

10 Friedrich Engels. A dialética da natureza. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 15.

11 Friedrich Engels. A dialética da natureza. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 34.

12 Friedrich Engels. A dialética da natureza. 5ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 1991, p. 147.

13 Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2005, p. 39.

14 Friedrich Engels. Do socialismo utópico ao socialismo científico. 2ª ed. São Paulo: Centauro, 2005, p. 69.