Durante a sua visita a Portugal, Francesca Albanese falou com o Esquerda.net sobre o genocídio israelita em Gaza que tem denunciado no último ano, mas também sobre a “amnésia colonial” da Europa que se reflete na forma “completamente desequilibrada, desigual e arrogante” como lida com os palestinos, os migrantes, os refugiados ou o Sul Global.
Hoje em dia, vivemos numa espécie de universos paralelos: um em que o direito internacional condena as ações de Israel, e outro em que Israel faz o que lhe apetece. O que pensas deste desfasamento entre o que a lei diz e o que acontece de facto?
Percebo perfeitamente essa ideia de desfasamento que referes, e o que está por trás. O plano de longa data de Israel é exterminar a vida e a identidade palestinas do território que reclama, única e exclusivamente, para os judeus. E, sem cair no erro de discutir se há 75 ou 80 anos seria possível justificar — e nunca moralmente, isso é impensável — o preço terrível imposto aos palestinianos, a tentativa de erradicá-los do pouco de terra que lhes resta, e que, de acordo com o consenso internacional, corresponde ao estado da Palestina, demonstra o nível de desprezo e condescendência que Israel, com o apoio dos países ocidentais, ostenta perante a vida humana e o direito internacional na base o sistema criado no rescaldo da Segunda Guerra Mundial. A realidade é esta: aos palestinianos, tal como aos israelitas que se opõem à invasão e ao apartheid, e todos os outros que se sentem indignados com o modo como Israel considera os palestinianos um estorvo, uma ameaça sectária permanente, resta-nos lutar contra esta injustiça com a nossas próprias mãos. Mas, voltando ao princípio, não são universos paralelos, é todo um sistema.
Temos visto uma série de deliberações e declarações favoráveis à Palestina — do Tribunal Internacional de Justiça, do Tribunal Penal Internacional, do Secretário-Geral das Nações Unidas, de figuras públicas, etc. Na tua opinião, estas tomadas de posição fortalecem na luta nas ruas, as concentrações e as manifestações, ou parece-te que é precisamente o oposto, isto é, é a luta nas ruas que está a tornar possível que os tribunais e as instituições internacionais assumam posições que, até há poucos anos, seriam impossíveis?
Bem, essa conversa podia durar horas. Mas deixa-me responder partilhando algumas reflexões. Citando uma colega minha, a Relatora Especial para a Liberdade de Expressão, Irene Khan, a crise em Gaza tornou-se uma crise global, com países ocidentais a violarem as liberdades fundamentais dos seus próprios cidadãos, como a liberdade de expressão, de associação, o direito ao protesto, para defenderem as ações de Israel. Mas olhemos para as coisas em contexto. Não há nada que justifique as violações, os crimes e os ataques do Hamas contra cidadãos israelitas. Não, mas existe um contexto. Estas coisas não acontecem do nada, como disse o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres. Por um lado, temos uma parte da humanidade que já não tolera o massacre de civis — já morreram 42 mil, incluindo 17 mil crianças, 700 das quais bebés. Por mim, não distingo entre as vidas de palestinos e israelitas, são todos seres humanos, têm direito a viver em paz e com dignidade. E temos também a justiça internacional, que tem feitos grandes avanços. Este ano, pela primeira vez, Israel teve de enfrentar o Tribunal Internacional de Justiça, acusado de genocídio… pela África do Sul, um país que se libertou do jugo de 300 anos de colonialismo, em que os últimos cinquenta ficarão para a história como Apartheid. O Tribunal Penal Internacional emitiu mandados de detenção contra três dirigentes do Hamas (dois dos quais entretanto mortos por Israel) e dois de Israel. Ou seja, a justiça internacional está a mexer-se. As pessoas estão a mexer-se. O que é que lhes está a fazer frente? É o poder. É só o poder.
A segunda reflexão que quero aqui deixar é que acredito sinceramente que, se há um grupo que, à escala mundial, está perfeitamente ciente do que está em causa e exige respostas éticas, é a juventude. Os jovens, que estão mais globalizados do que nunca — certamente mais do que as nossas gerações —, compreendem que existe uma ligação entre a justiça social, a justiça climática e a luta contra um sistema controlado por multinacionais, como os lóbis militares e do armamento. Percebem a ligação, e estão solidários com os palestinianos e os israelitas que desejam um estado que não seja um estado-apartheid (na verdade, também acho que os israelitas em geral, a sociedade israelita, está demasiado ferida, traumatizada e sujeita a tamanha lavagem cerebral, que não vê o que está realmente acontecer). Mas, mais uma vez, temos estas alterações tremendas ao nível da justiça internacional e da juventude, há tantas vozes a exigir mudança. O Tribunal Internacional de Justiça reconheceu que a ocupação é ilegal, e que Israel tem promovido — são estas as palavras exatas — um colonialismo de ocupação, que deve ser desmantelado. A jurisdição suprema internacional afirmou que a ocupação tem de acabar, os colonatos têm e acabar, e que Israel deve compensações de guerra à Palestina. Perante tudo isto, haver países que ainda debatem que posição tomar — ou, quanto muito, expressam condenações ténues — é sintoma de algo que ainda não conseguimos resolver: trata-se de racismo. Racismo, a ideia de uma raça superior. A vida de um palestino não vale o mesmo que a de um israelita. É esta a terrível realidade dos dias de hoje.
Na tua opinião, o que explica — suponho que seja, mais uma vez, a questão do poder… — que tão poucos países se tenham juntado à África do Sul na ação contra Israel?
Era a isso que fazia alusão quando afirmei que o sistema ainda é muito determinado em termos raciais. E custa-me reconhecê-lo. Talvez eu fosse ingénua, mas o último ano mudou completamente a minha forma de olhar para o mundo. É por isso que digo que estou muito mais pessimista. Antes, acreditava que havia alguma espécie de justiça nas relações internacionais. Mas não. Há governos ainda alinhados com Israel por questões ideológicas. Israel, um país que escolheu, ao longo dos anos, exercer ódio ideológico sobre os palestinianos porque os considera, em termos ontológicos, uma ameaça existencial ao estado de Israel enquanto estado judaico. Das suas uma: ou é um estado para os judeus, e, nesse caso, o que acontece à metade da população que fica privada de direitos e vive sob uma ditadura militar? É por isso que existe este conflito, este conflito lógico, entre um estado judaico e uma solução de dois estados ou um estado igual para todos. Penso que vivemos num mundo muito desigual. Os últimos doze meses deixaram claro que a vida não tem toda o mesmo valor, e é por isso que há países — especialmente países ocidentais — que continuam ao lado de Israel, apesar de todas as atrocidades. A própria ideia de um estado judaico, por si só, tem de ser abandonada. Entre o rio e o mar, vivem mais de seis milhões de israelitas e mais de seis milhões de palestinos. Há cinco milhões de palestinos a viver sob ditadura militar israelita, sem quaisquer direitos. O que é que lhes vai acontecer para cumprir o objetivo de uma maioria judaica? Para onde vão? É extremamente racista sugerir que devem deslocar-se para outros países muçulmanos. Para os povos indígenas, a terra faz parte de quem são, não é apenas o sítio onde vivem, e não cruzam fronteiras em nome da religião. Se a terra é deles, porque é que haviam de abandoná-la? É por isso que aquilo que muitos estados ocidentais consideram normal não passa de uma assunção racista. Temos muito trabalho para fazer nas nossas próprias comunidades, na Europa, e digo-o com um ênfase especial num sítio como Portugal. A Europa tem de lidar com a amnésia colonial. 500 anos de colonialismo não podiam deixar de moldar a nossa identidade, o nosso ADN, a maneira como vemos o mundo, e, se não percebermos isso, nunca vamos ter noção de que o modo como lidamos com os palestinos, mas também com os migrantes, com os refugiados, com o Sul Global, é completamente desequilibrada, desigual e arrogante. Como europeia, isso é algo que não posso tolerar, exijo muito mais da minha própria gente.
E depois também há os países árabes, que estão um bocadinho…
… confusos. Digo muitas vezes que quem quiser compreender o mundo árabe, e por que é que a Palestina está como está, deve ler um livro maravilhoso do Amin Maalouf, As Cruzadas Vistas pelos Árabes. Ficamos a perceber as linhas fraturantes que prevalecem na região — que não são nada intuitivas para nós — e como operam. Mas também temos de ter em conta que, nas últimas duas ou três décadas, o Médio Oriente tem estado sob constante ataque. E o mundo árabe nunca esteve tão fragmentado como agora. Mesmo assim, existe um fosso entre as classes dominantes e o povo. Eu vivo num país árabe e trabalho noutro, e posso garantir que as pessoas comuns estão absolutamente solidárias com a Palestina. O mundo árabe precisa de descobrir a ligação que tem com o povo judeu. É fundamental. Tenho assistido a uma coisa interessante na Tunísia, onde existe uma comunidade muito consciente em termos de direitos humanos que tem vindo a dizer “podemos acabar com esta animosidade toda?” Não se trata de uma guerra entre judeus, muçulmanos e cristãos; nem sequer entre israelitas e palestinianos — é uma guerra pela humanidade, pela justiça, pela descolonização. E os israelitas que estão contra o apartheid, contra a ocupação e contra o colonialismo são nossos aliados. Isto é algo a que devemos dar valor, uma transformação maravilhosa que está a acontecer lentamente no mundo árabe.
O sistema legal internacional está em colapso — pelo menos em parte. O que é necessário para reerguê-lo? Novas instituições? Novos instrumentos? Uma revolução completa?
Acho que essa revolução já está em curso. Há muitas vozes a emergir, oriundas do Sul Global. Também as há no Norte Global, como a Greta Thunberg, mas é um grande alívio para mim a quantidade de inspiração que tenho ido buscar ao Sul Global. As principais vozes que escuto hoje em dia são as de intelectuais da Índia, da África do Sul, dos Camarões ou da Tailândia. Somos de tal maneira eurocêntricos, que não as ouvimos. E no entanto, na América Latina, há tanta coisa nas lutas das mulheres e homens comuns — e também, não poucas vezes, crianças — a dizer-nos o que Arundhati Roy já escreveu: “Um outro mundo não é apenas possível, já vem a caminho; e, nos dias mais calmos, ouço-a a respirar”. Eu também oiço. Um mundo novo, uma revolução que já começou… é uma luta contra o sistema, não é só sobre Israel e a Palestina. É mesmo contra um sistema que faz de nós consumidores à força, e parece que as nossas vidas só servem para produzir, consumir e morrer. Produzir, consumir e morrer. Sem preservar o que temos neste planeta, e sem desfrutar do que temos nas nossas vidas. Repito: eu vejo uma revolução a acontecer, mas que tem de ser compreendida por nós, pelo maior número possível de pessoas, o mais rapidamente possível, para que seja um movimento em prol da justiça e que corrija os defeitos e os erros do passado. Ainda é possível.
A Clara E. Mattei sugere que muito do que disseste é resultado direto do capitalismo…
A minha amiga Clara! Concordo com ela. Li o último livro dela e achei incrível reconhecer-me tanto na sua voz. Acho que ambas compreendemos a estrutura e o que a sustenta, e isso é algo que, uma vez apreendido, não pode ser esquecido. É por isso que estou sempre a dizer aos jovens para aprenderem com o passado. Em particular, nós, europeus, temos de aprender o que fizemos aos povos colonizados fora da Europa; o que fizemos aos judeus dentro da Europa há oitenta anos; e o que estamos a fazer hoje aos refugiados e aos migrantes. Vivemos num mundo que está a alimentar uma guerra entre pobres, e os decisores e aqueles que lucram com o sistema permanecem intocáveis, invisíveis, intactos; claro que concordo com a Clara. Não me canso de dizer à juventude: Aprendam. Aprendam. Aprendam tudo o que puderem, porque, hoje em dia, o conhecimento é subversivo, é uma ferramenta para nos protegermos e mantermos viva a única oportunidade para uma futuro de paz que nos resta.
Entrevista conduzida por Paulo Ferreira. Tradução de Mariana Avelãs.