“Forma como governos tentaram controlar ciganos tem paralelos com dispositivos coloniais”

01 de outubro 2023 - 12:19

Com “Kumpania. Vivre et résister en pays gadjo”, a antropóloga Lise Foisneau conta quatro anos de investigação na companhia dos ciganos de Provença. Aí se encontra a resistência face a um Estado que oprime mas também formas de habitar as margens. Entrevista de Tiphaine Guéret.

PARTILHAR
Caravanas. Imagem do Basta!
Caravanas. Imagem do Basta!

“Chiner les Roms.” [1] Foi Youri, de 18 anos, que passou esta expressão a Lise Foisneau. Desde então, a antropóloga apropriou-se dela. É difícil encontrar uma expressão mais adequada para resumir o trabalho que realizou durante os quatro anos que passou na estrada ao lado dos ciganos da Provença.

Da sua investigação em itinerância, Lise Foisneau fez um livro, Kumpania – Vivre et résister en pays gadjo (Kumpania – Viver e resistir no país Gadjo), publicado nas edições Wildproject. Nele, descreve a vida quotidiana dos ciganos ditos “húngaros” que chegaram a França no final do século XIX e que hoje circulam numa parte deste território, sem poderem circular e instalar-se livremente.

Mudança de foco. Contar a história deste grupo “a partir de baixo”, a partir das representações de quem o compõe: é isso que dá, entre outras coisas, a dimensão política a Kumpania. Uma forma de contrariar um anticiganismo firmemente ancorado e de nos lembrar que, apesar da discriminação que enfrentam, os ciganos da Provença continuam a organizar-se.

Para Lise Foisneau, há uma certeza: “Na curva de uma estrada, num parque de estacionamento, num estádio, num campo, os ciganos mostram que os coletivos […] ainda não capitularam perante a máquina política e hierárquica.”

O teu livro intitula-se Kumpania. O que significa?

Entre os ciganos da Provença, a palavra kumpania (companhia) designa todas as pessoas e coisas (humanos e não humanos, animais, objetos) reunidas num lugar. É uma vizinhança escolhida que constitui um mundo singular – um mundo de alguma forma entrelaçado com o do gadjo [2]. Contra o preconceito que atribui aos ciganos um estilo de vida familiar orgânico, o meu livro descreve um coletivo [3] cujos princípios políticos são muito mais igualitários do que os da sociedade maioritária.

Os estereótipos que naturalizam as formas de organização coletiva dos ciganos são construções estatais ligadas a políticas repressivas. Desde 1912, sucessivos governos franceses implementaram, de facto, sistemas de controlo e vigilância para pessoas primeiro categorizadas como “nómadas” e depois como “viajantes” na década de 1970. A retórica familialista do Estado postula que é a “família”, de preferência a família extensa, que une esses coletivos.

Reduzir desta forma modos alternativos de organização coletiva a laços de sangue é uma estratégia eficaz de despolitização. Ao intitular o meu livro Kumpania quis mostrar que o mundo dos viajantes em França é um mundo eminentemente político, que se organiza em função de uma preocupação com a justiça e o bem comum e do qual uma das formas particularmente emblemáticas é, precisamente, kumpania.

Mas impõe-se uma precaução: esta etnografia diz respeito apenas a um fragmento do mundo dos viajantes e não pode ser generalizada a todos os ciganos e aos coletivos de viajantes. Kumpania descreve a vida de ciganos que são franceses há 150 anos, viajam a maior parte do tempo na Provença e são classificados pelo Estado como “gens du voyage”; enquanto outros viajantes os chamam de “húngaros”. Foram assim nomeados, no final do século XIX, pelos Manouches que os designaram de acordo com o local por onde anteriormente tinham viajado, nomeadamente o Império Austro-Húngaro.

 

Esta forma de “fazer as coisas coletivamente” sem representante nem chefa líder, desorienta os gadjos e mais ainda as forças da ordem a quem, como escreves, “nunca ocorre a ideia de que as companhias possam não ser dirigidas”...

Quando as caravanas se instalam num novo local, os seus habitantes – sejam manouches, roms, gitanos, sinti, yéniches ou viajantes – têm uma experiência comum: há sempre um polícia, GNR, um vizinho gadjo ou um representante da administração a pedir para falar com o chefe, com o responsável gerente ou o representante.

À chegada das caravanas chegam, um observador desinformado tem muita dificuldade em imaginar que elas não sejam organizadas e coordenadas por uma pessoa que dirigiria as outras. No entanto, ao viajar com os ciganos da Provença, pude observar que as pessoas que vivem juntas numa caravana, durante alguns dias ou algumas semanas, não se organizam de forma hierárquica ou piramidal.

Por exemplo, quando se instalam num “lugar”, ou seja, num local pouco urbanizado, os habitantes de cada caravana agem com total autonomia. Se existem regras a respeitar para que a vida em comum seja possível, ninguém desempenha um papel mais importante que os outros. Além disso, se um dos membros da companhia decide comportar-se como chefe a resposta não tarda: na maioria das vezes, as caravanas dispersam-se e este poder emergente é dissolvido.

Mais de uma vez, vi gendarmes ou os gerentes das lojas perto das quais estávamos instalados a pedir para falar com o “patriarca”: não só os habitantes das caravanas tinham que ser dirigidos, mas tinham que ser conduzidos por um homem – juntando-se ao estereótipo hierárquico o estereótipo patriarcal. A realidade é que as companhias com as quais viajei não reconhecem um líder, nenhuma cabeça: são acéfalas. É o mundo dos gadjos que projeta voluntariamente o seu imaginário hierárquico nos coletivos de viajantes.

Este preconceito é partilhado ao mais alto nível do Estado, uma vez que, desde a década de 1960, os vários ministérios sempre procuraram identificar “representantes” dos “nómadas” ou “viajantes”. Existem certamente associações que defendem os interesses dos Viajantes e há também pessoas que se autorizam a falar com as autoridades dos gadjos, mas, em ambos os casos, sem terem sido designadas por ninguém para atuar como representantes.

Penso nomeadamente na instância que é suposta representar os “viajantes” junto dos ministérios, a Comissão Consultiva Nacional dos Viajantes, composta por uma maioria de gadjos (eleitos, dirigentes associativos) e alguns representantes auto-proclamados.

Quando um coletivo hierárquico tenta dominar um coletivo sem cabeça, impõe-lhe o tipo de relação que melhor lhe convém: é o que acontece entre os gadjos e os ciganos da Provença. O facto de o Estado ter agrupado numa categoria artificial, a dos “viajantes”, pessoas que só têm em comum o facto de viverem em caravanas reforça ainda mais estes jogos de espelhos. Na verdade, as línguas, as histórias, as formas de fazer as coisas variam de acordo com os coletivos (rom, gitanos, yéniches, manouche, sinti, viajantes), a região da França onde viajam e muitos outros fatores.

 

Quando escreves que as medidas com que os ciganos “húngaros” foram confrontados “são análogas em muitos aspetos às que foram impostas aos vencidos da colonização europeia”, a que te referes?

A forma como os governos franceses tentaram controlar os ciganos, entre outros, apresenta paralelos com os dispositivos coloniais, nomeadamente no que diz respeito ao controlo da mobilidade, às práticas de identificação, ao envolvimento de missionários católicos e evangélicos, à escolarização forçada e à vigilância sanitária, para mencionar apenas os traços principais.

Mas também não devemos esquecer que algumas destas práticas governamentais foram igualmente aplicadas contra as classes dominadas, como os camponeses franceses no início da Terceira República. Os antepassados dos ciganos da Provença de que se trata no Kumpania experimentaram múltiplos regimes discriminatórios e repressivos desde a sua chegada a França no final do século XIX. A partir de 1912, a maioria deles foi classificada na categoria administrativa de “nómadas” e foram obrigados a serem portadores de um cartão antropométrico. Os seus movimentos são monitorizados diariamente pela polícia e pelas administrações locais.

Nos anos 1930, de acordo com os prefeitos, o Ministério do Interior procurou proibir os agrupamentos de “nómadas” através de um processo de deslocamento: os grupos foram separados em pequenas frações e cada fração devia partir em direções diferentes para departamentos diferentes sem ter o direito de se reencontrar.

Como procurei mostrar num outro livro Les Nomades face à la guerre (1939-1946), Klincksieck, 2022 (com Valentin Merlin), a Segunda Guerra Mundial foi um ponto de inflexão neste século de perseguições e revelou a categoria dos “nómadas” pelo que é, ou seja a expressão de uma política racial.

Entre 1940 e 1944, as autoridades alemãs e o governo de Vichy concordaram em traduzir “Zigeuner [Cigano]” como “nómada”; é assim que os ciganos classificados como “nómadas” são colocados em prisão domiciliária, internados e deportados. No entanto, nos anos do pós-guerra, aos ciganos não foi reconhecido o estatuto de vítimas de genocídio e aqueles que regressaram à estrada foram novamente obrigados a portar um cartão antropométrico.

A sua situação tornou-se pior do que antes da guerra: as proibições de estacionamento para “nómadas” multiplicaram-se, a tal ponto que, em 1967, apenas 12.550 municípios, dos 38.000 que existiam na metrópole na altura, autorizavam a paragem de caravanas. Esta política de restrição de acesso ao território perdura, apesar da substituição da categoria de “nómadas” pela de “viajantes”, e intensificou-se na década de 1990 com a criação de “áreas de acolhimento de pessoas viajantes”.

 

Quais são as estratégias de resistência postas em prática pelos ciganos?

Confrontados com múltiplas perseguições, os antepassados dos Ciganos da Provença sempre souberam defender-se: tal como Ulisses enfrentando o Ciclope Polifemo, utilizaram mil truques para frustrar os sistemas em vigor. No início do século XX, para evitar a identificação e o risco de serem deportados para a fronteira ou de expulsão de um departamento, não era raro que os ciganos se declarassem sucessivamente com nomes diferentes.

Nos arquivos anteriores à guerra, percebi que os pais declaravam a mesma criança em várias câmaras municipais para lhes permitir escapar mais tarde ao regime “nómada”. Mudar o seu nome foi, portanto, uma das formas mais eficazes de contornar as políticas anti-nómadas no início do século XX.

 

Noutro plano, dedicas uma passagem do teu livro à “educação” das crianças. Citas uma das tuas vizinhas, Nita, que um dia disse: “Eu não educo meus filhos, eu crio-os”…

Ouvi Nita pronunciar esta frase durante um debate na televisão sobre a educação das crianças. A distinção semântica que ela faz entre “educar” e “criar” reflete claramente a atenção dada às crianças nas companhias. “Criar” supõe partilhar a vida com as suas crianças – uma vida partilhada que não existe quando as crianças são colocadas o dia todo em estruturas educativas como creche, o jardim de infância ou a escola.

Educar, pelo contrário, é disciplinar, instruir através da coerção. Se Nita quer que os seus filhos tenham acesso à escola para aprenderem a ler e a escrever, ela também defende o seu direito de querer “criar” ela própria os seus filhos enquanto eles forem pequenos. Ela considera que os seus filhos, todos bilingues Francês-Romani, têm um milhão de coisas a aprender vivendo no seio das companhias e que essa aprendizagem só é possível através da partilha de longos tempos e não segmentada por incursões quotidianas dos gadjos nas suas vidas.

Passei muito tempo a discutir com os meus vizinhos a questão da escola e da educação recebida pelos pequeno gadjos: há vários aspetos que os surpreendem, nomeadamente a propensão dos gadjos a guardarem por períodos de tempo muito longos os bebés e crianças pequenas, mas também a multiplicação de atividades extra-escolares que reduzem o tempo para brincadeiras, sonhos e tédio, o que lhes parece essencial para crescer bem.

Contudo, a questão vai além de uma simples diferença de opinião em matéria educativa. O julgamento dos meus vizinhos e o dos gadjos não produzem o mesmo efeito: os meus vizinhos estão frequentemente na mira da proteção materno-infantil (PMI), de educadores especializados, de assistentes sociais e de professores.

O mundo dos gadjos é inesgotável na forma como os rom, os manouches, os sinti, os gitanos, os viajantes cuidam das suas crianças, na maioria das vezes para fazer julgamentos excessivamente negativos que são justamente vividos como violência pelos pais dos crianças em causa.

No mundo dos viajantes, todos conhecem uma família à qual os serviços sociais retiraram os filhos ou sobre a qual pesaram suspeitas de maus-tratos. Nita, por exemplo, fica inquieta quando leva os filhos ao médico ou ao hospital e eles tenham um hematoma por causa de uma queda enquanto andam de bicicleta: tem medo que esse hematoma seja interpretado pelo gadjo como sinal de abuso.

Outra vizinha, após dar à luz, foi considerada suspeita pela equipa da maternidade de querer vender o seu bebé, simplesmente porque estava ansiosa para voltar para casa, onde os seus outros três filhos a esperavam. Por ser cigana e querer assinar um termo de responsabilidade para voltar mais rapidamente para os outros filhos, viu-se no meio de um imbróglio administrativo que quase lhe custou a custódia do recém-nascido. Inúmeros exemplos semelhantes explicam parcialmente a desconfiança dos ciganos em relação às instituições educativas dos gadjos.

 

Outro assunto abordado no livro é o das áreas de acolhimento que o mundo dos viajantes chama de “terrenos designados”…

A Quinta República apresentou o desenvolvimento de áreas de acolhimento como uma política humanista que permite às pessoas que vivem em habitações móveis continuarem a viver assim. Ora, nada está mais errado. Antes da guerra, os movimentos dos “nómadas” eram certamente dificultados pelos controlos diários que exigiam a carimbagem dos seus registos antropométricos, mas não faltavam espaços onde as caravanas pudessem estacionar: terrenos comuns, campos de feiras, caminhos, etc.

Depois da guerra, por outro lado, muitas cidades simplesmente proibiram o acesso dos “nómadas” e, quando esta segregação territorial foi finalmente julgada inconstitucional (em 1965), foram criados terrenos reservados aos “nómadas”, muitas vezes junto a cemitérios ou aterros sanitários. A ideia não é mais controlar os movimentos individuais, mas sim o local onde os viajantes param.

Foi assim que surgiram as “áreas de estacionamento” e depois as “áreas de acolhimento”. Locais pagos, muitas vezes construídos em locais que não interessam aos promotores imobiliários, onde o estacionamento de caravanas é tolerado por um período limitado. Vivi mais de um ano numa zona de acolhimento situada num local desconcertante, entre uma auto-estrada, uma linha férrea, um transformador elétrico e uma fábrica classificada como de limiar alto Seveso (ou seja, que inclui um risco significativo de acidente industrial grave); quanto às outras áreas de acolhimento onde fiquei, o ambiente era sempre desastroso e até perigoso.

Parece-me óbvio que as áreas desencorajam e dissuadem os viajantes de viajar. E como a nossa sociedade permite rentabilizar quase tudo – até o apartheid territorial – estas áreas de acolhimento são geridas na maioria das vezes por empresas privadas cujo único objetivo é obter lucro através da gestão de estacionamento para “viajantes”.

Para resistir ao dispositivo da área de acolhimento, existem, no entanto, diversas possibilidades. A primeira é ocupar espaços que não se destinam a acolher caravanas. A abertura de “lugares” é, portanto, uma forma de remediar o desaparecimento das terras comunais e de lutar silenciosamente contra a apropriação de terras por grandes grupos industriais e comerciais.

Outra possibilidade para os ciganos é comprar terrenos num ambiente adequado para aí poderem parar com as caravanas. Alguns ciganos da Provença possuem terrenos em diferentes locais da região, o que lhes permite nem sempre viver no mesmo local e evitar a necessidade de frequentar áreas de acolhimento.

O uso que fazem da propriedade privada é, portanto, muito inventivo, pois em vez de se encerrarem num terreno vedado, trocam terrenos entre si para variar a vizinhança e os locais de paragem. Uma das ideias que surge regularmente é imaginar um conjunto de terrenos que possam ser trocados entre viajantes para evitar zonas de recepção e continuar a viajar…

 

Entrevista de Tiphaine Guéret para o CQFD e publicada no portal Basta!

Traduzida por Carlos Carujo para o Esquerda.net.

 

Notas:

[1] Chiner é utilizado tanto no sentido de seduzir alguém quanto no sentido de gozar com uma pessoa (nota da tradução).

[2] Um gadjo, uma gadji, os gadjé, ou gadjos são aqueles que não são ciganos.

[3] A autora prefere o termo “coletivo” ao de “comunidade”: “um conjunto fixo, imóvel, do qual não se sai, composto unicamente de seres humanos e que não descreve a fluidez dos grupos romani nem a diversidade dos modos de reunião em geral”.