Esta quinta-feira, pela primeira vez na chamada Quinta República, a União Nacional aprovou um texto seu na Assembleia Nacional francesa. O famoso “cordão sanitário” que supostamente evitava a normalização da extrema-direita já tinha caído há muito no plano local mas esta foi uma estreia ao nível nacional. Por 185 votos contra 184.
A proposta de resolução pretendia denunciar o acordo entre França e Argélia de 27 de dezembro de 1968. Em causa está sobretudo um estatuto especial para os cidadãos provenientes deste país em França. Ela não é vinculativa, ou seja deixa nas mãos do presidente Emmanuel Macron uma decisão final, mas é vista como uma vitória importante para a extrema-direita que lhe permite ao mesmo tempo mostrar que saiu do isolamento político e agitar a bandeira contra a imigração.
Renaud Labaye, líder do grupo parlamentar da UN, gabou-se imediatamente de que a votação “prova que somos capazes de trabalhar com outros grupos: transformámos a nossa maioria relativa numa maioria absoluta, convencendo outras forças a juntarem-se a nós” e de que isso é o sinal “claro” de que “estamos a chegar”. Já Marine Le Pen, a líder de facto do partido, considerou que se tratou de “um dia histórico”.
Tal passo não seria possível sem os votos vindos das bancadas da direita, 26 em 50 dos Republicanos, e do centro-direita, o Horizons. O líder parlamentar da direita tradicional, Laurent Wauquiez, foi claro sobre a mudança de posição de princípio: “quando a UN apresenta projetos ou convicções que partilhamos, não há razão de ser para estar com posturas politiqueiras”.
Do lado do Horizons, a mensagem é que propostas semelhantes tinham já sido apresentadas “por quatro vezes” pela sua bancada, diz o deputado Sylvain Berrios, tentando com isso sublinhar a “coerência” que teria estado na base do sentido de voto. Para ele, “mantendo estes acordos, a França humilha-se”.
Contudo, alguns dos seus parceiros no campo governamental macronista, nomeadamente o MoDem e a Renaissance, criticaram tal tomada de posição. Assim como outros campos criticaram o facto de uma grande parte dos deputados macronistas terem faltado à votação: apenas 30 dos 92 deputados do grupo chamado agora Ensemble pour la République estavam no hemiciclo naquele momento.
Um texto racista e odioso, diz a esquerda
À esquerda, a oposição ao texto e à extrema-direita manteve uma união sem brechas. A deputada ecologista de origem argelina Sabrina Sebaihi lembrou as origens “anti-argelinas” e “xenófobas” da antiga Frente Nacional e acrescentou: “o vosso DNA político não mudou, continua racista, revanchista e colonial”.
Laurent Lhardit, do PS francês recordou também a história daquele partido que “apenas prospera com o ódio ao outro (…). Ontem os judeus, hoje os árabes”. E a comunista Elsa Faucillon declarou que: “quer queiram quer não, os trabalhadores argelinos contribuíram para a recuperação do nosso país após a guerra. Os seus filhos e netos hoje trabalham, casam e vivem num país enriquecido pela sua diversidade”, enfatizou. “Não se pode apagar a colonização, a guerra, a morte e a humilhação acrescentando medo.”
O deputado da França Insubmissa Abdelkader Lahmar, também ele de origem familiar argelina, chamou a atenção para a tentativa de “fazer medo” que “em contradição total com todos os estudos sérios, não hesita em estabelecer ligações grosseiras entre imigração irregular e delinquência”. Trata-se de um texto que “resume bem as obsessões anti-argelinas e xenófobas que caracterizam a UN desde a sua criação” e que é “racista e odioso”.
A resolução está “nos antípodas da realidade”
Numa peça jornalística sobre a realidade por detrás da votação, publicada no Mediapart, a jornalista Nejma Brahim realça que a votação “demonstra um completo desfasamento com a realidade”. Isto porque pretende “criar a impressão de que os imigrantes argelinos beneficiariam de um tratamento preferencial, quando na verdade enfrentam inúmeras dificuldades, tal como outros estrangeiros em França”.
Esta ideia apoia-se nos testemunhos de peritos como Stéphane Maugendre, advogado especialista em direito da imigração, que explica que a convenção franco-argelina “tem sido alterada regularmente desde a sua assinatura” e que atualmente a diferença com o código geral de entrada de estrangeiros “é uma mera insignificância”, com pequenas diferenças que afetam poucos, como alguns empresários.
Marie Barbarot, gestora de projetos sobre direitos de residência da secular ONG Cimade, também concorda que “os argelinos enfrentam dificuldades muito significativas” e “não estão em melhor situação do que qualquer outra pessoa” se quiserem emigrar e permanecer em França. Há até disposições que são “discriminatórias” face aos outros emigrantes, como o caso das vítimas de violência ou de pais de crianças doentes, que têm estatuto próprio no regulamento geral mas não no acordo, ou dos estudantes argelinos que têm limites aos horários de trabalho maiores e que quando acabam os estudos não podem ter uma autorização temporária que lhes permita procurar trabalho, indica.
E uma antiga funcionária de prefeitura na região de Île-de-France que tratava deste tipo de pedidos de autorização de residência, Yasmine, também desmente a tese do mar de facilidades que estaria aberto aos argelinos em França. Assegura que estes “não recebiam tratamento especial. Todos eram tratados da mesma forma”, não havendo benefícios por causa do acordo.
O sociólogo Paul-Max Morin, no Libération, considera o texto da extrema-direita “sensacionalista” e que apesar de “desprovido de poder legislativo” deu “um selo de aprovação republicana a uma obsessão racista”. Tal como os deputados da esquerda, também ele sublinha que a União Nacional “nunca rompeu com as suas origens, as dos terroristas da Argélia francesa, dos defensores da colonização, daqueles que sempre procuraram prolongar a dominação colonial estigmatizando os imigrantes. Ao atacar mais uma vez os argelinos, este partido repete o velho discurso de ódio: fazer acreditar que a imigração argelina é uma ameaça, quando, na verdade, é uma das próprias raízes da sociedade francesa contemporânea”.
Para além disso, critica “o vazio histórico e político deste centro cobarde, disposto a tudo por uma manobra tática, um êxtase mediático, uma ilusão de autoridade”. Estes deputados, denuncia, “preferiram ceder ao medo mesquinho” e “feriram milhões de franceses e francesas que transportam a Argélia no seu próprio ser, nas suas famílias, nos seus nomes”.
Num texto emotivo, conclui que a História “recordará os nomes” daqueles que colocaram a República do lado de um ódio fácil, mesquinho e ridículo”.