“O ponto de vista depende de onde te situas”, afirma Adib Shaheen, um ativista e escritor de origem palestina-ucraniana que foi forçado a assentar em Inglaterra desde a invasão em larga escala da Ucrânia por tropas russas. Com estas palavras, ele critica as perspetivas limitadas das pessoas que são influenciadas pela propaganda. Adib assume-se como marxista, estudou na Ucrânia durante a era soviética e tem cidadania ucraniana. Vem sempre a manifestações de solidariedade com a Ucrânia, bem como a manifestações de solidariedade com a Palestina, munido das bandeiras dos seus dois países. O seu próximo livro será precisamente sobre isto: a sua luta, a história da sua vida e a sua camaradagem.
Ao invés da maioria dos ucranianos, Adib Shaheen já tinha sofrido devido a ações militares imperialistas, dado que nasceu na Jordânia e viveu na Palestina durante várias décadas. A sua cidade-natal, Nablus, está localizada entre duas montanhas, cada uma com um bastião paramilitar israelita que controla a cidade, onde muçulmanos, judeus e cristãos outrora viveram pacificamente durante séculos. Dessarte, Adib conhece em primeira mão o que é viver sob ocupação. Ele considera a luta contra o imperialismo e pela implementação prática da Declaração [Universal] dos Direitos Humanos a obra da sua vida. Convidamos-vos a conhecer este homem extraordinário de paz e luta pela igualdade.
Diz-nos, o que fazes enquanto ativista?
Antes da invasão em larga escala, vivia na Ucrânia e em 2022 fugi para o Reino Unido [RU]. Aí conheci pessoas diferentes envolvidas em duas questões que são importantes para mim. Primeiramente, o apoio e a solidariedade com a Ucrânia na guerra contra a agressão russa. E, em segundo lugar, o apoio e a solidariedade com o povo palestino. Há pessoas que são simultaneamente membros da Campanha de Solidariedade com a Palestina e da Campanha de Solidariedade com a Ucrânia. Porquê? Porque acreditam que a luta por um futuro justo e o apoio a povos que resistem à agressão e à repressão são a mesma luta. A geografia não desempenha nenhum papel. Claro que há peculiaridades em cada caso, mas é a mesma batalha. Quando eu digo: “Estou a lutar por justiça!”, estou a lutar por justiça na Ucrânia, na Palestina e em Caxemira.
Reuni com pessoas da Campanha de Solidariedade com a Palestina e da Campanha de Solidariedade com a Ucrânia e juntei-me às suas atividades. Há naturalmente algumas reservas, mas em geral é uma boa iniciativa. Eles estavam a reunir ajuda humanitária para a Ucrânia. E depois vimos a eclosão da agressão israelita contra a Faixa de Gaza e a Cisjordânia, onde a minha cidade natal, Nablus, está localizada. Conquanto o ataque em Nablus não seja tão brutal em escala como a guerra da Rússia contra a Ucrânia, é a mesma guerra que aí está a ter lugar e as pessoas estão a morrer da mesma maneira. É uma agressão orientada que visa expulsar palestinianos das suas aldeias, cidades e do país em si. É isto que o exército israelita e os colonos estão a fazer, ao criarem colonatos ilegais na Cisjordânia.
Também organizamos manifestações, recolhemos apoio humanitário e financeiro e colocamos pressão sobre os deputados do RU. Por exemplo, promovemos recentemente um projeto de resolução para o Governo exigir um cessar-fogo de Israel. Infelizmente a maioria do Parlamento votou contra este projeto. Há também o movimento “Sem cessar-fogo, sem voto”.1 A ideia é de que se não votaste a favor de um cessar-fogo na Palestina, nós não votaremos em ti nas eleições. Este movimento ganhou força e a sua emergência mostra como as pessoas estão saturadas dos seus políticos eleitos a apoiarem abertamente o genocídio. Os nossos camaradas no RU e nos EUA estão a manifestar-se, a sensibilizar, a colocar pressão nos legisladores e nos Governos de outros países. Isto já está a gerar frutos: graças aos nossos esforços, o clima político está a mudar gradualmente.
Vais a concentrações no RU com duas bandeiras, uma ucraniana e outra palestina, e no teu livro comparas a Ucrânia e a Palestina. Podes por favor falar-nos acerca dessa comparação?
Desde o primeiro momento desta guerra em Gaza, fui a manifestações pró-Ucrânia com duas bandeiras. As pessoas perguntaram-me porque é que estava a fazer isso. Respondi que vivi na Palestina e na Ucrânia, pelo que conheço ambos os contextos. Os paralelismos, na minha opinião, são óbvios: há um agressor que se comporta da mesma forma em todo o lado. Tanto os israelitas como os russos comportam-se da mesma maneira e até usam a mesma retórica. Eles tentam desumanizar aqueles que são oprimidos e atacados, enquanto fingem que são vítimas que apenas se estão a defender.
Fui sempre a manifestações com a minha bandeira dupla, sempre disse que era um palestino-ucraniano. E vejo estes paralelismos e falo deles a toda a gente. Porque estou a lutar pelo povo ucraniano poder ter a oportunidade de viver na sua terra sem a interferência exterior, estou a lutar para que os ocupantes saiam da nossa terra. Eu também quero que os ocupantes saiam da terra palestiniana. Agora no Donbass os ocupantes e os russos imigrantes estão a ocupar casas que pertenceram a ucranianos. Algo similar está a acontecer na Palestina.
Desde Novembro do ano passado, todos os Sábados tenho participado numa manifestação em Londres com a minha bandeira. Fui aí abordado por polacos que apoiam a Ucrânia. Após a nossa conversa, eles começaram a vir a manifestações em solidariedade com o povo palestiniano porque viram os paralelismos históricos. Agora estamos a trabalhar com eles, remotamente, num plano para uma campanha solidária comum com os povos ucraniano e palestiniano.
Tens estado a preparar uma campanha para parar uma fábrica no RU que produz armas para Israel. Fala-nos mais sobre isso.
Há imensas fábricas militares no RU que produzem drones para o exército israelita. Os nossos camaradas estão constantemente a organizar manifestações aí, tentando cercar as fábricas para que os trabalhadores não possam entrar e os produtos não possam sair. É assim que mostram a sua solidariedade com o povo palestiniano.
Na verdade, este movimento tem uma longa história. Os predecessores destes ativistas usam os mesmos métodos nos portos: arrestavam navios com armas para a África do Sul [quando aí vigorava o apartheid – N.E.]. Houve uma grande campanha para boicotar o Governo da África do Sul. Foi uma campanha de solidariedade muito bem organizada e eficaz. Hoje-em-dia esta tradição é continuada por outros ativistas lutando na Palestina, nos EUA e no RU. A experiência histórica ensinou-lhes que não pode haver segurança para ninguém sem uma paz justa; também compreendem que as sanções e o fim dos investimentos de Israel podem pressionar o Governo israelita e a sua sociedade. Infelizmente esta última apoia a repressão quando se mantém silenciosa sobre os crimes do seu Governo e vota em fascistas de extrema-Direita.
Não é apenas sobre a Palestina, é sobre humanismo, sobre os nossos direitos básicos. Antes de mais nada, o direito à vida de todas pessoas no mundo, o qual está a ser atacado por israelitas na Palestina e por russos na Ucrânia. E que está a ser atacado por aqueles que apoiam Benjamin Netanyahu e dizem “Caro Bibi, se não paras isto e abres a fronteira com o Egito imediatamente, eu vou parar de vos enviar armas, munições e dinheiro!”.
Numa das manifestações, disse que não estava a pedir nada de mais. Absolutamente. Tenho um pedaço de papel com as palavras “Declaração dos Direitos Humanos” aí escritas. Eu ergo-o e digo a toda a gente: “Vede, eu não quero nada mais do que isto”. Levem-na, leiam-na e exijam aos vossos governantes em Londres, em Washington, em todo o lado, para que façam pressão sobre aqueles que estão a cometer genocídio na Palestina. Sigam apenas as ideias que constam neste pedaço de papel – é tudo o que peço de vós.
Quais são as necessidades correntes das pessoas na parte ocupada da Palestina? Qual é a situação lá agora?
Primeiro que tudo, lá as pessoas precisam de comida e de água potável. Os habitantes locais ficam em longas filas para obter água – alguns com uma garrafa, outros com uma bacia. Este recurso é controlado por Israel. O bloqueio a Gaza começou em 2007. Desde então, Israel tem vindo a enviar ajuda e depois a cortá-la. E agora Gaza está simplesmente bloqueada. Eles até fecharam a fronteira com o Egito, a qual alegadamente não é controlada pelos israelitas… De facto, os israelitas têm controlo completo sobre o espaço aéreo e não permitem de todo que os egípcios abram a fronteira a camiões. Uma vez, os egípcios tentaram deixar entrar mais alguns camiões em Gaza, e um avião de guerra israelita sobrevoou-os e bombardeou-os. Depois disso, os egípcios cessaram essas tentativas. Os israelitas até permitem que os feridos vão até ao Egipo, mas isso acontece muito raramente.
A situação nos hospitais em Gaza, ou melhor, no que resta deles, é extremamente difícil. Médicos e voluntários vindos de todo o mundo estão a ir até lá. Eles trabalham por uma semana ou duas, depois partem e outros ocupam o seu lugar. Aqueles que saíram falam acerca das suas impressões: os feridos são colocados nos corredores e as operações são realizadas sem anestesia, no chão sujo. Estes voluntários dizem que nunca haviam visto nada assim nas suas vidas e nunca haviam imaginado que tal fosse possível. Sem condições, sem humanidade. Os israelitas criaram um verdadeiro inferno em Gaza – um inferno para 2 milhões e 300 mil pessoas.
Dois ministros israelitas que vivem em colonatos ilegais [na Cisjordânia – N.E.] estão a promover uma política muito agressiva, abertamente genocida. Há numerosos extremistas no Governo de Israel, mas estes dois são notoriamente nazis. Eles podem ser assim chamados porque afirmam que “Devemos interromper completamente o fornecimento de comida a Gaza.” Eles querem bloquear o acesso à pequena porção de ajuda que ainda é permitida passar. Presentemente, todos os dias são necessários 500 camiões de ajuda humanitária nos territórios ocupados, dos quais Israel permite entre 20 e 100, conforme os humores. Como resultado, a situação das pessoas sob ocupação está a piorar a cada dia. As pessoas sob ocupação morrem não só devido a bombas, bombardeios de tanques e ataques de atiradores-furtivos, mas também de mal-nutrição. Antes de mais nada, as crianças estão a ser deliberadamente mortas, privadas do acesso a comida.
Como é que vês uma solução para o conflito israelo-palestiniano?
Para responder a esta questão, precisamos de pensar acerca do que deve acontecer aos israelitas [que habitam agora na Palestina – N.E.]. Eles podem viver onde habitam agora, mas viver em termos iguais aos do resto de nós, isto é, dos palestinianos. Por ora cada um deles está armado e pode ir onde quer que queira. Eles são fortes, logo são temidos. Ademais, as povoações palestinas e israelitas agora assemelham-se a um tabuleiro de xadrez, sendo impossível delinear uma fronteira entre os dois países.
Pelo que vejo somente uma saída: pegar nesse pedaço de papel com a Declaração [Universal] dos Direitos Humanos e exigir direitos iguais para todos os residentes deste território. Eu chamo-lhe Palestina. Chame-se Israel, chame-se Palisrael, chame-se Israeltina – não quero saber, não se trata disso. Não é sobre peculiaridades religiosas, nacionais ou outras, mas acerca da ameaça que outras pessoas de diferentes partes do mundo estão a sofrer. É acerca dos direitos básicos de pessoas normais. E se reconhecemos que todos somos seres humanos, não importa se eu sou judeu, tu és palestino, ele é britânico, ucraniano ou chinês.
Eu não quero fazer aos israelitas o que eles fizeram ao meu povo. A casa na qual nasci e fui criado, a casa que me pertencia, está agora no território de um colonato israelita. Outras pessoas vivem nela e eu não vou expulsá-las de lá. Mas eu sempre enfatizei que Israel se irá auto-destruir com o seu racismo. O racismo é uma arma que mata não só aqueles contra quem é dirigido, mas também aqueles que o usam. Israel foi criado sob princípios sionistas e racistas como um Estado para Judeus. E esta ideologia cria uma situação que irá inevitavelmente conduzir à destruição de Israel em si.
Fala-nos da tua experiência de perder a tua terra e de viver sob ocupação.
Em 1994, libertaram-me de uma prisão israelita por resistir à ocupação e fui com os meus primos a uma plantação. É a plantação de citrinos da nossa família, no Vale do Jordão. Pelo que estamos na Cisjordânia, em território ocupado, sentados, a beber café, a falar. Então, literalmente a uma centena de metros da nossa casa, uma moto-quatro segue por uma estrada de terra batida. Nela, um homem novo num uniforme militar, de espingarda de assalto a pender sobre o seu ombro, e uma mulher jovem sentada atrás dele. Fiquei revoltado com isto. Primeiro, eles estavam a conduzir através de território palestiniano, o que é muito arrogante da sua parte. Em segundo lugar, eles estavam a agir negligentemente, porque um dos residentes locais podia ficar furioso e atirar-lhes uma pedra e eles podiam cair numa valeta, ficar feridos ou até mesmo morrer. Por outras palavras, eles deliberadamente descuram a sua segurança porque têm armas e acreditam que os Palestinos não constituem uma ameaça para si.
O meu primo, que é 20 anos mais velho, explicou-me que estes são os filhos dos colonos. Eles receberam um apartamento luxuoso grátis, sementes, fertilizante, o que quer que quisessem, um empréstimo de longa duração e a oportunidade de cultivar o que quer que tenha interesse para o mercado. Foi-lhes afiançado que, mesmo que chegassem de bolsos vazios, viveriam bem – portanto eles vieram. O meu irmão disse-me que os pais deste soldado conheceram-se na nossa terra logo quando eles começaram a trabalhar no colonato. Foram construídas casas pré-fabricadas só para eles. Casaram e este tipo nasceu em 1969. Quando o vimos, ele tinha 23/24 anos, já havia servido no exército e retornara a casa. Deixem-me enfatizar: a casa, ao lugar onde nascera.
Se este casal tivesse tido uma criança em 1995, ela teria 20 anos em 2015. E se por sua vez ela tivesse tido um filho em 2015, a criança teria 7 anos em 2024. Este rapaz iria à escola e o professor perguntar-lhe-ia: “Shlema, onde é que nasceste? De onde é que vens?” E ele responderia: “Eu nasci em Hamra”. Hamra significa “vermelho” em Árabe. É um campo de 10.000 dunams2 [10.000 hectares – N.E.] que deve o nome ao seu solo vermelho. Os colonos não se incomodaram em dar-lhe outro nome e chamaram ao colonato Hamra, que significa Vermelho. E esta criança dirá: “Eu nasci em Hamra, o meu pai nasceu em Hamra, o meu avô nasceu em Hamra.” Como é que podes dizer a esta criança que ela é um colono ou que o seu bisavô veio de um lugar qualquer na Europa? Isto não lhe diz respeito, a sua casa é aqui. Ele não é um colono, ele nasceu e viveu nesta terra, os seus pais e os seus avós nasceram aqui.
Portanto, quando eu digo “povo palestiniano”, refiro-me a quem vive na Palestina: quer eles sejam judeus, cristãos ou muçulmanos, isso não importa. Eles são palestinianos para mim. Eu chamo-lhes isso porque esse é o nome que a terra lhes dá. E tu podes renomear o Estado do modo que quiseres, porque tu continuarás e pertencerás a esta terra.
Para que fosse um Estado puramente judaico, todos os outros teriam de ser expulsos. Hoje-em-dia na Palestina, na Palestina geográfica e histórica, há números equivalentes de judeus e de não-judeus, como eles gostam de chamar. Há aproximadamente 7 milhões de judeus e 7 milhões de palestinianos. Para mim, isto são 14 milhões de palestinianos. E se tu expulsas todos os não-judeus, isso será outro crime gigantesco. O sangue destas pessoas, o seu sofrimento, permanecerá não só na consciência daqueles que efetivamente operaram na sua matança e expulsão, mas também na consciência de Biden, Sunak e do resto dos políticos que os apoiam.
Mas no século XXI um tal crime é mais difícil de cometer do que há 100 anos, quando os Turcos, por exemplo, exterminaram os Arménios; ou do que há 80 anos, quando Hitler exterminou judeus e outros nos campos de concentração. Hoje ninguém fica à espera que o crime aconteça, o mundo está a erguer-se contra ele.
Se uma patrulha militar nos territórios ocupados faz parar um palestiniano que não transporta consigo o seu bilhete de identidade, batem-lhe e encarceram-no por 18 dias, alegadamente para investigar quem é que ele realmente é. E se um israelita é parado, ele pode cuspir na face do polícia ou, se a situação for séria, pode chamar alguém para trazer a sua identificação. Mas os israelitas não andam com os seus bilhetes de identidade. Para os palestinianos, é perigoso sair de casa sem a sua identificação. A polícia pode identificar o detido no dia seguinte, mas vão mantê-lo encarcerado na mesma por 18 dias e abusar dele.
Pelo que, quando saio de casa, a minha mão vai automaticamente tocar na minha carteira no meu bolso, para me assegurar de que a identificação continua lá. Quando me instalei na Ucrânia e recebi o meu passaporte ucraniano, trazia-o sempre comigo no meu bolso. Os meus amigos e colegas riam-se de mim, mas respondia-lhes sempre: vocês não estiveram no meu lugar, vocês não viveram aquela vida e aquela ocupação, vocês não conhecem aquele medo. E isto é só uma pequena parte daquilo que as pessoas têm vivido todos estes anos, desde 1948.
Hoje em dia, as pessoas são frequentemente radicalizadas para a direita, tornando-se nacionalistas radicais. Na Ucrânia, piadas acerca de soldados russos mortos são agora comuns. Tu deves ter testemunhado algo do género na Palestina. Estas perspetivas podem conduzir a alguma mudança positiva?
Não, elas não levam a nada de bom. A certa altura, depois de 2014, Oleh Tyahnybok, o dirigente do partido Svoboda, teve o seguinte slogan: “Nacionalismo é amor”. Eu queria corrigi-lo: “Patriotismo é amor. Nacionalismo é ódio.”
Se me vejo a mim próprio como um ser humano, então eu sou um ser humano. E posso amar o meu país, sim. Mas se me vejo exclusivamente como ucraniano ou palestiniano ou francês ou outra coisa qualquer, imediatamente rejeito outras pessoas por causa da nacionalidade, como se a minha nação fosse melhor do que as outras. Vivendo aqui na Grã-Bretanha, vejo na rua pessoas de países africanos, da Índia, da Jamaica, de países árabes – e elas vivem vidas plenas. Nas palavras da Declaração [Universal] de Direitos Humanos, nós somos todos iguais. Eu gosto desta abordagem. É claro que, algumas vezes, tu sentes racismo, mas, na maioria a posição das pessoas é absolutamente adequada.
Em Israel, existe um conceito denominado Aliyah, que significa “crescente”, “ascensão”. Este é o nome da imigração para Israel. Por exemplo, tu vivias na Argentina e ascendeste para Israel. Aliyah é uma ascensão religiosa. Olim Hadashim significa “aqueles que ascenderam”. Israel é um Estado para os Judeus enquanto povo escolhido de Deus, mas há também um significado étnico aqui, como se os Judeus não fossem apenas aderentes do Judaísmo, mas também um grupo étnico. E há também casos de pessoas que emigraram de Israel. São chamado Yordim – “os caídos”, “aqueles que caíram”. Toda a ideologia está escondida nestas duas palavras. A ideologia de superioridade não só sobre os Palestinos, que podem ser oprimidos porque são fracos, mas também sobre outros povos.
Por conseguinte, o nacionalismo não é amor, ao invés do patriotismo. Eu amo a minha pátria, o país onde nasci, e vivo com outras pessoas diferentes. Nós estamos a construir o mundo em conjunto. E, se alguém ataca – não interessa quem –, nós vamos retaliar, não para proteger os direitos da nação, mas porque a agressão – a agressão militar em particular – é um ataque aos direitos humanos básicos: a viver livremente, a dizer o que se quer, a fazer o quer se quer, desde que não interfira com os outros e não infrinja as suas liberdades. Dado que sou marxista, tento sempre falar com pessoas baseado em valores humanistas universais. Vejo uma remissão no socialismo e acredito de que vale a pena falar disso numa linguagem clara. É por isso que digo às pessoas: vivemos juntos, seguimos certas regras, baseadas na Declaração [Universal] dos Direitos Humanos.

Entre ucranianos, ouve-se com frequência a ideia de que os palestinianos são contra a Ucrânia. Ademais, que a Ucrânia devia ser como Israel: um Estado bem protegido, de alta-tecnologia. Porque é que, na tua ótica, os ucranianos não veem que o problema comum da Palestina e da Ucrânia é o imperialismo? E porque é que há uma atitude tão positiva para com o Estado que incorpora este imperialismo?
Esta questão pode ser respondida com uma palavra: propaganda. Vamos começar com a Palestina. Os palestinianos têm vindo a sofrer com agressões e ocupações há décadas: a ocupação britânica em 1917; depois a criação de Israel em 1948; a divisão da Palestina e mais tarde a sua ocupação completa em 1967. Isto são mais do que cem anos. Pelo que eles têm sido muito críticos do aparato imperialista americano.
Eu tenho agora 65 anos. Nunca vivi um só dia destes 65 anos normalmente, mesmo quando estava a estudar na União Soviética em condições maravilhosas, enquanto estudante. Eu estava com a minha pátria, com todas as pessoas oprimidas. Enquanto marxista, estava em solidariedade com os vietnamitas e os cubanos, com os nicaraguenses e os sul-africanos. Senti a sua dor e apoiei-os.
E quem é que apoiou o agressor que me atacou e ao meu povo? Os Estados Unidos, o Estado imperialista. Todos conhecemos a história do extermínio dos americanos nativos, do racismo, do imperialismo, das aventuras militares à volta do mundo. Eles invadiram o Vietname e mataram lá pessoas. Eles apoiaram o golpe de Estado no Chile, depuseram o governo democraticamente eleito de Salvador Allende e instalaram no poder um fascista que trouxe muita dor ao seu povo. Parece-me que não há um só país que não tenha sofrido com a agressão imperialista dos EUA. Portanto eu não acredito que os americanos se tenham subitamente tornado bondosos e estejam a ajudar a Ucrânia do fundo dos seus corações. Ninguém me consegue convencer de que os Estados Unidos são um país bom. Sim, lá algumas pessoas vivem bem. E até mesmo palestinianos que emigram para lá dizem que vivem no luxo. Mas isto não nega o facto de que é o Estado mais brutal e cruel que tem vindo a ajudar aqueles que oprimem a Palestina desde há 75 anos. Não consegues convencer um rato de que existe um animal mais terrível do que um gato. Mas o gato e aqueles que ajudam e alimentam o gato são parte da mesma corrente.
No que toca à Rússia, esta tem os seus próprios canais televisivos em Árabe, que levam a cabo propaganda sistemática. Por causa desta propaganda, muitos licenciados em universidades soviéticas – meus pares – acreditam que a Rússia é uma continuação da União Soviética. Eu tento convencê-los de que tal não é o caso. Sim, a Rússia herdou armas nucleares da URSS e um lugar no Conselho de Segurança da ONU, mas estes são só detalhes técnicos. O sistema ideológico e sócio-político hodierno da Federação Russa não tem nada que ver com a União Soviética. Mas é impossível provar isto aos meus amigos e colegas com quem estudei: eles estão convencidos de que a Rússia está simplesmente a defender-se contra a NATO.3
A propaganda russa usa a história do apoio da União Soviética à luta do povo palestiniano para justificar a sua posição. É impossível convencer as pessoas de que esta é uma ideia falsa. Dizem que os americanos têm os seus próprios interesses quando apoiam a Ucrânia. Podemos concordar com isso. Mas, por outro lado, os russos estão a atacar a Ucrânia, a ocupar o seu território, tal como os israelitas ocuparam o território palestino. Os russos estão a matar ucranianos, tal como os israelitas estão a matar palestinianos. Estão a destruir cidades e a lançar rockets e bombas a civis, tal como os israelitas fazem na Palestina. Parece uma lógica simples, mas os palestinianos não a querem compreender. Ouvem a Al-Mayadeen, uma estação televisiva árabe que emite constantemente propaganda pró-russa, a glorificar a Rússia e a colocá-la em oposição a Israel e à América.
Na Ucrânia, de certo modo, a situação é a inversa. A somar à propaganda pró-americana e pró-europeia, também há a propaganda sionista, muitas vezes através de imigrantes que vieram da União Soviética e da Ucrânia para Israel e que continuam em contacto com os seus parentes e amigos na Ucrânia. Tenho amigos que receberam ajuda dos seus irmãos, irmãs, parentes e vizinhos em Israel desde o início da invasão em larga escala. E eis o que os ucranianos veem: o Hezbollah e o Irão estão a ajudar os palestinianos; e o Irão enviou drones para a Rússia, que por sua vez nos bombardeia com esses drones. Logo, sucede que os palestinianos são nossos inimigos. Tu explicas-lhes que eles também são pessoas, que têm o direito à vida, que estão a ser bombardeados e mortos, tal como tu. Mas eles não compreendem. A propaganda de Israel também afeta ucranianos.
Obviamente que existe uma agressão e uma ocupação lá e cá, mas as pessoas não a querem ver. Para mim, isso é apenas absurdo. Como é que ucranianos ou palestinianos podem apoiar qualquer ocupação? Como é que tu podes apoiar a ocupação da terra de outra pessoa, o assassinato de outro povo, se sabes pela tua própria experiência o que é que isso significa? Infelizmente, da parte tanto de ucranianos como de palestinianos, há uma desvalorização da ocupação dos outros, uma desvalorização do sofrimento das pessoas comuns.
Como é que pensas que é possível manter uma mente esclarecida e não sucumbir à propaganda? Onde é que está o antídoto para isso?
Primeiro que tudo, é trabalho árduo. Quando algo acontece, como uma inundação ou um terramoto, começas a desmantelar as ruínas, para mitigar as consequências do desastre. E depois começas a construir alguma coisa. Este é um processo lento. Mas o sangue que foi derramado na Palestina desde 7 de Outubro de 2023 acelerou o processo e funcionou como um antídoto para a propaganda imperialista e capitalista.
Eu estive numa manifestação em Londres com a minha bandeira dupla e a minha pancarta dupla. De um lado escrevi: “Um Estado democrático para todos os seus cidadãos é Palestina e Israel”. E no outro: “Os capitalistas fazem guerras por lucro”. Os povos primitivos lutavam para comer, lutavam por recursos quando algum outro grupo entrava no seu território. Mas as guerras modernas são iniciadas por lucro: por urânio, diamantes, petróleo, terra para cultivar, água, etc…. “Precisamos disto e daquilo. O que é que vocês são, [habitantes] locais? Saiam daqui. Se não, atiraremos sobre vocês.” Este é um lado do problema.
O outro lado é a venda de armas, o completo militar-industrial. Como é que se convence as pessoas a comprar armas quando tens interesses investidos na sua produção? Não dizes numa publicidade que é bom matar pessoas. Precisas de uma abordagem diferente, uma mais criativa. Por exemplo, há um conflito entre a Etiópia e o Egito sobre a construção de uma barragem no Nilo, o qual pode escalar para um conflito militar. Os fabricantes de armas estão diretamente interessados nisto porque vão poder vender armamento à Etiópia ou ao Egito. Ou a ambos. Isto é o que é o capitalismo. É uma política agressiva e uma ideologia agressiva.
O capitalismo opera, antes de mais, quando o proprietário arrebata a mais-valia do produto gerada pelo trabalhador e dá-lhe uma pequeníssima parte do valor dos bens pelo seu labor. Aquele que roubou previamente o seu primeiro milhão pode financiar a produção e forçar outros a trabalhar para si. Pelo que já há aqui um certo nível de agressão: as pessoas concordam com o capitalista apenas porque não têm outra escolha.
O capitalismo é uma ideologia de acordo com a qual eu farei qualquer coisa para gerar mais dinheiro, não interessa às custas de quem. O empregador olha para os seus empregados como números. Apenas se preocupa com o lucro no final do ano fiscal. E a produção de armas é um negócio muito lucrativo. Mas para haver procura de armas, tem de existir um inimigo. Terroristas, muçulmanos, qualquer um. Não há um inimigo? Está bem, vamos criar um. Tudo isto visa colocar este sistema orientado para o lucro a operar. E nele as pessoas são todas dispensáveis. É por isso que este pedaço de papel com a Declaração [Universal] dos Direitos Humanos não vale nada para os capitalistas.
Quando olhas para as coisas globalmente, tudo se encaixa e torna-se óbvio que temos de lutar.
Ontem falei com um amigo meu sobre as manifestações em Nottingham. Participam nelas entre 300 e 500 pessoas, uma vez chegou a um milhar. Ele perguntou-me o que é que aquilo iria mudar. Bem, nós agora chegamos às manifestações, as pessoas aparecem com as bandeiras palestinianas, aqueles que passam de carro acenam-nos das janelas, mas tudo é à custa do sangue palestiniano. Desde 7 de Outubro, ao fim de cinco meses4 de massacres, assassínios, derrame de sangue e destruição, todos os Poderes fecham os olhos, dizendo que Israel tem o direito à autodefesa. As pessoas normais estão fartas disto, estão a manifestar-se – especialmente nos Estados Unidos, na Europa e na Grã-Bretanha.
Quando os russos estavam a matar os tchetchenos, o mundo inteiro esteve silencioso. E agora eles estão a matar ucranianos mas o mundo não está silencioso. Isto aconteceu porque os interesses dos Estados Unidos divergiram dos da Rússia. Mas se – Deus o proíba – os interesses dos Estados Unidos e da Rússia coincidirem na Ucrânia, eu não invejo os meus compatriotas na Ucrânia. Mesmo antes de 2022, disse a toda a gente e continuo a repetir: não se pode confiar nem os Estados Unidos nem na NATO.
Nós já vimos isto em Cabul. A missão militar dos EUA no Afeganistão durou quase 20 anos. Quando os americanos estavam a sair do país, as pessoas que eles deixaram para atrás perseguiram os aviões militares a correr, tentando agarrar-se às rodas. Depois dos Talibãs tomarem o poder, literalmente nos primeiros dias a seguir à captura de Cabul, muitos habitantes locais que haviam cooperado com os americanos foram atingidos a tiro e enforcados. É assim que eles são, os parceiros ocidentais.
Eu acredito que precisamos de estar constantemente a explicar o que é que está a acontecer, pois só assim as pessoas começam a perceber, só assim é que a mudança social para superar as crises se torna possível. Crises de guerra, crises ambientais, crises de energia, etc., só podem ser dirimidas pelo socialismo genuíno. Existe uma possibilidade de que as pessoas venham realmente a perceber? Estou convicto de que sim, de que o processo já começou, de que apenas precisamos de pressionar tais mudanças. Eu e os meus camaradas tomaremos parte nas transformações e continuaremos a informar as pessoas.
Fale-nos mais sobre o livro que está atualmente a escrever. De que é que trata?
Será acerca da minha vida, da vida do meu povo e da ideologia da superioridade étnica que levou a este sofrimento. O livro principiará pelo fim, pelo que o primeiro capítulo será sobre a Ucrânia e a invasão de larga escala. Haverá paralelos com a Palestina.
O capítulo seguinte será sobre a estória do meu nascimento. Porque é que o meu certificado de nascimento é jordano? Porque em 1948, quando o Estado de Israel foi criado, eclodiu uma guerra entre exércitos árabes e grupos judeus armados na Palestina. Isto levou à divisão de facto da Palestina: o Estado de Israel foi formado numa parte; as tropas egípcias ocuparam a Faixa de Gaza; e as tropas jordanas ficaram na terceira parte. Por consequência eles impediram que os Palestinianos criassem o seu próprio Estado.
Em 1950, a Jordânia anunciou a reunificação da ala Oeste5 com a de Este, formando o então apelidado Emirado da Transjordânia, o país que é agora chamado Jordânia. Quando nasci em 1958, o meu certificado de nascimento foi emitido pelo Ministro da Saúde do Reino Haxemita da Jordânia. Sou um palestiniano nascido na Palestina, mas de acordo com o meu passaporte seria jordano. O meu falecido pai teve um passaporte palestiniano durante a ocupação britânica da Palestina, quando havia um chamado Mandato. De acordo com este Mandato, o governo palestiniano imprimia dinheiro com a palavra “Palestina” nele e tinha o seu próprio serviço de migração. Mas todo o poder estava nas mãos do comissário britânico.
O meu pai e os seus camaradas opuseram-se ativamente à ocupação israelita, que começou em 1967. Eles criaram uma organização de resistência popular à ocupação. Por causa disto, ele foi uma das primeiras pessoas a ser expulsa da Palestina pelos israelitas em 1968, somente um ano após o início da ocupação. Depois mudámo-nos para a Jordânia e daí fui estudar para a União Soviética. Mais tarde voltei à Jordânia, onde vivi por dois anos, tendo de seguida retornado à Palestina, mesmo a tempo da primeira intifada.
Se estás sob ocupação, tu tens o direito a resistir. O direito a resistir é garantido pela Declaração [Universal] dos Direitos Humanos. É Direito Internacional. Eu defendi este direito com outros amigos e camaradas. Então, em 1990, fui preso por Israel, tendo sido libertado em 1994. Depois disto investi todo o meu esforço em apoiar a minha família. Foi muito difícil para nós, naquela altura. Em 2000 começou a segunda intifada. Viver na Palestina tornava-se cada vez mais difícil e mais perigoso, pelo que nos mudámos para a Jordânia e daí fomos para a Ucrânia, dois anos mais tarde. Aconteceu por acaso, através de conhecidos, e também porque eu era um engenheiro eletrotécnico de formação, mas na Palestina eu estava envolvido na agricultura. Foi-me feita uma proposta de trabalho na Ucrânia, onde trabalhei durante algum tempo. Então tive de abandonar tudo uma vez mais.
Mais adiante no livro, vou analisar tudo o que me aconteceu. Estou apenas a falar da minha vida e das minhas observações. O capítulo sobre a Ucrânia é intitulado “Ucrânia: da Tragédia à Comédia e o seu Retorno”. Tenho acompanhado os eventos na Ucrânia desde o colapso da União Soviética, e desde o início de 2003 que tenho vivido lá, falado com pessoas, escutado, lido. Os tempos mais difíceis para os ucranianos foram os mais difíceis para mim, a nível a pessoal. E as ameaças que os ucranianos estão agora a enfrentar, conheço-as por experiência própria – e elas não podem ser ignoradas. No livro, descrevo como o Governo mudou, como é que Yanukovych chegou ao poder, como é que Maidan aconteceu e todos esses eventos.
Eu tento sempre pensar de forma lógica, sem preconceitos. Quer dizer, as pessoas dizem-me que sou palestiniano e eu respondo: sim, sou; as pessoas dizem-me que sou ucraniano e eu replico: sim, sou. Mas, em primeiro lugar e acima de tudo, sou um ser humano, pelo que olho para toda a gente a partir desta posição universal. Quando alguém está a ser oprimido, eu naturalmente fico do lado dos oprimidos ou escravizados, quem quer que sejam. Levanto sempre a minha voz contra a opressão e ataques aos direitos humanos – esta é a minha abordagem.
Entrevista de Daria Selyshcheva, Valerii Petrov. Traduzida do ucraniano por Anastasia Ryabchuk. Publicado originalmente na Commons a 16.04.2024. Traduzido por Miguel Almeida para o Esquerda.net.
Notas: