No fim de semana de debates do Fórum Socialismo 2023, que decorreu de 8 a 10 de setembro, em Viseu, António Brito Guterres e Vasco Barata, este último jurista, deputado municipal do Bloco de Esquerda, e um dos porta-vozes do movimento Casas para Viver, apresentaram o painel “Como parar a tempestade perfeita na Habitação?”.
No final da sessão, Vasco Barata conversou com António Brito Guterres sobre os desafios com que nos confrontamos no que respeita ao acesso a este direito constitucionalmente consagrado.
Saímos agora de um debate importante sobre a Habitação em que se abordou a transversalidade desta crise. Como é que podemos emancipar-nos e criar uma luta nos vários planos, seja no plano das políticas, mas também no âmbito da mobilização social?
Agarrando no que disseste, é importante perceber que agora parece ser um problema de todos, infelizmente. Uma certa abstinência de participação nos últimos anos, em movimentos cívicos e sociais, também ajudou a chegar a este ponto. Só agora estamos a conseguir ter alguma força para ser um ator que possa ter vir ter um espaço na mesa da discussão sobre a questão da habitação.
A questão da habitação é central para a vida das pessoas, é primordial como base para o acesso, nomeadamente, à intimidade, à saúde mental, à família, à organização coletiva, etc. E é também, ao mesmo tempo, o que é mais oneroso para cada pessoa individualmente ou coletivamente, no âmbito da família ou de outras formas que as pessoas escolhem para se organizarem. A habitação é um esteio da nossa sociedade.
Mas já nos esquecemos há muito tempo que ela é um direito consagrado na nossa Constituição. E que tudo o que está a acontecer está muito longe de cumprir esse direito, cada vez mais longe.
O Governo percebeu que tinha de, pelo menos, e nem que fosse do ponto de vista do marketing, ter uma participação, uma presença sobre o assunto. Como sabemos, a discussão pública sobre a questão da habitação ficou muito fechada, e arrumada, com os juros bonificados. Achou-se que, em Portugal, todas as pessoas podiam comprar casa, e o assunto estava resolvido.
Da mesma maneira que se achou que o plano nacional do realojamento estava fechado de vez, que se tinha cumprido, finalmente, o artigo 65 [da Constituição da República Portuguesa]. Já percebemos que não é assim, que a globalização tem vários ritmos, e, infelizmente, o ritmo das pessoas é mais lento do que o fluxo de capital, na medida em que a relação que existe hoje em dia é feita para esse fluxo de capital. E isso faz com que Portugal seja um mercado muito pequeno para todos os fluxos de capital que existem mundialmente. Se reparares bem, nos últimos anos, quando algum setor do mundo tem uma crise, há outro que vem para Portugal. Tiveste os BRICS a intervir, depois vão abaixo, vem o pessoal europeu investir, agora vêm os americanos...
António Brito Guterres no painel “Como parar a tempestade perfeita na Habitação?” do Fórum Socialismo 2023. Foto de Ana Mendes.
É ilimitado, não é? Estamos a competir no fundo com um dinheiro ilimitado, um mercado infindável.
Há algumas teorias, inclusive entre algum pessoal de esquerda, que acha que vai ver uma bolha e que essa bolha vai rebentar. E isso é mentira, até porque, quando houver uma bolha, isso vai servir de ajuste central para o capital, vai haver mais foco de desigualdade, mais mecanismos de afastar as pessoas de todos os seus direitos.
E até porque, provavelmente, havendo essa bolha e rebentando, certamente que viriam políticas para ajudar a salvar [o setor imobiliário], como aconteceu no passado.
Claro, como aconteceu no passado. E quem vai ficar mais para trás, são as pessoas que já estão mais para trás hoje em dia. É isso que vai acontecer.
Acho que há duas linhas, uma tem a ver com as medidas. Efetivamente, tens de acabar com a falta de equidade que este investimento vindo de fora tem realizado. E é até quase ridículo se pensarmos, por exemplo, se, em Lisboa, é mesmo preciso que haja benefícios fiscais para nómadas digitais, ou é mesmo se é preciso que haja outro tipo de benefícios, por exemplo, para residentes europeus virem para Lisboa, com tudo o que a capital portuguesa oferece, a nível do tempo, de acesso a praias… É quase ridículo ter de fazer isso. E, mesmo que não existissem esses incentivos, com a situação atual e com a atração que já existe face a Lisboa, já teríamos que fazer políticas para abrandar esse fluxo.
E algumas delas, para mim, continuam muito em focadas em: 1 - acha-se que construir mais vai melhorar a situação, porque vai aumentar a oferta. É mentira, porque como agora falámos, Lisboa está num acesso global de fluxos de capitais e, portanto, todo o investimento para a construção, que agora foi mais liberalizado, vai ser feito por um mercado de luxo. Portanto, as pessoas da classe média, as pessoas mais pobres vão ficar de fora. É preciso construir, sim, mas, se calhar, o que é preciso é renovar os centros urbanos e dotá-los mais para a habitação pública, olhar para o parque habitacional, que está a ser comercializado via Airbnb, e transformá-lo, outra vez, em parque habitacional, ou seja, pensando na função social da habitação, e essas casas sendo, outra vez, convertidas para as pessoas poderem morar.
António Brito Guterres no painel “Como parar a tempestade perfeita na Habitação?” do Fórum Socialismo 2023. Foto de Ana Mendes.
Reabilitar quartéis, reabilitar essas infraestruturas…
Por exemplo. As grandes cidades ainda têm, hoje, grandes infraestruturas centrais. Por exemplo, em Lisboa, a Colina de Santana tem sete ou oito instituições, entre hospitais e quartéis. E o que está programado para ali são hotéis.
É preciso pensar que é bastante melhor ter uma cidade densa, com pessoas que moram lá, que habitam, que se cruzam e criam coesões, e criam diversidade, criam paz social, do que espaços higienizados onde ninguém mora, onde não se cria coesão, onde não se criam os pequenos conflitos que têm que existir para chegarmos aos nossos patamares de forma de estar.
É primordial acabar com a falta de equidade do investimento estrangeiro, com possibilidade de as pessoas estrangeiras poderem ter casas vazias em Portugal.
A questão de que falei no que respeita ao parque habitacional é importantíssima. Estamos com 2%, e diz-se que se queremos chegar aos 5 ou 10 não chega. Temos de ter mais parque habitacional público e, enquanto isso não acontece, temos de limitar os preços. Senão, as pessoas não conseguem morar simplesmente, não é?
Estas medidas estão a ser aplicadas no campo internacional, estão a acontecer noutros países, e por iniciativa até de governos liberais, alguns de direita, e muitos de centro esquerda equiparados ao PS que nos governa. Este ano, a questão do Canadá foi muito falada porque fala de coisas que até uma certa mobilização de rua em Portugal já pede: limitar a venda de casas a estrangeiros não residentes; criar impostos gravíssimos para quem o faz, para quem compra casa e não mora cá; controlar as rendas.
No fundo, é aplicar isso. Mas, neste momento, temos a discussão muito pouco balanceada, o que tem a ver também com a questão dos media, de como está tudo organizado e com as estruturas de poder e de dinheiro. Temos os grandes agentes e atores do imobiliário, do alojamento local, dos bancos, a terem grande espaço de fala. E os atores sociais, sejam as pessoas individualmente ou organizadas coletivamente, estão desaparecidos da discussão. E, portanto, esta distância que existe entre quem decide, e quem decide está muito longe da vida ordinária das pessoas, é muito grande. Temos de fazer com que a vida do quotidiano chegue a quem decide.
António Brito Guterres no painel “Como parar a tempestade perfeita na Habitação?”. do Fórum Socialismo 2023. Foto de Ana Mendes.
É até chocante. Neste debate vemos a dramatização absolutamente absurda das vítimas do imobiliário, que afirmam que não conseguem construir, que é muito caro construir, e que pedem menos impostos, enquanto as pessoas no fio da navalha, com taxas de esforço de 70%, 80%….
Para dar um panorama geral, temos pessoas nos ditos bairros sociais em sobrelotação e com inúmeros regressos. Pessoas que tinham sido emancipadas dos bairros sociais estão a voltar todas para eles. Imaginem um T2 com 10 pessoas. Imaginem como é cozinhar, dormir, viver, fazer amor, os trabalhos de casa… Temos as pessoas a pagarem balúrdios, o equivalente a 60%, 70% do seu rendimento, aos bancos com taxas juros. E temos um banco público, por exemplo, que podia fazer alguma relação a isso, e não faz. Temos estudantes à procura de casa, que não conseguem arranjar. Um quarto em Lisboa está na média de quase 500 euros, no Porto a média é de 400 e tal. Temos pessoas que já estão a partilhar camas.
São várias circunstâncias que afetam toda a gente. Vê a questão dos profissionais. Professores, agentes da polícia que não se conseguem fixar nas grandes cidades. Ainda esta semana saiu a notícia sobre os professores que estão em falta, principalmente em Lisboa e no Algarve, exatamente porque as pessoas não concorrem para estes locais.
Pior ainda do que isso, está-se a normalizar a situação atual. Ou seja, nós evidenciamos com casos práticos o que está a acontecer, mas já estamos tão habituados a lidar com os casos práticos e a não ter uma resolução efetiva, que estamos a normalizar o facto de as pessoas viverem na rua. Por exemplo, algo inédito que está a acontecer é termos 100 sem abrigo funcionais. Ou seja, pessoas que instalam uma tenda, dormem, acordam, arrumam, vão trabalhar, voltam. Estamos a chegar a este nível. E acho que não se está a perceber as consequências que isso vai ter a nível de coesão social, a nível de paz. Vai ser uma grande tragédia. É uma tragédia, de facto.
Sim, nomeadamente a pressão que isso significa para as pessoas em termos de saúde mental, e os efeitos também em termos de fenómenos como a violência doméstica, porque há condições sociais que potenciam a prática de certos crimes, de certas práticas.
O que estás a dizer é interessante, porque nós temos de perceber que estamos interligados. E, portanto, uma má política pública num setor vai inviabilizar todas as outras. Por exemplo, uma casa sobrelotada vai ter consequência no erário público a nível de saúde mental, por exemplo. Vai ter consequência no erário público a nível de aproveitamento escolar.
Exatamente.
Em cada uma das famílias, vais ter uma série de externalidades normais que, neste momento, tu não calculas, mas que são um grande peso para o erário público.
A médio prazo, se investires na habitação, vais consolidar, por externalidade, outras coisas importantes, como as crianças terem capacidade para estudar e passarem de ano, como teres redes de vizinhança que sirvam de apoio e que não se sobrecarregue, por exemplo, o Serviço Nacional de Saúde.