Está a nascer a Aliança de Esquerda Europeia

27 de setembro 2024 - 14:00

O novo partido trará capacidade de pensar a Europa e difundir ideário de esquerda, com pluralismo e autonomia de cada partido, possibilidade de gizar uma estratégia europeia pela Paz, direitos sociais, climáticos, humanos. Quer dialogar com movimentos sociais progressistas e responder à ameaça neofascista por uma revolução cidadã.

porLuís Fazenda

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Dirigentes dos vários partidos do Agora o Povo.
Dirigentes dos vários partidos do Agora o Povo.

Ler plataforma política da Aliança de Esquerda Europeia Pelo Povo e Pelo Planeta


1 - O Bloco de Esquerda foi fundador do Partido da Esquerda Europeia(European Left). O congresso fundador decorreu em Roma, a 8 e 9 de maio de 2004. Uns meses antes, Miguel Portas, eurodeputado do Bloco, juntou a sua assinatura para legalizar esse partido europeu junto da autoridade própria do Parlamento Europeu. Sem esse ato não teria sido possível legalizar o partido, já que o Bloco foi o sétimo partido a integrar este processo, mesmo no limite da exigência legal. No congresso zero, um ano antes, que preparou a formalização da organização, o Partido Comunista Espanhol e o Partido Comunista Francês tinham vetado a entrada do Bloco como membro efetivo e aceitaram apenas que lhe fosse atribuído o estatuto de observador. Quando chegou a necessidade da legalização, deixaram cair o veto por conveniência óbvia. Refiro este episódio original apenas porque ele pautaria as relações ambíguas, ora neutras, ora adversárias, que sempre marcaram o ambiente entre o Bloco e estes partidos. A importância do Partido da Esquerda Europeia (EL) está muito para além disso. Essa articulação política foi muito insuflada pelo movimento alterglobalista (Forum Social Mundial e Forum Social Europeu) e pela convergência política entre os partidos da Nova Esquerda e alguns Partidos Comunistas, designadamente o Syriza radical (ainda na versão Synaspismos), o Die Linke (ainda na versão PDS), a Aliança Verde Vermelha da Dinamarca e a Rifondazione Comunista italiana, de Fausto Bertinotti, que foi o primeiro presidente da EL.

O Bloco acompanhou e contribuiu para essa junção antes e depois da crise global do capitalismo de 2008. Popularizando e dando corpo à contestação contra as políticas neoliberais inspiradas nos tratados de Maastricht e outros, e ao repúdio face à ocupação imperialista do Iraque. Depois da crise de 2008, a urgência impôs uma alternativa contra o austeritarismo e as troikas. Foi um período de assinalável crescimento de partidos e da própria referência europeia, a mais importante no próprio grupo parlamentar, então chamado Grupo Unitário da Esquerda/ Esquerda Verde Nórdica.

2 - A vitória eleitoral do Syriza foi o auge da EL, estávamos em janeiro de 2015. Poucos meses depois, sob a pressão esmagadora da Alemanha e de todos os outros Estados-membros da UE, que ameaçaram a Grécia de expulsão do euro caso recusasse aplicar o memorando da troika, o primeiro-ministro Alexis Tsipras, vice-presidente da EL, capitula e aceita todos os ditames da troika. Sucedeu-se o dramatismo do governo do Syriza, privatizando a torto e a direito e aumentando a miséria popular, após eleições em que garantiu o fim da austeridade e quando o povo grego, em referendo, tinha apoiado a rutura com a Troika. Iniciaram-se dez anos difíceis para a EL. A maioria dos partidos da EL decidiram apoiar acriticamente o governo de Tsipras e aproximaram-se, sem êxito, da social-democracia. O mesmo fez o Syriza que passou a ser observador do PS europeu. Nesse quadro, os partidos não se entenderam para as eleições europeias de 2019, devido à crise grega e ao seu reflexo em cada país. Todos nos lembramos: Passos Coelho atirava ao Bloco as receitas da Grécia como piores que as suas para a população. Assim, nessas eleições de 2019, concorremos separadamente da EL, na plataforma Agora o Povo, com outros seis partidos: France Insoumise (nova versão do Parti de Gauche), Podemos, Aliança Verde Vermelha, Partido de Esquerda da Suécia, Aliança de Esquerda da Finlândia, A Esquerda do Luxemburgo.

3 - A esquerda sofreu uma quebra de votação nessas europeias de 2019. Refletindo sobre esse facto, o Die Linke encetou uma reaproximação entre o grupo do Agora o Povo e a EL, em nome da não fragmentação da esquerda e no quadro do regresso do Syriza à oposição. Houve então uma aceitação geral da continuidade da EL como espaço comum, embora o grupo Agora o Povo tivesse criado o seu subgrupo parlamentar próprio no grupo A Esquerda (ex GUE/NGL). Indicada pelo Agora o Povo, Marisa Matias foi eleita vice-presidente do grupo parlamentar. Essa recolagem ao Partido da Esquerda Europeia (EL) viria a revelar-se uma decisão errada. Muito errada como se viu. Neste período, proliferam "geringonças" em vários países, mas em caso algum a social-democracia se afastou do liberalismo económico e isso esgotou o argumentário daqueles que pretendiam uma reunificação da social-democracia e da esquerda. A EL entra em marasmo estratégico com orientações cruzadas, entre um rumo de esquerda ou um rumo centrista colado ao PS europeu. Simultâneamente, o grande crescimento dos partidos da extrema-direita carregou para dentro da EL uma reação de pânico e confusões sobre a forma de os combater. Todas estas discussões foram dificultadas pelo impacto da pandemia da COVID. E o pior estava para vir: a invasão da Ucrânia pela Rússia, em março de 2022, veio dar o golpe de graça na EL.

4 - No 7º congresso da EL, em Viena, em dezembro de 2022, ainda se conseguiu uma plataforma de unidade acerca da Ucrânia, exigindo a retirada das tropas russas, um cessar-fogo e negociações diplomáticas. Contudo, nos meses seguintes, sobretudo os partidos comunistas, passaram a defender a partilha da Ucrânia (contra a vontade desta) e - coisa extraordinária - um sistema de segurança coletiva da Europa com a participação da Rússia. As divisões sobre a guerra e a paz cavaram-se internacionalmente, agravando contradições já existentes, e vários partidos da EL romperam coligações nos seus países. A atual Rifondazione (já sem expressão) fez campanha contra a Sinistra, o PCF contra a France Insoumise, o PCE contra o Podemos, sempre em termos de sectarismo exacerbado. No Syriza instalou-se o caos interno e o Die Linke entrou em plano inclinado.

Quando se prepararam as eleições europeias de junho de 2024, a maioria dos partidos da EL rejeitou, como candidatos à Comissão Europeia, os co-presidentes do grupo parlamentar A Esquerda, Manon Aubry (France Insoumise) e Martin Schirdewan (Die Linke), que eram aceites pelo grosso da esquerda europeia que não integra a EL. Deve dizer-se que, num esforço louvável mas inconsequente, foram aceites, ao longo dos anos, de pleno direito, e como observadores, mais de duas dezenas de partidos, sobretudo do leste europeu, sem representação parlamentar ou movimentos de massa significativos, cujo voto valia o mesmo que qualquer outro partido dentro da EL. Esse voto foi simplesmente acomodado pelo PCE e pelo PCF, garantindo uma maioria interna a estes dois partidos, por vezes com a cumplicidade do Syriza.

5 - A rutura foi inevitável para os partidos que se opõem a todos os imperialismos, que lutam pela paz e contra a servidão, que têm agendas mais mobilizadoras nos seus respetivos países pela superação do capitalismo. A EL selou o momento da rutura com uma embaixada a Pequim de quinze dirigentes e com uma aberta apologia da China no contexto internacional.

Ficaram na EL dois partidos com eurodeputados eleitos, Syriza e Die Linke, e mais três partidos com representação parlamentar nacional: PCF, PCE, e o esloveno Levica. Pode-se juntar, como observador, o AKEL de Chipre. O Die Linke informa que ainda virá a decidir a sua permanência na EL.

Foi importante esta travessia do Bloco, nos bons e maus momentos. A aprendizagem, o conhecimento alargado de partidos e realidades, a perceção de conteúdos políticos e formas diferentes de propaganda, a avaliação de estratégias e táticas, as fraternidades que se espalharam. Sem esta experiência europeia, o Bloco não seria o que hoje é.

Neste contexto, a plataforma Agora o Povo foi restaurada para as eleições europeias do passado junho, com o objetivo de obter uma posição forte no grupo parlamentar e de vir a formar um outro partido europeu com uma agenda clara de esquerda sobre a Ucrânia e a Palestina e o movimento pela Paz, sobre a justiça climática e a economia social, os serviços públicos, a imigração contra a Europa-fortaleza, o feminismo, sobre a taxação dos ricos e o fim dos off shores, sobre a rejeição do tratado europeu, sobre a causa da habitação, sobre os empregos verdes. Foi com a Declaração de Copenhaga, a este respeito, que fizemos a campanha eleitoral ao PE, na candidatura conduzida pela Catarina Martins.

Em termos europeus, os resultados melhoraram, mas os partidos comunistas predominantes na EL não lograram eleger para o PE. Fora da EL, só os partidos comunistas português, grego e checo elegeram. Os comunistas ficaram com quatro deputados, dois no grupo A Esquerda e dois fora dele.

6 - Durante os últimos dois meses, Partido de Esquerda da Suécia, Bloco de Esquerda, Podemos, France Insoumise, Aliança Verde Vermelha, Aliança de Esquerda da Finlândia e Razem da Polónia lançaram o processo de fundação de um novo partido europeu, de seu nome Aliança de Esquerda Europeia pelos povos e pelo planeta (AEE). Esta European Left Alliance (ELA) constitui-se como um novo sujeito político, É um processo burocrático exigente para ser legalizado na Autoridade dos Partidos junto do Parlamento Europeu. Esse processo compreende estatutos e declaração programática, bem como órgãos, tudo provisório até ao Congresso de Fundação, que só poderá ter lugar no próximo ano. Dezoito eurodeputados estão já ligados à Aliança de Esquerda, que, estima-se, pode vir a incluir mais eurodeputados e partidos.

A capacidade de pensar a Europa em conjunto e de difundir um ideário de esquerda, com pluralismo ideológico, autonomia e igualdade de cada partido, a possibilidade de gizar uma estratégia europeia pela Paz, pelos direitos sociais e climáticos, pelos direitos humanos. Uma Aliança de Esquerda para dialogar com os movimentos sociais progressistas e responder à ameaça neofascista. Uma Aliança de Esquerda para a revolução cidadã, nos termos que a esquerda francesa popularizou recentemente através da Nova Frente Popular. Queremos um partido europeu responsável por colaborar com o grupo parlamentar e por destacar as suas bandeiras. O novo partido promoverá inúmeras iniciativas de intercâmbio de experiências, iniciativas político-culturais e campanhas conjuntas sobre propostas comuns. Usará o inglês como língua de trabalho, bem como a língua nacional do país onde aconteçam as iniciativas. Ao longo do próximo ano, teremos oportunidade de modelar a prática do novo partido, bem como de mobilizar vontades bloquistas que contribuam para a sua fundação.

Sobre o/a autor(a)

Luís Fazenda

Dirigente do Bloco de Esquerda, professor.