Esta gente, ou assim se constrói um mito…

26 de novembro 2024 - 18:12
PARTILHAR

No seu espetáculo de evocação do 25 de novembro que incluirá a declamação do belíssimo poema de Sophia de Mello Breyner Andresen, a Câmara de Sintra anuncia-o como tendo “sido declamado pela própria pelos 40 anos do 25 de novembro de 1975, na RTP”, algo que não corresponde à verdade.

Operações militares do 25 de novembro
Operações militares do 25 de novembro de 1975. Foto de Alfredo Cunha

A Câmara de Sintra vai patrocinar um espetáculo de evocação do 25 de novembro, na continuidade de uma proposta apresentada em 2021 pelo vereador da extrema direita (entretanto trânsfuga do partido! e, sabe-se lá porquê, pouco ou nada interventivo…), aprovada pelos eleitos de PSD e CDS e a que o PS fez o favor de dar aval.

O evento irá acontecer na sala de espetáculos mais nobre do concelho, o auditório Jorge Sampaio do Centro Cultural de Olga de Cadaval. Do programa já conhecido fazem parte canções de Amália, Trovante, Manuel Freire e António Barroso e a declamação de oito poemas, entre os quais o belíssimo "Esta Gente", de Sophia de Mello Breyner Andresen, anunciado como tendo “sido declamado pela própria pelos 40 anos do 25 de novembro de 1975, na RTP”.

Não sei o que estes autores pensavam do 25 de novembro, mas a tentativa de usar as suas palavras e imagem com propósitos revisionistas é clara. Sobre o poema de Sophia, é preciso esclarecer que este nunca poderá ter sido dito pela autora nos 40 anos do golpe (ou sejam em 2015, 11 anos depois do seu falecimento), e que não foi declamado a propósito dessa data mas sim num momento de evocação do PREC. E não se pense que o poderá ter escrito a pensar em novembro, como o anúncio da autarquia pode levar a crer, uma vez que o texto integra a obra Geografia, de 1967.

É assim que se constrói um mito. Pouco a pouco, dando aval a iniciativas em que factos, personagens, canções ou poemas que habitam a nossa memória coletiva são manipulados para distorcer a história. Através de celebrações artificiais que, como Pacheco Pereira recorda por estes dias ou Eanes dizia até há bem pouco tempo, só servem para reabrir feridas.

Imagino que este texto vá ser apontado por alguns como um ataque aos técnicos responsáveis pela programação do evento. Não se deixem enganar pela artimanha. O que aqui se traz é uma crítica a quem é politicamente responsável por uma tentativa, desonesta e carregada de ignorância, de desvalorizar o 25 de abril de 1974 e a liberdade e democracia que Abril inaugurou. Porque se a adesão do PSD às narrativas alternativas da extrema direita incomoda, mas não espanta, o silêncio envergonhado do PS ou o apoio que vai dando a este Processo Revisionista Em Curso é que são, verdadeiramente, de criticar.

André Beja
Sobre o/a autor(a)

André Beja

Enfermeiro, investigador de políticas de saúde. Deputado Municipal em Sintra, eleito pelo Bloco de Esquerda.
Termos relacionados: ComunidadeSintra25 de Novembro