Uruguai

"As esquerdas fazem-se fortes na mobilização". Entrevista a Pablo Alvarez, dirigente da Frente Ampla

12 de janeiro 2025 - 17:10

A Frente Ampla voltou ao poder no Uruguai com um longo processo de unidade e de construção programática que partiu das bases da sociedade. Em entrevista ao Esquerda.net, Pablo Alvarez, dirigente da Frente Ampla, fala sobre esse processo e sobre os desafios que se avizinham.

porMaria Manuel Rola

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Pablo Alvarez
Pablo Alvarez. Fotografia de Alessandro Maradei/FA

A segunda volta das eleições presidenciais no Uruguai decorreu no dia 24 de novembro. Depois de 5 anos fora do poder, a Frente Ampla volta a ganhar a presidência com Yamandu Orsi e Carolina Cosse. Durante os dias das eleições sentia-se em Montevideo uma clara predominância desta força política e o envolvimento da população nas eleições.

Vamos falar com Pablo Alvarez, Presidente da Comissão de Assuntos e Relações Internacionais da FA para compreender melhor como funciona a política no Uruguai, de onde surge a Frente Ampla e os desafios que se colocam nos próximos 5 anos, além da diferença que fez os 15 anos de Governo desta força política entre 2004-2019, antes de perder para a direita coligada.

Olá, Pablo. Conta-nos um pouco sobre a Frente e sobre essa união e diversidade tão reconhecida…

A Frente é uma força política – mais que uma organização – que reúne diferentes organizações políticas de esquerda: vão desde as organizações que nos anos 60/70 optaram pela luta armada, ou que pertenciam ao campo da democracia cristã, coletivos e organizações na esfera da social democracia, organizações comunistas, o Partido Comunista, o Partido Socialista, organizações com passado anarquista e que provêm das organizações anarquistas do Uruguai… Há católicos de diferentes religiões. E há muitos militantes que não pertencem a nenhuma das organizações e se sentem Frente Amplistas, simplesmente. Esta diversidade vem da origem e à medida que o tempo passa intensifica-se. Ou seja, houve um empurrão inicial para a unidade das esquerdas que talvez tenhamos aprendido demasiado bem e seguimos a somar e agregar diversidade.

Quando nasceu, o Uruguai atravessava um processo de violência política como em vários países da América Latina e também da Europa, e tudo indicava que essa violência política exercida pelo Governo democrático desembocaria numa ditadura. A Frente surge, como diziam os dirigentes na altura, como a última possibilidade de paz e por isso conseguiu juntar os partidos de esquerda tradicionais – Socialista e Comunista – a que se juntam os setores democráticos dos partidos da direita – que recusaram a deriva autoritária. Nesse momento, de 7% nos 50 anos anteriores, a esquerda passou a 18% com a Frente. Isto diz-nos que houve uma alteração qualitativa das forças progressistas e democráticas no país que mostrou a correta interpretação da realidade e da necessidade de uma força política assim.

Infelizmente não se conseguiu deter a ditadura e a Frente tornou-se um dos principais alvos políticos e militares da ditadura e por isso 90% dos presos, dos torturados, dos assassinados, dos desaparecidos e dos exilados eram da Frente.

Maria Manuel Rola
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E qual foi o papel dos movimentos sociais e sindicais para essa agregação política?

Bem, nós dizemos que a unidade das esquerdas políticas foi posterior à unidade das forças sociais no campo popular, em particular do movimento sindical. Entre os anos 64 e 65 houve um processo de discussão que se chamou Congreso del Pueblo onde diferentes organizações sociais convocaram o resto dos movimentos, o cooperativo, dos trabalhadores, estudantis, mas também setores da pequena burguesia no setor artesanal, o setor produtivo, os produtores familiares para tentar ter um programa comum de saída da crise económica que o país vivia desde final da década de 50. Essa foi uma antecâmara.

Posteriormente o movimento sindical unificou-se. Hoje, existe apenas uma central de trabalhadores, e essa experiência também serviu, sem dúvida, para a unidade política. Digo-te que houve atores muito importantes nessa altura e a direção do Partido Comunista e Socialista naqueles anos teve tanto que ver com as dificuldades do processo de união como com as suas possibilidades. Não foi algo que aconteceu de um dia para o outro, esta tentativa vinha já do início dos anos 50, a Federação de Estudantes Universitários do Uruguai existe desde 1929 como a única organização nacional de estudantes universitários. Nessa altura existia uma importante tradição de unidade, sobretudo no movimento social que se foi movendo para o campo político. E isso não se vê nisto que nós chamamos de valor estratégico da unidade, não basta um dia os dirigentes porem-se de acordo, implica um processo mais complexo.

Qual a importância dessa cultura de negociação e diálogo que referes e que constroi esse valor estratégico a nível social e político?

Primeiro, há que estar convencido que é o melhor caminho, porque não é com certeza o caminho mais fácil. O mais fácil é que cada um faça o que entende, mas não é o melhor. Tem de haver clareza, assumir e ter consciência que há coisas que não são comuns, mas, se procurarmos bem, há ideias muito importantes que são comuns às forças progressistas, hoje até diria democráticas, e às forças de esquerda e é aí onde se deve colocar o esforço. Esta é talvez das construções mais interessantes e a geração mais velha sempre nos pede que cuidemos da unidade porque custa. Tem, como dizem os politólogos, altíssimos custos de transação democrática, é preciso discutir muitíssimo, exige muita dinâmica de coordenação, mas no fim é o mais importante para enfrentar os partidos de direita, as direitas culturais, as políticas ou ideológicas. Em última instância, é a única coisa que de facto nos pertence: a nossa própria força. O resto em geral não nos pertence e é preciso cuidar do pouco que temos.

É ainda importante dizer-se que há uma força política de esquerda e um movimento sindical, mas o movimento sindical não pertence à Frente, nem a Frente ao movimento sindical. Nós chamamos a isso a construção do bloco social e político da mudança que implica também diálogo desde a visão de um partido e da visão do movimento. Podemos ter muitas coisas em comum, até companheiros e companheiras, mas nem o movimento sindical vai atrás do político, nem o partido político vai atrás do movimento sindical. Isto implica igualmente muitos mecanismos de negociação, mas também permite que cada um avance com as tarefas centrais que lhe correspondem. E não há confusões aí e isso é muito importante porque há momentos, como com a derrota política de 2019, em que a Frente teve uma resposta mais lenta, mas o movimento social, e principalmente o sindical, teve uma reação mais rápida contra as decisões que o Governo começava a lançar em 2020.

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De onde surge o impulso mais recente para a construção desse caminho político conjunto?

Toda a análise neste momento é atravessada pelos impactos da pandemia que tem também muito a ver porque as esquerdas fazem-se fortes na mobilização e num momento em que ela não é possível a esquerda fica debilitada. Ainda assim, o Governo de direita lançou uma lei de urgente consideração que tem um processo legislativo curto e definitivo, não havia condições para mobilização nem para o Parlamento reunir e, como tal, para travar esta lei, que era o principal programa político de mudança do Governo. Nesse momento tomou-se uma decisão no movimento social, para derrogar os artigos prejudiciais à acumulação de direitos que se tinham conseguido durantes os Governos da Frente e aqueles que infligiam mudanças institucionais de estruturas que existiam há muito, como por exemplo a direção coletiva da educação pública com a participação dos professores. Havia um conjunto de elementos que iam contra o que o movimento social tinha reivindicado e mantido durante muitos anos. E a Frente, depois de várias discussões internas e com os movimentos, juntou-se à campanha para juntar assinaturas para um referendo contra a lei.

Todos nos sentíamos derrotados em 2019, mas esta recuperação rápida do movimento social e a decisão do movimento político de acompanhar o processo de resistência levou a que conseguissem as assinaturas, algo que se achava difícil, e no referendo perdeu-se por muito poucos votos. Aí houve uma quebra no processo político, nem o Governo estava tão forte nem a esquerda tão derrotada. E isto fala muito bem deste bloco social e político e da interação em que não há uma condução de um ou de outro e cada um tem o seu ritmo e tempo. Se há honestidade e diálogo é possível. Claro que há coisas que a Frente preferiria fazer diferente das que pretendia o movimento social, mas é preciso negociar e andar.

Houve um outro exemplo, em que o movimento sindical decidiu promover uma alteração da Constituição com respeito à Segurança Social e a reforma. A Frente não acompanhou, e assim mostro dois casos, um em que nos pusemos de acordo e ganhámos, mesmo perdendo, porque nos recompusemos politicamente. Por outro lado, quando não nos pomos de acordo a derrota é mais certa. Este vínculo honesto, franco, tenso é central para nós.

Qual foi o processo desde a Frente para ultrapassar a derrota em 2019 e se recompor e voltar ao poder agora?

Fomos derrotados, o nosso projeto político teve menos adesão que o dos nossos adversários e isto implica situarmo-nos, não apenas sobre perder o Governo, que pode ser transitório, mas como se assume essa derrota. É preciso estar disponível para escutar e avaliar o que se passou. Saímos relativamente debilitados, perdemos a presidência e sem ela iniciou-se um processo de autocrítica num Congresso que é o nosso órgão máximo de decisão composto por 95% de militantes de base e não delegados partidários. A Frente tem muitos comités de base no território onde se participa de forma voluntária e independente dos partidos da Frente e são eles que elegem quem vai ao Congresso através do seu processo de discussão.

Este Congresso com mais de 1000 participantes discutiu um documento que se fez de forma participativa sobre os 15 anos de Governo da Frente e um balanço da derrota. Não estivemos a atirar culpas pela derrota que quase sempre nasce órfã, pela qual ninguém se responsabiliza, mas que são processos que devem ser analisados sobretudo para quem, como nós, tem uma vocação de transformação social. E fez-se esse documento discutido coletivamente onde havia diferentes enfoques dos diferentes grupos políticos da Frente, mas acordou-se este documento que nos deixava um caminho livre e resolvido porque tínhamos discutido coletivamente as razões e já não importa a minha opinião individual porque esse é o documento de autocrítica de organização e é contundente.

Havia nele elementos importantes: que não tínhamos sido capazes de escutar as mudanças na sociedade, alterações que talvez tenham sido fruto das nossas políticas; outro erro, segundo os companheiros, é que a Frente como organização e como governo se tinham distanciado entre si mas, além disso, das bases militantes e se tinha debilitado a relação com o movimento social. Eu acho que fomos muito duros nessa interpretação. Quando vejo o mundo, sim, penso que fomos muito duros, mas para nós era importante. Depois convocámos eleições internas que elegeu Fernando Pereira que até esse momento tinha sido durante quase 20 anos o presidente da central de trabalhadores, ou seja, era um companheiro com larga experiência na condução de processos políticos complexos e que de alguma forma abordava o que falamos que se teria debilitado.

Como é que corrigiram esse distanciamento das bases militantes?

Levamos para a frente vários planos. O primeiro chamou-se “A Frente Escuta”, implicou correr o país a fazer reuniões com organizações sociais, culturais, produtivas, intelectuais, académicas, religiosas e fazer perguntas sobre como foram os nossos governos e porque achavam que tínhamos perdido e ouvir. Escutar, tomar apontamentos e agradecer, sem responder. Nós tínhamos já a nossa leitura e agora queríamos escutar o que dizia a população e fizemos mais de 1000 reuniões, sistematizámos essa informação com uma visão territorial e por temas. A seguir saímos com “A Frente Dialoga” onde íamos dialogar depois da nossa análise com o que nos tinha sido dito. Com isto tivemos uma nova instância de aproximação neste exercício de nos aproximarmos e voltarmos a interpretar ou interpretar melhor com a informação que foi surgindo e com isto se foi fortalecendo de novo a base militante da Frente e se abriram novos comités de base. Este movimento levantou a energia da militância porque a Frente voltava a dialogar e ia aos territórios onde havia também dificuldades políticas a resolver.

De aí fomos para o Congresso Programático. Para nós, o programa é um elemento estruturante da unidade. Sem a unidade programática, a unidade política é impossível. A unidade programática não é um documento elaborado pelos melhores académicos do país, mas os melhores académicos do país participam no processo democrático interno da Frente Ampla com o resto dos militantes para elaborar o programa que nos leva quase dois anos. Este processo inicia-se a partir do desenvolvimento que têm os grupos permanentes, o que chamamos de unidades temáticas e que temos mais de 40 a funcionar permanentemente com diferentes temas e conforme as necessidades da Frente. Estas unidades elaboram documentos que vão a uma comissão nacional do programa que tem um responsável. As organizações políticas e os comités de base também fazem chegar informação. Toda ela é discutida na Comissão de programa, que é uma comissão onde há representação de todos os setores políticos e das organizações de base. Cria-se um esboço com isso e que é posto à discussão da orgânica da Frente. Todos os Comités de Base têm de fazer pelo menos três assembleias abertas para discutir o documento. São feitas propostas de alteração que a Comissão tenta integrar, às vezes consegue, outras não. No último houve 1800 propostas de alteração levadas ao Congresso e estivemos dois dias em votações. Para nós, mesmo que tenhamos grupos políticos que analisam de forma diferente a realidade e que tenham uma base ideológica diferente, discutimos tudo no programa político. O programa de Governo sairá deste programa de ação política que nos orienta a ganhar o Governo. Mas se não ganhamos o Governo também nos orienta politicamente e é por isso um acordo fundamental para sustentar a diversidade política de que falamos ao início.

E o programa serviu de base para a aliança eleitoral?

Sim, iniciou o processo das candidaturas internas para candidato à Presidência da República. Havia mais de um pré-candidato, mas todos tinham o mesmo programa, que é o da Frente Ampla. Para nós, a unidade programática é prévia e os candidatos e candidatas trazem as suas forças pessoais, discursivas e de argumentação, a credibilidade e ainda a sua mirada, mas o programa é o da Frente Amplo. Não é um programa de um candidato e isto implica que quem empurra é a força política e não apenas a candidatura.

Fortalecemos a militância, aproximamo-nos de novo dos nossos aliados históricos, escutamos as mudanças, interpretamos, elaboramos o programa, elegemos a melhor candidatura e fomos para a rua, militar no território que é onde a Frente Ampla se faz forte. Na primeira volta tivemos maioria no senado, não tivemos a maioria dos deputados. Era muito difícil ganhar na primeira volta, mas ficámos muito próximos de uma vitória que se consolidou na segunda volta por uma diferença importante, uma diferença que triplica o valor pelo qual a Frente perdeu na segunda volta em 2019. Foi uma vitória por alto, não ganhamos a pedir permissão.

Programaticamente quais foram as principais mudanças e os principais desafios?

Bem, há uma evolução programática desde os 70 até hoje que está muito estudada e é muito semelhante à evolução das esquerdas e centro-esquerda no mundo para se tornarem competitivas eleitoralmente. Algo que por vezes se chama viragem ao centro. Não o vemos assim. Pode ser uma perspetiva, onde os elementos reivindicativos dos 60 e 70 já não estão, mas o país também mudou e há outras reivindicações, mas há processos comuns. Por exemplo, há uma visão muito forte sobre o papel do Estado na política, uma responsabilidade forte no que concerne ao papel do Estado na economia. Não somos uma esquerda que quer retirar o Estado da atividade económica, pelo contrário, defendemos a política através de empresas públicas como um elemento central. E mesmo no modelo de competição, não deixamos de apostar na qualidade das empresas públicas e dos serviços públicos, não achamos que o setor privado tem a exclusividade de fazer as coisas bem.

O segundo componente é o papel do Estado na ativação da redistribuição do crescimento. Não somos uma esquerda que entende que basta o crescimento, mas sim que deve haver políticas ativas e dinâmicas do Estado que provoquem a redistribuição. Entendemos que o crescimento garante estabilidade macroeconómica, mas também que se deve logo redistribuir numa perspetiva de equidade, pelo que não basta crescer, é preciso crescer e redistribuir. E isto distancia-nos dos modelos da direita. Durante este último Governo, o Uruguai cresceu mas não se repartiu. Outra questão que nos une é a importância da negociação coletiva, ou seja, o Estado como garante no desequilíbrio que existe entre capital e trabalho e essa negociação é de salário, mas também de condições de trabalho. E aqui também vimos que durante estes anos da direita, o Governo esteve mais com as empresas que com os trabalhadores.

Para além disso, há as políticas sociais que têm relação com essa redistribuição, mas que se baseia num modelo de funcionamento da sociedade e sobre a origem da desigualdade. E, por fim, o cuidado ambiental, o desenvolvimento sustentável e um outro elemento que tivemos de discutir muito, a segurança. A sociedade é muito clara, sente-se mais insegura e a esquerda tem de ter capacidade para resolver também este problema. Aqui chegamos a acordo que temos de ser contundentes com o delito, mas contundentes com as causas, e isto implica não prescindir de perseguir o delito, mas também não prescindir das situações que nós entendemos que originam uma boa parte do crime relacionadas com as condições de desigualdade e desigualdade extremas. E então este é um desafio importante para nós.

Mas é mais difícil e demora responder socialmente e às causas, o que pode levar à perceção que a esquerda não responde aos problemas de segurança, não?

Sim, mas a direita reprimiu e não resolveu o problema e isso foi o que em parte a cidadania disse ao Governo atual que perdeu. Disseram que iam resolver e que tinham uma varinha mágica, mas não resolveram. Então acho que temos de novo a oportunidade de apostar numa visão que compreende a complexidade do fenómeno e que atue em todo o cenário e não apenas na ponta, na repressão e encher as cadeias de pessoas porque também já mostrou que não resolve.

Em Portugal e na Europa, a questão da violência contra a imigração está muito na ordem do dia através da normalização do discurso e de iniciativas simbólicas da extrema-direita. Um discurso de ódio amplificado. No Uruguai não acontece tanto, certo?

Creio que não acontece tanto e talvez, como em Portugal, as coisas cheguem mais tarde. Demoram a chegar. Mas tivemos uma experiência em 2019 de uma expressão política que foi um partido que se chamava “Cabildo Abierto”, que apareceu poucos meses antes das eleições, e que tinha uma identificação simbólica, retórica e de liderança com as forças armadas do nosso país e que em pouco tempo conseguiu três senadores e 10% do eleitorado. Era uma visão de direita militar uruguaia, bastante nacionalista, estatista e que se parecia muito com as extremas direitas que cresciam no mundo. Este é um vaso comunicante da extrema-direita: a perspetiva contrária aos direitos, fundamentalmente contra o que eles veem como o auge dos feminismos. No entanto, este partido integrou a coligação de governo de direita e foi absorvido pelo sistema político que tem uma força enorme. E hoje, o partido quase desapareceu, tinha 10 deputados e 3 senadores, hoje tem dois deputados apenas.

Hoje temos a emergência de uma nova manifestação política, que se chama “Identidade Soberana”, que apareceu agora e conseguiu dois deputados e quase um senador. Tem um discurso mais parecido ao de Trump. Muito altissonante, contra a elite, contra a casta, um pouco anti-vacinas, terraplanista, conspiracionista. Ou seja, tivemos uma direita nacionalista que teve muito bons resultados e desapareceu e agora temos uma direita que se diz soberanista, mas que incorpora o discurso das direitas globais.

E como parar essa investida?

Como toda a direita e extrema-direita no mundo, estão a tentar passar da violência simbólica, à violência política e à violência física. Temos de parar a tempo este tipo de coisas e estamos convencidos que para parar, as esquerdas têm de ampliar a sua visão aos setores democráticos a nível nacional, mas também a nível regional e internacional. As esquerdas e as forças progressistas têm de abraçar hoje a defesa da democracia. Talvez esteja a ser difícil para nós imaginar mundos para além da democracia liberal em que estamos, este é um desafio ideológico para nós. Mas os mundos que a direita está a pensar fora da democracia são terríveis, então nós hoje temos de ser capazes de defender as forças democráticas ou ser parte dessa defesa democrática para poder imaginar esses outros mundos que nós sonhamos à esquerda. E essa é a tarefa que nos toca como geração e como tarefa de época, não deixar avançar estes setores da direita que claramente não têm nenhum problema em passar, como dizia, da violência verbal e simbólica à violência política e à violência física. Quando as nossas sociedades naturalizarem a violência física estaremos num grande problema e hoje estamos a vê-lo no mundo, lamentavelmente.

Quais os principais danos causados pelo Governo que agora sai?

Temos um desafio enorme em melhorar as políticas públicas que se viram afetadas por este Governo. Políticas de saúde e educação, mas há também outros desafios que têm que ver com visões mais económicas de longo prazo e com a nossa inserção internacional e que tem que ver com o tamanho da nossa economia. O Governo que terminou discursivamente afastou-se da região e da visão de integração regional. A integração é um elemento vital para nós, o mundo está a orientar-se em blocos de soberania regionais e a América Latina é um território de disputa geopolítica. Estados Unidos e a China estão interessados no que aqui se passa, a Europa consequentemente também, assim como Eurásia. A América Latina precisa consolidar estratégias de integração.

Para além disso, há a oportunidade de recompor a credibilidade das forças progressistas para resolver os problemas. Depois temos os setoriais que de alguma forma já te falei em cima: segurança, salário. Há também que melhorar a qualidade do debate público. Este último tem que ver com a concentração dos meios mediáticos que aqui existem.  Nesta eleição aconteceu algo muito estranho, Yamandú Orsi ganhou quase sem ir aos principais meios de comunicação televisivos. E isto põe-nos a discutir, em sentido estratégico, onde está a participar a cidadania no debate público? Em última instância, a esquerda continua a ser uma força política que quer transformações sociais, e o Governo é um dos mecanismos que privilegia para a levar para a frente, no entanto, continuamos a pensar que o mundo continua injusto e desigual e que um governo por si só não o vai resolver, assim que também temos esse desafio de fortalecer a força política para além de termos um melhor governo.

Por fim, que transformações conseguiram desde 2004, com os governos da Frente Ampla?

Em 2004 ganhámos depois de uma profunda crise que afetou a região, o que trouxe aumento da pobreza, quase 50%. Foi a primeira vez que ganhámos e havia muitos desafios. Tínhamos de sair de uma crise, embora já houvesse alguma recomposição económica, mas ainda se mantinham os impactos sociais. E, com esta estreia, havia uma falta de quadros políticos para a gestão do Governo, o que implicou que a muitos movimentos sindicais e às bases sociais se fosse buscar os dirigentes para esses lugares.

No primeiro Governo as políticas foram de redistribuição, emprego, salário e melhoria dos serviços públicos, saúde e educação e fez-se uma reforma tributária muito importante para um sistema de impostos mais progressivo, quem ganha mais, paga mais que até esse momento não existia. Isto melhorou a equidade na tributação, mas também a economia do estado e na eficiência da cobrança de impostos. O Estado passou a ter mais dinheiro para as políticas públicas, há que gerá-lo. E a partir de aí criou-se o Sistema Nacional Integrado de Saúde que também foi uma grande mudança e passou de atender 600.000 pessoas à quase totalidade da sociedade uruguaia, no mutualista e público.

Foram grandes mudanças que se foram acumulando. Melhoramos a política de habitação, mas não resolvemos tudo que queríamos. E que fez a direita para ganhar? Muito pouco, um discurso contra a esquerda como um discurso geral contra a Frente Ampla onde cabia tudo: corrupção, ineficácia e segurança. Quando assumimos o Governo havia uma sondagem que identificava que a pobreza era responsabilidade da falta de políticas públicas do Estado, no entanto, quando a pobreza já tinha diminuído de 40% a menos de 10% a maioria da população entendia que a pobreza era um problema de esforço pessoal. Nós melhoramos as condições materiais, talvez as condições subjetivas ou culturais, e isso expressa-se nas mudanças que falávamos. Não fazemos as coisas para que as pessoas nos agradeçam, mas também não podemos descansar sobre a interpretação dos feitos porque se não alguém vai gerar e dar essa interpretação. Uma parte do nosso eleitorado dizia dos pobres que não trabalhavam porque lhes dávamos transferências sociais. A avaliação de como uma política pública cumpre a sua função de melhorar as condições de igualdade, de diminuir a desigualdade, de melhorar as condições de pessoas em situação de pobreza, mas de repente a avaliação da cidadania não é a mesma que a nossa e isso forma parte da ação política. E são elementos dos últimos 20 anos e desafio dos próximos cinco.

Maria Manuel Rola
Sobre o/a autor(a)

Maria Manuel Rola

Designer gráfica e ativista contra a precariedade. Dirigente nacional do Bloco de Esquerda