Tudo é incerto, ou falso, ou violento: Brilha
Tudo é terror, vaidade, orgulho, teimosia: Brilha
Tudo é pensamento, realidade, sensação, saber: Brilha
Desde sempre, ou desde nunca, para sempre ou não:
Brilha
Uma pequenina luz, Jorge de Sena
Pouco se sabe e fala do Uruguai por estes dias. Mas entre a maré de propaganda de uns e as ameaças mais ou menos veladas de outros, é preciso falar do Uruguai, procurar informação e divulgar o alento do que ali se passa. Ao contrário do que acontece na maior parte dos países ditos democráticos, no Uruguai os ventos são de mudança e de esperança para o mundo.
A Frente Ampla (Frente Amplio), partido com 53 anos de existência, formado por forças políticas várias que vão do centro-esquerda à esquerda radical, acaba de ganhar a segunda volta das presidenciais do passado dia 24 de novembro. No dia seguinte, em Portugal, a discussão era sobre o 25 de novembro e a comemoração que os derrotados do 25 de abril forçaram na Assembleia da República contra a sensibilidade e vontade do povo português que cada ano enche as ruas a celebrar o 25 de abril, esse movimento político e popular, lançado por militares, que derrotou o fascismo português em 1974, um ano depois de instalada a ditadura no Uruguai que duraria até 1985.
A Frente Ampla do Uruguai, fundada antes da ditadura e obrigada à clandestinidade quando esta se instaura, soube articular bem a vontade popular ao longo de toda a sua existência, o que lhe garantiu 15 anos no Governo do país, entre 2004 e 2019, anos ao longo dos quais o Uruguai se tornou um país pioneiro em direitos democráticos e sociais e o menos desigual da América Latina. Entre 2010-2015 quem comandou esse programa foi o seu dirigente mais conhecido internacionalmente: Pepe Mujica, originário do movimento dos Tupamaro, grupo guerrilheiro de esquerda marxista, nascido em 1962 e altamente organizado no combate à ditadura uruguaia.
Foi durante esses 15 anos que se tornou o primeiro país da América Latina a legalizar o aborto; que nasceu o Serviço Nacional Integrado de Cuidados - SNIC -, pioneiro num modelo de políticas de cuidados da infância à velhice , - e no qual o Bloco se inspirou para a sua proposta; que nasceram programas habitacionais como o Plano de Integração Sócio-Habitacional “Juntos”, em que por meio das organizações de bairros e dos próprios moradores se garantia reabilitação e realojamento habitacional e ainda oficinas de formação a moradores para a autoconstrução; ou ainda a regulamentação da venda da cannabis, com disponibilização em farmácia, através de clubes sociais ou através da plantação de até 8 plantas ao ano para consumo próprio. Apesar de ir bem além do que vigora em Portugal, disse-me um deputado recém eleito pela FA que se terão inspirado no modelo despenalizador português, que continua a ser inspiração em todo o mundo, para avançar com esta política. O SNIC e os programas de habitação foram postos em coma durante a presidência da Direita, que vigora até ao próximo dia 1 de março.
Não obstante, em 2019, uma primeira derrota chegou para a esquerda. Nesse último ano antes da pandemia, a Frente Ampla perdeu as eleições para uma coligação de direita liderada pelo Partido Nacional. Um dos dirigentes da Frente dizia no dia antes das eleições que “às vezes se ganha, outras vezes se aprende” e foi dessa aprendizagem, além da sua organização, que o partido conseguiu voltar a ganhar as eleições do passado dia 24. Volta agora ao poder, com uma mobilização muito forte dos seus militantes e do povo da república oriental, mobilização que se sentiu na noite de tempestade de 24 nas ruas da cidade de Montevideo após conhecidos os resultados eleitorais. No centro da cidade toda a gente se molhava, mas também gritava e cantava. Fosse em Portugal e estaríamos, tirando a tempestade, decerto perante a vitória num campeonato de futebol. Ali, não só o carnaval e o futebol mobilizam a gente, mas também, e de igual modo, a política.
Para aqui chegar, em 2019, sem lutas intestinas que a esquerda bem conhece, a Frente Ampla lançou - após reflexão na direção nacional que inclui em iguais proporções dirigentes dos diferentes partidos/forças mas também dirigentes dos quase 500 comités de base espalhados pelo país - um processo de mobilização interna de redação programática com mais de 30 temas, juntou especialistas mas juntou também os seus comités de base - para além dos dirigentes - a essa discussão. Desse processo resultou um programa que, aprovado em congresso, teve mais de 2000 propostas de alteração em que mais de 1000 foram aprovadas. Ao mesmo tempo, a Frente lançava uma campanha para aumentar o número de comités de base, de forma a que chegasse perto dos 500. Também conseguiu. Em 2021 elegeu uma nova presidência do partido, liderado pelo ex-presidente da confederação sindical PIT-CNT e com a jovem bióloga Verónica Piñeiro como vice-presidente.
A militância, organização e mobilização política uruguaia é de facto exemplar e merece ser conhecida e valorizada, merece ter visibilidade, merece ser acompanhada. Com certeza não farão tudo bem e o discurso de conciliação pode parecer estranho em momentos de velocidade de resposta, de vinganças e exclusões políticas e de tonitruantismos másculos vibrantes. No entanto, essa mesma falta de masculinidade tóxica no discurso, o otimismo da vontade que nos soa até a ingenuidade, acalenta aquela esperança, projeto, horizonte, utopia que os tempos de pessimismo que vivemos nos tiram da cabeça e do peito. Já por isso valeria a pena, mas a isso acrescem as mudanças estruturais que pouco a pouco vão conseguindo. E a verdade é que tudo se retroalimenta: “com tu puedo y mi quiero, vamos juntos compañero”, dizia Benedetti.
Uma grande expectativa está assim criada com esta vitória das esquerdas, no sentido de se cumprir, retomar e avançar com medidas progressistas interrompidas energicamente pela direita. Também isso ficou visível na grande afluência de comitivas internacionais, com a atenção focada neste país. É pois uma brisa de esperança para a América Latina e Caribe, mas também para a Europa e para o mundo, em contracorrente com os atentados, as mentiras, o culto de personagens politicas bufónicas e a ascensão de forças reacionárias e neofascistas noutros países.
No Uruguai passará a existir, nos próximos cinco anos, um Governo progressista que construiu um programa com base no conhecimento setorial, na ciência pública e em especialistas, mas também com a capilaridade e sensibilidade social que a sua organização de base lhe permite. Tem toda essa massa militante do seu lado na construção crítica de uma resposta à esquerda. Se continuarem no processo que os trouxe até aqui, e sem grandes ingerências geopolíticas da internacional reacionária, é bem provável que o Uruguai continue a dar-nos políticas de exemplo para um mundo que precisa de estabilidade progressista e de contra-exemplos de esquerda.
Foi na redistribuição de rendimentos do crescimento económico, na promoção da segurança e nos cuidados que se centraram as prioridades veiculadas durante a campanha. O país, embora dos mais seguros da região, tem vindo a ver crescer o narcotráfico e crimes associados. Temos visto por todo o mundo como a resposta nesta matéria tem vindo a ser de histeria e alarido repressivo promovido pela direita. A Frente está, por isso, perante um desafio gigantesco para resolver este problema sem populismo barato, o que implica soluções sociais, alterar o sistema carcerário e investir na reabilitação de forma a reverter o fosso que foi crescendo no país a nível social e territorial. Muitos frenteamplistas referem que um dos maiores desafios é ainda o sistema educativo público.
“Entre o bafo quente da multidão” brilha esta luz precisamente por causa dessa multidão e desse organismo coletivo e militante que no Uruguai contraria o sufoco dos tempos sombrios que vivemos no mundo. Pode brilhar para sempre, ou não, celebremos portanto as pequenas luzes bruxuleantes que nos apontam alternativas.