Decretada a falência da então Universal Motors (antiga fábrica de Motores Elétricos Rabor em Ovar) no ano de 2005, como “oficialmente” falida, os últimos cerca de 100 trabalhadores que ainda vinham resistindo através das várias formas de luta, que incluíram o recurso aos tribunais e já na fase final também à ocupação das instalações para defender bens materiais e equipamentos que assegurassem alguns dos seus direitos pecuniários, numa fase em que já não haviam garantias de resultados favoráveis do gestor da “massa falida”. Os trabalhadores que ficaram nesta empresa, que no seu percurso industrial chegou a ter cerca de 740 trabalhadores, foram as principais vitimas deste desfecho laboral, empurradas para o fundo de desemprego, recorrendo até a formas de luta recheadas de simbolismo, como a que resultou da sua justificada revolta e indignação, manifestada através de um cenário que na rua não se podia ficar indiferente, tal a afronta publica simbolizada por bandeiras negras que “decoraram” a fachada da empresa na EN 109 em São João, Ovar.
Este foi o culminar de um longo período de resistência, em que foram alvo das sucessivas medidas do patronato que puseram em causa os seus postos de trabalho, a exemplo da aplicação do lay-off e consequente “suspensão” total dos contratos de trabalho, com salários em atraso que se prolongaram após o fecho da empresa, deparando-se ainda com o difícil dilema de serem novos para a reforma e velhos para o mercado de trabalho. Um período laboral difícil que marcou as diferentes gerações de trabalhadores e operários que nesta empresa cresceram, conviveram e lutaram até ao decadente desfecho final, cujos potentes motores ali pararam ao fim de quase meio século de produção, não resistindo mesmo à sua evolução tecnológica (robotização), que já em 1985 dava origem a preocupações de vir a “ser feita à custa de despedimentos”, facilitados pela legislação do Pacote Laboral alvo de protestos e luta nacional contra as políticas do governo PS/PSD liderado por Mário Soares, que dava então lugar ao X Governo Constitucional chefiado por Cavaco Silva, e do FMI que impunha sacrifícios sobre o mundo do trabalho através de ataques a direitos laborais.
Os trabalhadores da Rabor foram sujeitos a todas as consequências económicas e sociais do lay-off, num tempo em que aumentavam os números do desemprego no país, como consequências de continuadas políticas neoliberais em sucessivos ciclos governativos, que prosseguiram nos anos 2000 com os executivos do PSD/Durão Barroso e Pedro Santana Lopes, e do PS/José Sócrates, em que se agudizavam as dificuldades das famílias. Neste caso em concreto agravaram-se com a desilusão a que foram sujeitos perante as migalhas que resultaram do leilão da “massa falida”, que incluiu credores entre os quais se destacava o próprio grupo Efacec, que se veio a revelar o principal e interessado credor, sendo aliás proprietário das instalações fabris alugadas entretanto à Universal Motors e da significativa área de terreno. Património que já na altura se denunciava estar destinado para um projeto imobiliário e comercial, numa área de acentuada concentração de grandes superfícies comerciais, cuja viabilização está agora perspetivada para criar uma “nova centralidade comercial” a ser erguida dos escombros da antiga Rabor. O que é caso para afirmar, que, meio século depois do 25 de Abril, os escombros da antiga fábrica de Motores Rabor não apagam memórias de lutas operárias, em que se destacaram igualmente muitas lutas sindicais, políticas e ideológicas pela natural disputa da influência dos trabalhadores e operários em pleno “chão da fábrica”, na época corporizada pela militância sindical e política das áreas do PCP e MDP/CDE ou da UDP, partidos com tradições em Ovar como concelho de grande concentração industrial e operária, que no caso do MDP/CDE terminou como partido, enquanto a UDP viria entretanto a dar origem à fundação do Bloco de Esquerda em 1999 conjuntamente com o PSR e a Politica XXI.
A Rabor/ITT foi indiscutivelmente uma das concentrações operárias em Ovar, em que a luta política e ideológica ganhou particulares contornos de disputa prática e teórica, entre a militância e organismos partidários (células ou núcleos), através de entusiásticas e imaginativas iniciativas e campanhas de agitação e propaganda, resultando em diferentes projetos políticos e ideológicos, sobre caminhos para o socialismo e da luta de classes a influenciar os trabalhadores, a quem eram proporcionados jornais partidários, através da venda militante, como: Avante, Grito do Povo, Voz do Povo, Bandeira Vermelha, e mesmo a Ação Socialista, títulos a que se juntaria ainda o jornal Em Marcha e a verdadeira promoção à leitura e ao pensamento critico fomentado por múltiplos comunicados políticos e sindicais, e os tradicionais boletins informativos.
Tais momentos de salutar confronto de ideias entre correntes reformistas e revolucionárias à esquerda do PS, inevitavelmente tornaram a Rabor um território marcado pelo sectarismo, com particularidades no confronto ideológico de carácter marxista-leninista, que em alguns momentos mais críticos, no calor da luta política e sindical, a liberdade e a democracia conquistada no 25 de Abril episodicamente não era suficiente para garantir direitos fundamentais, mesmo ao nível de direitos como a liberdade de expressão, particularmente aos militantes e ativistas das minorias partidárias, acusados de esquerdismo ou de agentes da CIA. Não faltando as tentativas de “silenciamento” de quem se destacava em lutas sem tréguas entre o capital e o trabalho, nem se submetendo às medidas de exploração do patronato e da maioria reformista acusada de deixar os trabalhadores no imobilismo e na expetativa ilusória, acentuada durante a gestão da empresa pelo Estado.
De certa forma à margem desta luta entre as correntes à sua esquerda, o PS, partido com sigla socialista mas assumidamente social-democrata, tinha e tem como referência para os trabalhadores socialistas, sociais-democratas e democratas cristãos, a central sindical UGT (União Geral dos Trabalhadores), criada em rutura com a Unicidade Sindical, que sempre assumiu o seu papel (designado por “amarelos”) determinante na concertação social, que ainda hoje assume tal papel de colaboração na viabilização das propostas dos vários governos PS ou PSD, colocando-se claramente à direita da CGTP-IN (Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional) que habitualmente não assina, e em que os sindicalistas das várias esquerdas no espirito da unidade sindical, se organizavam e organizam, mesmo com o inquietante alerta, recentemente exposto em carta por vários sindicalistas e ex-sindicalistas, sobre os riscos do fechamento e sectarismo da CGTP, em contraciclo à exigida renovação prometida no 15.º Congresso (fevereiro de 2024), num tempo em que as novas realidades laborais dos trabalhadores vão dando origem à criação de sindicatos alternativos e independentes, e de maior proximidade aos anseios dos trabalhadores, constituídos nas bases, como resposta ao reformismo e centralismo burocrático sindical.
Foram disputas políticas e ideológicas, que se intensificaram desde logo no período de gestão com intervenção estatal, e se vieram a consolidar no regresso da empresa às mãos e gestão do patronato proprietário, através dos vários grupos económicos e industriais que foram substituindo na disputa do mercado dos motores elétricos, mas que acabaram por descaracterizar a Rabor económica e socialmente. Processos que passaram pelo fim de persistente luta política e sindical, nas eleições sindicais e da comissão de trabalhadores, a tendência reformista que era maioritária, ser destronada em 1990 pela Corrente Sindical de Classe (CSC) na comissão de trabalhadores do ainda grupo Efacec entretanto subdividido, o que não impediu uma surpreendente viragem na correlação de forças entre corrente reformista e corrente de classe, que alargou a sua influência até ao então SIEC (Sindicato das Industrias Elétricas do Centro). Uma mudança na correlação de forças das lideranças sindicais operárias no setor elétrico, que acabaria alvo de redobrado ataque patronal, para decapitar e fragilizar a organização dos trabalhadores e assim ensaiar a estratégia de liquidação desta unidade industrial, arrastando os trabalhadores pelos tribunais durante alguns anos para que fosse feita justiça, que não chegou a ser alcançada.
Multinacional ITT não se adaptou à emancipação operária de Abril
Inaugurada em 1961, a Fábrica de Equipamento Industrial, Rabor, de origem familiar (Irmãos Borges), veio a afirmar-se pela produção dos reconhecidos popularmente Motores Elétricos Rabor, com capacidade e potencia para várias atividades, industriais e agrícolas ou de uso doméstico. Ainda antes do 25 de Abril de 1974 foi adquirida pela multinacional americana ITT, e foi sob gestão deste grupo que viveu o Processo Revolucionário em Curso (PREC). Mas logo em setembro de 1974 a gestão da Rabor /ITT dava sinais de não se adaptar à nova realidade do país, agora livre, democrático, com o movimento operário a assumir conquistas e a consolidar direitos fundamentais: políticos, laborais e sindicais. O grupo americano ITT não se adaptou à emancipação operária proporcionada pelo 25 de Abril.
Com a intensificação da luta social, politica e sindical, em que se forjou igualmente a Constituição da República Portuguesa, consagrando direitos e conquistas de Abril, aprovada em 1976. Ainda durante o PREC, as relações laborais agudizam-se na Rabor /ITT, e os operários ocuparam a empresa entre os dias 7 e 12 de fevereiro de 1975, acusando a administração de sabotagem económica e reclamando do III Governo Provisório, com Coronel Vasco Gonçalves como primeiro-ministro, a intervenção do Estado, que resultou na adoção de um regime provisório de gestão estatal. Tipo de gestão com garantias do Estado, que deu origem a um certo “apaziguamento” da luta operária no caso da Rabor, vindo o Estado a terminar a sua intervenção na empresa, em julho de 1980, num quadro politico oposto, já com a Aliança Democrática (PSD, CDS e PPM) no poder, no VI Governo Constitucional chefiado por Sá Carneiro.
A interrupção do PREC pela luta de poder travada no 25 de Novembro de 1975 e o caminho de desmantelamento de experiências de intervenção do Estado que se seguiu, traçou uma nova fase ao mesmo tempo que a burguesia tentava consolidar a sua influência nos destinos do país, com um período de sucessivos governos da social-democracia e da direita a não terminarem o seu mandato Constitucional, assim como o mandato da Assembleia da República, sendo mesmo indigitada pelo Presidente da República, Ramalho Eanes, como primeiro-ministro, Lurdes Pintassilgo, que tomou posse para o V Governo Constitucional a 19 de Julho de 1979. A primeira mulher a ocupar o cargo, num período que viria inevitavelmente a influenciar o futuro desta empresa em Ovar, como em tantas outras no país, com o fim da presença do Estado na gestão da Rabor.
Neste quadro politico e na nova fase vivida pelos trabalhadores da Rabor, sempre na defesa do emprego com direitos, já sem as garantias do Estado na gestão, a ITT acabou por vender esta sua empresa em fevereiro de 1981, à Efacec – Empresa Fabril de Máquinas Eléctricas, S.A.R.L, ligada à multinacional ACEC, de capital predominante belga. Um retrocesso político para a luta travada pelos trabalhadores e para a militância de esquerda que influenciava a gestão e os órgãos representativos dos trabalhadores, quer sindicais, quer da Comissão de Trabalhadores (CT), em que se resfriava a luta de classes ao mesmo tempo que se abria portas à aplicação de um contrato de viabilização com todas as consequências para os trabalhadores, nomeadamente os objetivos do patronato para redução de postos de trabalho.
As estratégias a que o patronato ia recorrendo para atingir seus objetivos de redução de postos de trabalho passavam pelo contrato de viabilização da empresa, que tinha na época o acordo da maioria da CT, denunciava a corrente de classe, que acusava tal acordo de vir a “pôr em causa regalias conquistadas e postos de trabalho”. Mais tarde, seriam as medidas de “rescisão voluntária de contrato”, que esta corrente alertava também como sendo “igual a desemprego”. Recursos do patronato que se antecipavam à sua legitimação pela aprovação do Pacote Laboral e a Lei e Segurança Interna do governo, que assim correspondia aos interesses do capital em nome de uma maior recuperação dos índices competitivos de produtividade, à custa naturalmente do desemprego e da repressão sobre os trabalhadores, vindo-se a concretizar tais planos de retrocesso no inicio dos anos 90. Planos que vieram a incluir uma lista dos “disponíveis”, constando entre os primeiros 27 trabalhadores, indicados nesta lista tornada pública no Natal de 1992 (distribuídos por Ovar e Maia), a generalidade dos membros dos ORT’s (Órgãos Representativos dos Trabalhadores) que acabaram vítimas desta ilegalidade do patronato, quando a lei ainda salvaguardava tais trabalhadores, prevendo-lhes medidas alternativas ao despedimento.
Enquanto este caminho dos novos donos da empresa se afirmava, a produção industrial mantinha-se ilusoriamente ao serviço do “socialismo”, que só estava mesmo inscrito na letra da Constituição. A antiga empresa dos motores elétricos de Ovar, Rabor, era disputada por grupos económicos, como veio a acontecer pela Universal Motors, que a utilizavam para controlar os mercados dos motores, inundados pela produção asiática a custos baixos, mesmo em sacrifício da marca e da capacidade dos motores Rabor.
Terminado o regime provisório de gestão estatal, que já não fazia parte das políticas dos sucessivos governos que buscavam vias liberais para a economia e as leis laborais, a Rabor, com um ativo de 540 trabalhadores em 1984 na sua sede em Ovar e na delegação comercial em Lisboa. formava uma significativa concentração de mão-de-obra operária, que rapidamente se tornou “excedente”, com o capital a apostar na robotização, sendo inaugurada em maio de 1985 uma das mais modernas fábricas de motores da Europa, de motores elétricos Rabor, podendo produzir um total de 300.000 motores em laboração continua, quase o quíntuplo do que fabricaria utilizando processos tradicionais.
Tratava-se de uma capacidade de produção que viria anos depois a ser igualmente secundarizada pela oportunidade de aumentar lucros com motores produzidos por mão-de-obra ainda mais barata a exemplo do continente asiático, destacando-se a China, que estava na altura a atrair a deslocalização da produção industrial do sistema capitalista ocidental, na perspetiva de mais lucros e consequente mais desemprego, bem como mais desregulação dos direitos laborais.
Como em tantos outros exemplos pelo país de Abril, os trabalhadores e operários da antiga Rabor vivenciaram uma dura caminhada de resistência às políticas de liberalização da economia, particularmente estimulada pela governação PSD/Cavaco Silva, durante uma década (1985 a 1995, que no essencial persiste até aos dias de hoje, atravessando diferentes governos e suas políticas, assumidamente ou não, liberais, agravadas com as guerras e suas consequências na degradação da qualidade de vida dos povos e consequentemente na destruição do Planeta, em beneficio dos saqueadores de matérias primas e dos impérios do negócio das armas, que transformam regiões do mundo em campos de carnificina humana, vilas e cidades literalmente arrasadas, como acontece na invasão da Ucrânia pela Rússia e o genocídio do povo Palestiniano por Israel em cidades como Rafah e na Faixa de Gaza. Tragédias humanitárias e crimes contra a humanidade, sem paz à vista.
Perante um tal cenário dantesco a que se sujeita o Planeta, com todas as suas consequências económicas, ambientais e sociais, sem contemplações nem solidariedade, ainda se transforma em oportunidade para o ultraliberalismo e a extrema-direita reclamar entrar por portas e janelas escancaradas pela social-democracia, garantindo assim caminho facilitador ao capital sedento de políticas negacionistas e sem entraves de direitos democráticos, como predador de recursos naturais que é, independentemente da trágica precipitação ambiental sobre o Planeta e a humanidade a quem se vai proporcionando as tais novas centralidades comerciais com mais oferta tipo McDonalds e os seus McDelivery para consumir à descrição Big Mac.