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Eric Toussaint: "Os fundos abutre são uma vanguarda"

Para o politólogo e fundador do Comité para a Anulação da Dívida do Terceiro Mundo, os fundos abutre são uma versão extremista do capital financeiro e um perigo para a estabilidade da América Latina.
Eric Toussaint desvaloriza os efeitos práticos da resolução aprovada na AG da ONU e diz que só os atos unilaterais dos países devedores com base no direito internacional poderão vencer os credores. Foto Senado Federal do Brasil/Flickr

Explique-me a sua ideia de que os fundos abutre são a versão extremista do capitalismo financeiro.

Os fundos abutre são a vanguarda, e por detrás deles está o batalhão que se chama Goldman Sachs, JP Morgan, Citibank, Santander, etc. Mas também acho que por trás disto tudo existe uma intenção sub-reptícia por parte dos Estados Unidos de intervir na região. A dívida externa é um instrumento poderoso para subordinar a América Latina, para obrigar a região a retomar o caminho das políticas neoliberais. É o que estão a fazer na Europa, que é o laboratório das políticas neoliberais na atualidade.

Então considera que a sentença do juiz Griesa é uma ofensiva não apenas contra a Argentina, mas também contra toda a região?

Considero que o juiz Griesa quer fazer recuar a América Latina ao século XIX ou ao século XX quando os Estados Unidos ditavam as suas condições aos devedores sem respeitar a soberania dos países devedores, e favorecendo cinicamente os credores. Claro que os fundos abutre compram títulos para depois levarem os países a tribunal. Por isso, creio que é um retrocesso e que vai contra toda a região. O Fundo NML já tinha posto o Perú em tribunal há quase 20 anos, e conseguiram com a cumplicidade de Fujimori uma importante recompensa. Esse comportamento dos fundos abutre não é novo, já é conhecido. A novidade aqui é a arrogância do juiz Griesa e a reação da Argentina. No caso do Perú, Fujimori aceitou pagar a compensação e em troca o fundo ajudou Fujimori a fugir do país num avião que lhe pertencia.

Você trabalhou na comissão presidencial de auditoria da dívida do Equador, criada por Rafael Correa em 2007. Qual é o contributo desse trabalho para a região?

Creio que uma auditoria é fundamental para a Argentina, já que a dívida contraída desde 1976 é ilegítima e isso deve ser provado. São décadas a contrair dívida ilegítima: a dívida que contraiu a junta militar, a dívida que contraiu Carlos Menem com o seu programa de privatização, o 'Megacanje' de Cavallo, etc.

O presidente Rafael Correa é uma fonte de inspiração, porque a partir do Governo emitiu um decreto para constituir uma comissão de auditoria. Designou membros com ampla competência, provenientes da sociedade civil, de movimentos sociais, etc. A decisão de constituir uma comissão de auditoria a partir do governo para auditar 30 anos de dívida, desde 1976 até 2006, é uma iniciativa muito interessante. Não houve até agora outra iniciativa desse tipo, salvo uma de Getúlio Vargas, presidente do Brasil em 1933, mas aí não participavam os movimentos sociais. De qualquer forma, para a época isso foi um grande feito, já que com base nessa auditoria se conseguiu impor um corte de 70% da dívida. Voltando ao Equador, a comissão trabalhou 14 meses para identificar a parte ilegal e/ou ilegítima da dívida. A missão era uma auditoria integral: não apenas do ponto de vista contabilístico ou jurídico, mas também tendo em conta, por exemplo, o impacto social, humano, ambiental do projeto financiado pela dívida. Refiro-me a grandes infraestruturas, por exemplo investigámos os efeitos das grandes barragens hidroelétricas. Analisámos então o impacto dessas grandes infraestruturas na população. Creio que uma auditoria é fundamental para a Argentina, já que a dívida contraída desde 1976 é ilegítima e isso deve ser provado. São décadas a contrair dívida ilegítima: a dívida que contraiu a junta militar, a dívida que contraiu Carlos Menem com o seu programa de privatização, o 'Megacanje' de Cavallo, etc. Por isso considero que é imperativo entrar num processo de auditoria.

Que efeitos terá a resolução para o estabelecimento de um quadro jurídico multilateral para regular a restruturação da dívida pública, votada na ONU?

Há algo fundamental e positivo nesta votação, que é ter-se transferido o debate sobre o tema para a Assembleia Geral das Nações Unidas. O facto de que a Assembleia Geral das Nações Unidas seja o lugar onde isto se discute é muito importante, e dá conta de uma preocupação global. Mas insisto, eu considero que a solução se encontra nas decisões soberanas unilaterais dos países envolvidos. Quanto aos efeitos concretos, francamente não há nenhum. Podem existir efeitos políticos na cena política internacional, bom, isso é muito interessante. Creio que é fundamental no mundo atual onde não se respeita realmente o direito internacional e se impõem os atores mais poderosos. Por exemplo, Israel não respeita o direito internacional com as suas ações contra o povo palestino. Os Estados Unidos, em geral, não respeitam a carta magna da ONU, não respeitam a competência do Tribunal de Haia. Então, neste mundo, o mundo real e não o que queremos, prevalece a vontade dos mais poderosos, apesar da maioria se orientar noutra direção. Aí insisto na minha posição: apenas os atos soberanos unilaterais fundados no direito internacional podem trazer uma solução real ao problema da dívida. Com isto quero dizer que, como não há instâncias jurídicas internacionais para intervir efetivamente, só os países endividados podem fazer prevalecer as suas leis sobre as leis que os credores controlam.

Que leitura faz das abstenções, quando se votou na ONU para legislar o pagamento da dívida externa? Em especial, de países europeus e muitos que estão em situações limite, como a Grécia ou a Espanha.

Quando foi votado o Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais em 1966, ou o Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, os Estados Unidos e vários países europeus votaram contra. Por isso não é uma atitude surpreendente ou nova. Os avanços nas Nações Unidas, desde há 30 ou 40 anos, fazem-se contra a vontade dos Estados Unidos e de países europeus, ou, dito de outra forma, apesar da abstenção dos países europeus. Assim, isto é apenas a repetição de uma longa série de votos nos quais os países do sul, que são a maioria, conseguem avanços que depois não são implementados. Porque na realidade as grandes potências se abstiveram ou votaram contra e fazem o que for preciso para impedir a implementação destas votações. Quer dizer, impedem a implementação de tratados internacionais. A Europa é o epicentro da ofensiva neoliberal nos últimos anos. Uma ofensiva do capital contra o trabalho, dos credores contra os devedores. A Grécia, por exemplo, converteu-se em algo parecido aos países latinoamericanos dos anos oitenta, está totalmente determinada e submetida aos ditames do FMI.

Quais são as estratégias que a região deveria implementar para evitar novos choques financeiros?

O Banco do Sul é fundamental como ferramenta para reafirmar a soberania nacional. Néstor Kirchner assinou o ato fundador do Banco do Sul em 2007, quase no último dia do seu mandato. Mas ainda não houve avanços. Já passaram sete anos e o Banco do Sul ainda não entrou em atividade. Creio que o Banco do Sul teria uma base suficiente para conceder crédito aos países membros, e neste sentido iria reduzir muitíssimo a dependência em relação aos mercados financeiros e a organismos como o Banco Mundial, o FMI, o Banco Interamericano, etc. A Bolívia, Venezuela e Equador tomaram a decisão de abandonar o Ciadi, o tribunal do Banco Mundial para os litígios sobre investimentos. Os três países escreveram ao tribunal uma carta confirmando essa renúncia a um tribunal que em geral se inclina para os interesses das multinacionais e não a favor dos países. O Brasil nunca entrou nesse tribunal, quer dizer que há quatro países da América do Sul que não fazem parte do tribunal do Banco Mundial: Bolívia, Equador, Venezuela e Brasil. Quanto a estratégias, o que interessa destacar a partir da análise da sentença Griesa é que a Argentina, desde a ditadura militar de 1976, renunciou exercer a sua soberania em contradição com a Constituição argentina e com a doutrina Calvo e a doutrina Drago, que eram juristas argentinos do fim do século XIX e início do século XX. É um problema fundamental se um país devedor renuncia a exercer a sua soberania. Por isso, considero que as doutrinas Drago e Calvo, que indicam que em caso de litígio com estrangeiros a Justiça local deve prevalecer, devem voltar a implementar-se. Finalmente, o decreto assinado pelo presidente Rafael Correa em 2007 é um exemplo a seguir. Por fim, considero que os atos soberanos unilaterais baseados no direito internacional são os que levam os países a conseguir o respeito dos interesses do seu povo.


Entrevista de Julia Goldenberg, publicada no diário argentino Página 12. Tradução de Luís Branco para o esquerda.net.

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