Susana de Sousa Dias: “O mito da ditadura branda continua operante”

19 de maio 2018 - 13:34

Entrevista a Susana de Sousa Dias sobre o documentário “Luz Obscura”, no qual a realizadora retoma o tema da repressão da PIDE, revelando a rede familiar que se esconde por detrás de Octávio Pato, resistente antifascista e preso político. Por Mariana Carneiro.

porMariana Carneiro

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Susana de Sousa Dias fala ao Esquerda.net sobre o seu filme “Luz Obscura”, que estreou no Indie Lisboa em 2017, foi exibido internacionalmente e agora está em estreia comercial nas salas portuguesas.

Partindo de fotografias da polícia política portuguesa (1926-1974), "Luz Obscura" procura revelar como um sistema autoritário opera na intimidade familiar, fazendo emergir, simultaneamente, zonas de recalcamento atuantes no presente.

A exibição do filme nos dias 20 e 22 de maio, no Cinema Ideal, em Lisboa, inclui uma sessão comentada. A 20 de maio a sessão terá como tema “Clandestinidade e Prisão” e contará com intervenções de Susana Sousa Dias, Domingos Abrantes e Conceição Matos. Já a sessão de dia 22 será comentada pela realizadora, por Margarida Medeiros e Tiago Baptista e será subordinada ao tema “Imagem e poder do arquivo”. Ambas as iniciativas estão agendadas para as 19h15.

Susana, antes de mais, queremos agradecer-lhe por conceder esta entrevista ao Esquerda.net.
No filme “48”, optou por contar uma história da ditadura através de um conjunto de fotografias de cadastro e do testemunho das pessoas que foram fotografadas. Já em “Luz Obscura” os testemunhos são dos filhos, e também sobrinhos, dos resistentes antifascistas, ainda que, no caso de Álvaro Pato, ele acabe também por testemunhar na primeira pessoa a experiência da prisão e da tortura. O que a levou a fazer esta escolha?

Esta ideia já me surgiu há vários anos. Tenho de voltar um bocadinho atrás para explicar. Foi quando estava a fazer um outro filme, no princípio dos anos 2000, e entrei, pela primeira vez, no arquivo da PIDE. Tanto o “48” como a “Luz Obscura” nascem desse momento, quando consultei uma série de dossiês, de processos-crime, de documentação no arquivo, mas também vi os grandes álbuns de identificação dos presos políticos. Foi a partir dessas imagens que os meus filmes se começaram a desenvolver. Nessa altura, a Irene Pimentel falou-me de uma fotografia de uma mãe com uma criança. Fui à procura dessa imagem e encontrei-a. É uma imagem impressionante. É uma imagem de cadastro com uma mulher e o seu filho, que é uma coisa muito rara, porque era uma fotografia de identificação da mãe. A partir daí, pensei fazer um filme sobre os filhos também. É muito impressionante ver um menino pequenino, de dois anos e meio, preso com a mãe. A história do filme e o interesse depois por esta rede mais alargada tem início aí. Quando vi essa fotografia, fui depois investigar mais sobre as pessoas, e vi que a mãe era a Albina Fernandes e o menino era o Rui Pato. Era a companheira e o filho do Octávio Pato. Sabia muito bem quem era o Octávio Pato, era um preso político conhecido, teve também um papel relevante depois no pós-25 de Abril, já em democracia. A ideia do filme, e aí é muito diferente do “48”, é, por um prisioneiro político que conhecemos, ou seja, por uma figura conhecida, descobrir quais são as outras todas que estão lá por baixo. E aquilo a que não temos acesso, toda aquela rede invisível. O filme parte precisamente dessa ideia.

Considera que os testemunhos dos filhos dos resistentes antifascistas, os herdeiros da ditadura, por assim dizer, podem dar uma nova perspetiva sobre a violenta repressão por parte da PIDE, o medo e a falta de liberdade que existia durante a ditadura e, por outro lado, sobre as mazelas deixadas pelo regime, que se manifestam até aos dias de hoje? É uma nova forma de falar sobre aquilo que era a ditadura e as marcas que a ditadura deixou nas pessoas?

Não tenho dúvida, até porque o que tentei fazer com este filme foi precisamente ver como a PIDE atua na intimidade familiar, como a PIDE entrava dentro da família. Uma coisa é quando pensamos que há um resistente, pode ser membro do Partido ou não, já que a PIDE prendia muita gente, mesmo sem filiações partidárias. Mas, basicamente, uma coisa é prender alguém por motivos especificamente políticos; outra é, para prender essas pessoas por motivos políticos, apanhar tudo o resto. E, sobretudo, ir dentro da família. É um regime que se estende, e estende as suas malhas, a toda a população. Nesse sentido, isto é uma perspetiva que os filhos nos podem dar. É uma perspetiva única e que se mantém até hoje nessas famílias. São situações absolutamente traumáticas. Como diz uma das pessoas no filme, a Isabel, “a PIDE sempre fez parte da nossa vida, mesmo quando não estava dentro da nossa casa”. É uma vida completamente sob vigilância, é uma violência que perpassa, e acho que chegou, transitou também, para os tempos da democracia. Ainda não nos libertámos completamente desta violência invisível que herdámos destes 48 anos.

No “48”, a história é contada pela voz de quem está naquela fotografia, vemos a fotografia de cadastro, mas nunca vemos a imagem da pessoa na atualidade, não vemos a cara hoje. Em “Luz Obscura”, optou por mostrar as caras de Isabel, Álvaro e Rui na atualidade. Porquê?

A ideia do “48” nasceu quando percebi que a imagem de cadastro era muito mais do que um retrato. É, de facto, uma imagem que tem um conhecimento dentro dela e nos dá acesso a algo a que não temos acesso, porque não há fotografias de prisão, não há fotografias de tortura. Através daquelas imagens podemos escavar algo, ver algo que não é possível ver. A ideia do “48” foi partir dessas imagens e testemunhos. E também por outra razão. Queria confrontar o espectador com o preso político, e não com o ex-preso político. A pessoa que fala hoje já é um ex-preso político e quando estamos a filmar a pessoa, ao falar hoje, acabamos por ter uma fratura entre presente e passado. A pessoa que fala hoje está a falar das suas experiências do passado e a imagem de arquivo quando aparece é uma imagem do passado, é essa pessoa mais nova. Dá-lhe logo um estatuto muito particular. A partir do momento em que não faço esta distinção, de repente, estou a trabalhar com tempos completamente diferentes. E não estou só a confrontar o espectador com o preso político, que é o que pretendo. Há aqui mesmo um imperativo político nesta opção, estou a trazer os relatos todos para o presente. Estou a trabalhar com uma série de tempos, com a presença de tempos heterogéneos que depois acabam por ser presentes também ao nosso presente e ao futuro, permitem-nos pensar o futuro. Para mim, era mesmo muito, muito importante fazer isso. Em relação ao “Luz Obscura”, também não queria criar esta simplicidade entre presente/passado. Temos de ver como as histórias chegam até ao presente e como elas continuam atuantes e nos fazem pensar toda a nossa atualidade. Mas, para mim, era muito importante mostrar os rostos deles. Era mesmo fundamental, porque eles também carregam uma memória. E uma memória que passa pelo corpo. O Marcel Ophüls tem uma expressão que é o “documento humano”. Quando pensamos nos testemunhos, regra geral, qual é a importância do testemunho? A importância do testemunho está sempre na esfera discursiva. É “narrativa certificada”, como diz o Dulong. Tudo se centra nesta esfera discursiva. Para mim, um testemunho é muito mais do isso, é a própria pessoa. E é a própria pessoa com tudo o que viveu. E a palavra vale não apenas dentro do seu sentido meramente discursivo, meramente semântico, mas também pela forma como é dita e vivida. Daí que toda a questão dos suspiros, dos silêncios, todos estes gestos paralinguísticos nos meus filmes tenham uma grande importância. Porque tudo isso nos está a transmitir alguma coisa.

Por outro lado, ainda que tenhamos a cara da pessoa na atualidade, não temos depois o percurso da sua vida no pós-25 de Abril. Sabemos o que aconteceu durante o período da ditadura mas não sabemos o desenrolar das suas histórias até à atualidade. Chegou a pensar em fazer o acompanhamento destes elementos e desta família até aos dias de hoje?

Pensei. Aliás, a ideia inicial do filme era muito diferente: era acompanhar os três irmãos na atualidade e perceber como é que eles vivem o presente com toda esta carga de memórias. Mas, à medida que fui fazendo o filme, o que aconteceu foi que os mortos, os desaparecidos, começaram a emergir todos. Utilizo sempre a mesma expressão, parecia que estava a exumar corpos. De repente, eles começaram a adquirir uma força que parecia impossível... O filme tornou-se outra coisa, ou seja, deixou de ser centrado nos três irmãos, e nas vivências dos três irmãos, para se centrar na atuação da PIDE dentro de uma família e nestas pessoas todas que estão escondidas, que são secundárias em termos daquilo que foi a escrita da história, porque são tudo menos secundários, são importantíssimos. O filme vai tentar recuperar, e trazer para primeiro plano, figuras que estão lá nos arquivos.

Porquê o título “Luz Obscura”?

O título “Luz Obscura” veio de um romance da Marguerite Duras que li já há muito anos, tinha 20 e poucos anos. Foi sempre um oxímoro que ficou. Quando tive a ideia para este filme, era o título a escolher. “Luz Obscura”: são dois termos completamente contraditórios, não se pode optar por um ou por outro, eles entram ali em paradoxo, e penso que tem muito a ver também com todas as questões da memória da história, e com tudo o que é paradoxal, entre uma e outra. Guardei esse oxímoro.

Tal como acontece em filmes anteriores, o poder do som, ou da ausência dele, o poder das palavras, bem como das imagens e da lentidão com que as mesmas são exibidas, é determinante em “Luz Obscura”. No que respeita à imagem, especificamente, voltou a utilizar um processo de micromovimentos com a câmara. Qual é o objetivo destas técnicas?

Para mim, é uma coisa muito importante, e que comecei a questionar logo. Quando entrei no arquivo da PIDE e quando estava a fazer o outro filme, que é um filme de 2000, comecei a questionar muito o que é que é uma imagem de arquivo, o que é que são as formas documentárias, como é que se pode contar a história, o que é a história, e todas as formas que utilizo têm a ver com uma conceção de história e com uma conceção de imagem. Uma conceção de história que está também muito ligada às teses do Walter Benjamin. A história não é passível de ser contada através de um discurso causal, claro, que o passado não é fechado... Há aí toda uma série de questões que são importantes. E a própria noção de imagem. O Georges Didi-Huberman diz que, quando pensamos numa imagem, não temos apenas de criar adjetivos para explicar o que ela é, temos também de ver o que nos faz. E esta é uma ideia de imagem muito importante. O que é que as imagens nos fazem? Tento que toda a forma seja uma forma pensante. É muito fácil construir um filme em termos clássicos, em que se apresenta uma história com princípio, meio e fim, que vai do ponto A ao ponto B, com uma certa fluidez, cheia de imagens, com as pessoas a falar, mas, lá está, a pessoa segue a história do ponto A ao ponto Z. Vai ali e sai do filme. Eu não. Tento trabalhar com todas as lacunas, assumir lacunas, e dar tempo à pessoa para ver, para ouvir, para ouvir bem, e para refletir também dentro do filme. É um processo completamente diferente, que tento que permita todo este campo de reflexão. A questão da imagem aqui tem essa função. Pensei muito em não pôr imagens supérfluas. A imagem aparece porque tem de aparecer. Assim como o discurso. Aquilo que é dito, ou quando aparece, é porque tem de ser ouvido.

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Entre as imagens que escolheu para o filme, surge, em mais de um momento, o mar. Aquele mar escuro, agitado. Aliás, se não me engano, o filme começa exatamente assim. Porquê o mar? Porquê essa escolha que é repetida ao logo do filme e que se percebe que tem uma profundidade grande?

Tem. Filmei os três irmãos em várias situações. Um deles perto do sítio onde vivia, perto do mar, e naquele momento filmei o mar. Quando decidi começar o filme pela Isabel, ela refere o local onde nasceu, o Cabo do Mundo. Pensei “vou começar com o mar”. O Cabo do Mundo, que pode ser visto também como o fim do mundo, é um sítio que adquire uma dimensão simbólica, em muitas dimensões. Então decidi filmar o mar. Mas fui filmá-lo de novo. É um mar diferente. Por acaso, foi filmado em Peniche, perto de Peniche. É um mar de Peniche, mas ninguém sabe. Para mim, o mar era muito importante. Não só por este nascimento no Cabo do Mundo, uma espécie de finisterra, e com toda a dimensão simbólica, como já referi. Se pensarmos que o mar foi um elemento tão simbólico, tão fundamental para o Estado Novo e para toda a mitologia criada à volta do Estado Novo. Este mar tem também essa dimensão. É o mar português, aquele mar onde também morreu tanta gente e que tem qualquer coisa de submerso ali. Há ali muitos corpos que ainda temos de exumar, já não falando da questão da escravatura, mas também de todos os outros. Podemos ir lá muito atrás e vir ao presente. O mar tem todas estas dimensões que estão ligadas à própria história. Evidentemente que o espectador não vê esta dimensão. Estou a dar razões privadas para colocar o mar. Mas também, e aí de uma forma mais clara, o outro aspeto. Trabalho o mar depois com o ralenti de tal forma que ele acaba quase por se solidificar. No fundo temos, é tal como a “Luz Obscura”, o paradoxo, temos também qualquer coisa entre o sólido e o líquido, o fixo e o movente. É qualquer coisa que está ali e pela qual nunca conseguimos optar: se é fixo, se é movente, se é sólido, se é liquido. E que remete para todas as dimensões que são tratadas no filme.

Quais foram os principais constrangimentos com que se deparou durante a realização de “Luz Obscura”, bem como de filmes anteriores?

Bem, se começo a falar dos meus filmes anteriores, para dizer muito brevemente, foi o acesso aos próprios arquivos. Foi muito complicado. Não neste filme, porque já tinha quebrado essa primeira barreira. É interessante que o “48” nasce precisamente de uma recusa, por parte do arquivo da PIDE, da direção do arquivo da PIDE. Em 2003, não me autorizaram a filmar as fotografias dos presos políticos. Pedi e a primeira resposta foi “não, não lhe damos acesso, não lhe damos autorização”. Insisti e aí disseram que davam acesso desde que apresentasse autorização de todos os presos políticos que figuravam na fotografia ou, no caso de terem morrido, tinha de falar com os herdeiros e tinha de apresentar a certidão de óbito. Na altura fiquei muito perturbada com isto, porque acho que é uma violência. Senti que era uma ofensa ter de apresentar a certidão de óbito, por exemplo, da Maria Lamas ao arquivo para dizer “quero filmar esta mulher, ela está morta, tome lá a certidão de óbito”. Acho ofensivo e acho um desrespeito em relação às pessoas que foram presas e em relação à nossa história, ao que significam aquelas imagens. Acho que há aqui mesmo um problema político. Toda a ideia dos filmes é que esta fotografia não é um mero retrato, é muito mais que isto. Ao elidir-se toda a dimensão política destas fotografias, está a camuflar-se uma parte da nossa história. Tenho muitos problemas com esta política. Estes foram os grandes constrangimentos. Depois, como tive de pedir autorização, uma das pessoas com quem falei na altura foi a Conceição Matos. Foi nessa altura, ao conversar sobre as imagens, que nasceu a ideia do “48”. Em relação à “Luz Obscura”, não diria constrangimentos, mas a parte mais sensível foi a recolha dos testemunhos. Este é um trabalho extremamente delicado e extremamente complexo, até do ponto de vista ético. Mesmo no “48”. Decidi não pôr o rosto logo ao princípio, para mim era uma das ideias do “48”, mas não sabia se ia chegar ao fim com esta ideia. Questionei-me: Será que é justo? Será que é correto? Será que, até do ponto de vista ético, posso tirar o rosto da pessoa que fala hoje? Depois percebi que sim. Até porque toda a relação com a pessoa no filme é dada através do corpo e o corpo dá-nos outra perceção das vivências. O escutar o corpo e as palavras dá-nos uma outra perceção até daquilo que é dito. Em relação à recolha de testemunhos, interroguei-me: Será que tenho o direito de fazer as perguntas que faço? Será que tenho o direito de pôr as pessoas a falar? No caso da Isabel, ela disse “não tenho nada para contar, não me lembro de nada, mas sinto que tenho o dever de contar. É uma missão. Tenho o dever porque vivi isto e há-que transmitir”. E aqui os elos de transmissão são fundamentais. Se isto se quebra, não há esta transmissão. Isto é muito importante. Ela falou e concedeu-me a entrevista. Eu estava permanentemente a interrogar-me sobre os limites do que poderia perguntar, onde é que deveria parar. Foi muito sensível nesse aspeto.

Em termos de financiamento, não tem tido dificuldades em obter financiamentos para os seus projetos?

Às vezes é complicado. Para o “Luz Obscura” consegui financiamentos há muitos anos. Vou voltar um bocadinho atrás. Fiz a “Natureza Morta”, que é um filme inteiramente baseado em imagens de arquivo, portugueses, feito por portugueses, sobre Portugal, e não consegui um tostão cá, dos portugueses. Nem do ICA, nem da RTP, nem do Camões... Nada. Consegui a posteriori um pequenino apoio da Gulbenkian para divulgação em Portugal, já o filme estava feito. E quem financiou o filme foram os franceses. Foi a RT France, foi o Instituto de Cinema francês e foi também a Finlândia, um canal finlandês, que deu dinheiro para o filme. É extraordinário. E o filme correu muito bem. Depois de correr muito bem lá fora, foi também recusado cá ao princípio em todo o lado, mas depois lá foi aceite, e começou a correr muito bem. Foi mais fácil aí conseguir apoio para o segundo filme, que foi o “Luz Obscura”. E consegui apoio. Consegui também apoio para o “48” . Depois do “48”, foi complicado conseguir apoios. Não é fácil. Por exemplo, a seguir ao “48”, concorri com um projeto e o júri do ICA disse “bom, mais um projeto sobre antifascistas”, como se existissem milhares de projetos sobre antifascistas. E não me deram [apoio]. O feitiço depois lá se quebrou e consegui. Agora tornou-se mais fácil, mas é sempre uma luta.

Disse numa entrevista, a propósito do filme “48”, e, aliás, também já o disse aqui um pouco, que sentia que caiu no arquivo da PIDE e que ainda não saiu de lá. Com o “Luz Obscura”, parto do princípio que ainda não saiu, terá outros projetos em mente e voltará ao Estado Novo?

Sim. No “Luz Obscura” trabalhei com mais núcleos familiares, ou seja, entrevistei mais pessoas pertencentes a outros núcleos familiares. Depois percebi, porque era suposto o filme ter várias famílias, que eram filmes diferentes, e separei-os. E percebi também que uma das famílias tinha um álbum de clandestinidade, ou seja, imagens feitas durante o tempo da clandestinidade e que eram extraordinárias. Uma pessoa vê aquele álbum, que é construído a posteriori tal como ele se encontra hoje, e olhamos e vemos a família perfeita: o pai, a mãe, os quatro filhos, segundo os cânones de representações familiares dos anos 60, 70. Quando uma pessoa começa a perceber o que é aquela história, não tem rigorosamente nada a ver. Aquelas imagens, no fundo, estão a revelar-nos e a esconder-nos toda uma outra realidade. Lá por dentro têm detalhes, têm sintomas, dessa outra realidade. Estou a fazer agora um filme, que também tem imagens dos arquivos da PIDE, mas parte sobretudo deste álbum. Mas, lá está, é o Estado Novo, tem a ver com todas essas questões. E tenho outro projeto, que partiu também de imagens de arquivo destes tempos, de um filme feito pelo exército em Angola durante a guerra colonial sobre uma fazenda. É um outro projeto que estou a desenvolver, esse filmado agora em Angola, que se centra nessa fazenda. A ideia é contar a história do colonialismo e vir até aos tempos presentes através desta fazenda. Mas sim, continuo a trabalhar sobre o tema, porque é inesgotável.

Era isso que lhe ia perguntar. Existiam agora muitos mais projetos do que há uns anos atrás, nomeadamente a nível do cinema, sobre a ditadura e sobre os resistentes antifascistas mas pressuponho que a Susana pense que ainda há muito a explorar para recuperar a memória daquilo que foi a ditadura e aquilo que nós herdámos, em termos do terror e do medo, daquilo que ainda ficou...

Sim, há muita coisa. Ainda por cima também perceber como é que isto chega tudo ao presente. Há muita coisa ainda por explorar.

E acha que esse projetos contribuem, de alguma forma, para desconstruir a ideia, que me parece ainda persistir, de que o Estado Novo foi um regime brando comparativamente com outras ditaduras?

Certamente. Isso continua. Há vários mitos que continuam atuantes, esse é um deles, o da ditadura branda. É como o mito do lusotropicalismo, continua a trabalhar. Para as gerações nascidas pós 25 de Abril, são mitos que continuam operantes. E acho que precisamos de trabalhar sobre eles, sem dúvida. Este trabalho que vou fazer, depois de acabar este outro filme, sobre esta fazenda tem a ver com isso, a desconstrução de todos esses mitos. Acho fundamental.


Entrevista realizada a 16 de maio de 2018, em casa da realizadora Susana de Sousa Dias.

 

Mariana Carneiro
Sobre o/a autor(a)

Mariana Carneiro

Socióloga do Trabalho, especialista em Direito do Trabalho. Jornalista do Esquerda.net. Mestranda em História Contemporânea.
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