Duas “falhas” na agenda iraquiana do Papa Francisco

15 de março 2021 - 15:41
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Uma visita não dá para tudo e, muito provavelmente, a visita do Papa Francisco ao Iraque não deu para tudo o que Francisco gostaria de ter feito e para ir a todos os locais onde gostaria de ter ido. Mas houve duas páginas em branco na agenda iraquiana do Papa Francisco. Artigo de José Manuel Rosendo publicado em meu Mundo minha Aldeia.

Papa Francisco no encontro com o Grande Ayatollah Ali al-Sistani, em Najaf. Foto do gabinete de Ali al-Sistani reproduzida pelo blogue de José Manuel Rosendo.

Uma visita não dá para tudo e, muito provavelmente, a visita do Papa Francisco ao Iraque não deu para tudo o que Francisco gostaria de ter feito e para ir a todos os locais onde gostaria de ter ido. Os programas das visitas são negociados e são os programas possíveis. Sem dúvida que foi melhor ir ao Iraque sem um programa mais completo, do que ficar em Roma à espera de melhores dias. Mas houve duas páginas em branco na agenda iraquiana do Papa Francisco.

Independentemente do programa, com uma forte componente religiosa, mas inevitavelmente com uma componente política, ou não fosse o Papa também chefe de Estado, o Papa Francisco fez-se ouvir. Aliás, e sem outra intenção que não a de comparar factos, o Papa e o Estado Islâmico conseguiram ser objectivo comum para Estados Unidos e Irão, embora por motivos completamente diferentes e opostos: da mesma forma que Estados Unidos e Irão combateram o Estado Islâmico, os dois países voltaram a coincidir, mas agora nos elogios à visita do Papa. Joe Biden (segundo Presidente católico da história dos Estados Unidos) disse que a visita “histórica” do Papa, é “um símbolo de esperança para o mundo inteiro”; no Irão, em termos oficiais, apenas um porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros se pronunciou, mas a imprensa foi fértil em comentários: referiram-se ao encontro entre o Papa e Ali al-Sistani, como “os porta-estandarte da paz mundial” e “o acontecimento mais significativo na história do diálogo entre religiões”; também sublinharam que a viagem do Papa só foi possível devido à segurança conquistada com o “sangue derramado” na luta contra o Estado Islâmico, sob comando do general iraniano Qassem Soleimani (assassinado pelos Estados Unidos, em janeiro de 2020). Mas houve também outra leitura, expressa no “Irão”, jornal da agência de notícias oficial IRNA: “Vitória para o xiismo e para o cristianismo”. E é esta referência que sublinha o que ficou por fazer na visita do Papa Francisco ao Iraque.

Sunitas

Os sunitas iraquianos enfrentam um vazio de representação e poder desde 2003. Foram literalmente varridos dos postos de influência no Iraque, onde os xiitas passaram a dominar. O surgimento do Estado Islâmico e do Califado, tiveram uma aceitação inicial em muitos locais do Iraque precisamente porque foram vistos como uma defesa contra o poder xiita. Integrados nas instituições lideradas pelo regime de Saddam, desde a queda do ditador que os sunitas nunca conseguiram encontrar uma liderança que traduza a voz da comunidade. Há muitos líderes tribais e religiosos, até há partidos políticos e representação parlamentar, mas a comunidade enquanto corpo mais ou menos homogéneo, não consegue fazer-se ouvir. E é bom não esquecer que os sunitas são os grandes derrotados das duas últimas décadas no Iraque.

Assim, na visita do Papa Francisco ficou a faltar um encontro, uma palavra, um gesto, para a comunidade sunita do Iraque. Depois do encontro com o líder xiita Ali al-Sistani, teriam bastado 10 minutos com um representante sunita. É certo que Francisco esteve não há muito tempo com o Grande Imã de Al Azhar (talvez a voz mais ouvida no mundo sunita), mas os sunitas iraquianos sentiram-se mais uma vez marginalizados e esquecidos, como aliás acontece desde 2003.

Yazidi

E faltou também uma visita ao templo sagrado dos Yazidi, o que não teria sido difícil, porque seriam apenas mais alguns quilómetros nos arredores de Mossul. Os Yazidi foram expulsos das suas terras, assassinados e escravizados. Aos sobreviventes ficou tatuado na memória o tempo em que as bandeiras negras do Estado Islâmico lhes virou a vida ao contrário. Acredito que o Papa Francisco terá pensado em tudo isto, mas só ele poderá dizer porque não incluiu estas duas questões na agenda iraquiana.

“Vós sois todos irmãos”

E se os Yazidi foram lembrados nos discursos e nos contactos, já os sunitas estiveram ausentes. Poder-se-á dizer que estavam incluídos nas palavras do Papa quando disse “vós sois todos irmãos” e que “o povo iraquiano tem o direito de viver em paz, o direito de reencontrar a dignidade que lhe pertence”, apelando ainda para que “às armas não se responda com armas”. Mas faltou uma palavra explícita, dirigida a uma comunidade que continua sem saber o lugar a que tem direito no Iraque pós-Saddam. E é avisado ter em conta que enquanto a “questão sunita” no Iraque (e na Síria) não for resolvida, o Iraque não terá paz. Poderá ter momentos de algum sossego, mas a ausência de guerra não é sinónimo de paz.

Nada do que fica dito retira valor a uma visita que, se não ficar registada como a mais importante do tempo de Francisco, fica seguramente nos lugares cimeiros de todas as que fez e ainda irá fazer. Talvez a resposta para este “esquecimento sunita” esteja nos meandros da diplomacia e talvez um dia possamos saber o que realmente aconteceu.


Artigo de José Manuel Rosendo publicado em meu Mundo minha Aldeia.