Na última década, o primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, emergiu como um dos políticos mais importantes - e controversos - da Europa: uma proeza considerável para o líder de um país cuja importância económica ou estratégica, tanto à escala europeia como mundial, continua a ser, digamos, modesta. Tendo-se estabelecido como uma referência para a extrema-direita em todo o mundo, Orbán tornou-se também um alvo de constantes críticas, mal-entendidos e pura fantasia em todo o espetro político. Na campanha para as eleições europeias de 2024, Orbán fez campanha com o lema “ não à imigração, não ao género, não à guerra” e apelou aos seus apoiantes para “ocupar Bruxelas”. Era, pois, de esperar que a tomada de posse da presidência rotativa do Conselho da UE pela Hungria, em julho de 2024, não fosse isenta de turbulências.
Normalmente, espera-se que as presidências do Conselho sirvam de “mediadores honestos” entre os 27 Estados-Membros da UE - mas os primeiros passos de Orbán pareceram apenas aumentar as contradições internas do bloco. Os comentadores alinhados com a sua marca de nacionalismo “iliberal” celebraram o seu slogan trumpiano, “MEGA” (abreviatura de “Make Europe Great Again”), enquanto os especialistas e os políticos de centro-direita e de centro-esquerda ficaram indignados com a sua viagem diplomática não anunciada a Moscovo e com a fundação de um novo grupo de extrema-direita no Parlamento Europeu no primeiro dia de julho. As vozes de esquerda sublinharam a sua aposta na criação de um “ambiente favorável às empresas”, a oposição ao Pacto Ecológico Europeu e a proximidade com outros líderes de extrema-direita. No entanto, faltava um elemento central na maioria dos comentários: a atual tensão entre Bruxelas e Orbán é apenas parte de uma história mais longa e interligada, em que ambas as partes se apoiaram mais frequentemente do que o contrário.
Em 2024, Orbán terá governado a Hungria durante a maior parte da sua história pós-1989. No entanto, apesar de estar no poder há quase duas décadas, os principais meios de comunicação social retratam regularmente o seu regime como uma anomalia no seio da União Europeia, talvez melhor explicada pela personalidade autoritária de um líder que capitaliza a desunião da UE, farejando sangue a cada sinal de disfunção. Esta narrativa pode ser tranquilizadora para os liberais europeus, mas se olharmos para além dos crescentes e altamente publicitados confrontos entre Orbán e a Comissão Europeia sobre questões como o Estado de direito, os direitos das minorias sexuais, a liberdade de expressão ou, mais recentemente, a Ucrânia, surge uma imagem mais complexa - uma imagem de interesses que se reforçam mutuamente, em que os confrontos mediáticos servem um objetivo e os fluxos de capital outro.
A ascensão de Orbán não pode ser separada da integração da Hungria na UE, mas a sua história ultrapassa o caso específico de um pequeno país da Europa de Leste. A emergência de um Estado semi-autoritário no coração da União revela muito sobre a natureza mutável do capitalismo contemporâneo, o papel das instituições europeias e o processo desigual de europeização nas últimas décadas. A Hungria foi um precursor voluntário na implementação regional das ideias neoliberais durante a década de 1990. Alguns anos mais tarde, a ascensão de Orbán ao poder e a subsequente consolidação do Estado constituíram um novo modelo de governação de direita. Após o seu regresso ao cargo de primeiro-ministro em 2010, um fluxo constante de fundos da UE ajudou a cimentar o governo de Orbán. Neste contexto, o regime húngaro surge menos como uma anomalia no projeto da UE e mais como o seu resultado lógico.
A (muito) longa transição da Europa de Leste
Os comentários sobre a Hungria contemporânea revelam frequentemente um certo grau de perplexidade. Não teria a Hungria realizado uma transição capitalista pacífica e reformas de mercado eficazes? Na altura em que aderiu à UE, o país parecia estar preparado para uma integração perfeita. No entanto, nas duas décadas que se seguiram, o país tem feito sobretudo manchetes negativas: pacotes de resgate, milícias neo-nazis, crimes de ódio contra os ciganos, um primeiro-ministro cada vez mais rebelde e disputas intermináveis entre Budapeste e Bruxelas.
As raízes do regime de Orbán remontam aos últimos anos em que a Hungria fez parte do Bloco de Leste, liderado pela União Soviética. Contrariamente à narrativa dominante, a integração económica da Europa de Leste com o Ocidente não começou com a adesão à UE ou mesmo com a queda do Muro de Berlim. Em 1989, a maior parte dos países ostensivamente “socialistas” já estavam integrados nos mercados mundiais, a vários níveis, há décadas. Este processo acelerou com o fim do sistema de Bretton Woods, a derrota dos projetos alternativos de globalização e a ascensão do neoliberalismo. De todos os membros do Pacto de Varsóvia, a Hungria foi o país que mais se abriu aos fluxos de capitais globais, procurando tornar-se uma “ponte” entre o Ocidente e o Oriente, financiando a modernização tecnológica com empréstimos ocidentais.
Juntamente com a Polónia e a Roménia, a Hungria aderiu ao Fundo Monetário Internacional (FMI) na década de 1980, contraindo o seu primeiro empréstimo do Banco Mundial em 1982. As joint ventures com empresas estrangeiras foram legalizadas logo em 1972 e, em 1989, grande parte da elite tecnocrática do regime já se tinha convertido aos méritos do mercado livre, com milhares de empresas estrangeiras a operar no país. No entanto, esta gradual mercantilização não aliviou as tensões internas nem melhorou substancialmente a posição económica global do país. A Hungria entrou na sua transição pós-socialista com uma dívida substancial, afastada do bloco comercial Comecon e sem uma estratégia coerente para avançar.
Houve antecedentes e continuidades em ambos os lados de 1989: Os países da Europa de Leste continuaram a ser economias dependentes, já parcialmente dependentes de uma ordem global dominada pelo Ocidente e cada vez mais financeirizada. A transição para o capitalismo total marcou, no entanto, uma rutura qualitativa. À medida que o “fim da história” se aproximava, a região emergiu como uma nova fronteira para o capital, uma vez que as elites locais dispostas a isso, a intervenção internacional e uma paisagem global em mutação se combinaram para levar a cabo uma transformação radical.
Cada país assumiu a sua trajetória. Os Estados bálticos foram os que mais longe foram na sua reestruturação neoliberal, enquanto a Eslovénia é frequentemente citada como o país que melhor conseguiu proteger as suas instituições de segurança social, a capacidade do Estado e a posição negocial dos trabalhadores. Alguns países, regiões e cidades tiveram melhores resultados, mas, mais de três décadas após a transformação do antigo Bloco de Leste, nenhum conseguiu sair do tipo de estatuto semiperiférico que subordina o seu desenvolvimento às decisões dos investidores externos e das grandes potências.
Ao insistir sem descanso num conjunto específico de reformas de mercado, a Comunidade Europeia (a partir de 1993, a União Europeia) apenas reforçou as desigualdades estruturais existentes e a dependência dessa trajetória. Estas políticas transformaram os países da Europa Central e de Leste em “estados concorrentes”, empenhados numa corrida para o fundo para proporcionar às empresas multinacionais (na sua esmagadora maioria ocidentais) as condições mais favoráveis. O preço a pagar por estas mudanças seria muito elevado. Estimativas recentes apontam para mais de 7 milhões de mortes em excesso na Europa de Leste durante a “década perdida” dos anos 90. A política defendida por Viktor Orbán não respondeu substancialmente a nenhuma das causas profundas destes processos - mas ele tem-se revelado particularmente hábil em capitalizar o ressentimento e as queixas legítimas causadas por esta experiência, a fim de mobilizar grandes faixas da sociedade para o seu projeto de construção do estado.
A “Europa Social” real
A transformação da Hungria num campo de ensaio neoliberal foi parte integrante das mudanças globais que também transformaram profundamente as sociedades do outro lado da Cortina de Ferro. Em 1990, as economias da Europa Ocidental tinham abandonado em grande medida o keynesianismo que produziu grande parte da “idade de ouro” da Europa Ocidental do pós-guerra. Na altura em que o “socialismo real” entrou em colapso, o Consenso de Washington - receitas políticas baseadas num credo de estabilização do mercado, liberalização e privatização - já estava firmemente enraizado no seio da CEE.
Na ausência de harmonização fiscal, o mercado único europeu colocou os respetivos Estados-providência do continente uns contra os outros. Apesar de toda a conversa sobre a construção de uma “Europa Social”, o Tratado de Maastricht de 1992, que criou a UE, constitucionalizou efetivamente a livre circulação de capitais e de mão de obra, reduzindo simultaneamente a flexibilidade fiscal dos Estados ao estabelecer regras rígidas em matéria de défice orçamental e de dívida soberana. As disposições sociais do tratado podem ter feito referências ao “diálogo social”, mas os seus contornos vagos não eram obrigatórios nem têm sido considerados prioritários desde então.
A década de 1990 foi também um momento crucial para o estabelecimento da arquitetura económica da UE. O “neoliberalismo disciplinador” - um compromisso para com a baixa inflação e a disciplina orçamental - foi incorporado nos tratados que constituem o cerne da União Económica e Monetária (UEM) da UE, ao mesmo tempo que “a pressão desreguladora e competitiva americana foi aplicada ao sistema financeiro europeu baseado em bancos”. Os bancos centrais foram, de facto, “desnacionalizados”, tornando-se elos institucionais fundamentais na expansão de um sistema cada vez mais financeirizado. Estes foram os principais agentes na criação de filiais de bancos comerciais nas periferias do Sul e do recém-aberto Leste da Europa. Na Hungria, tal como noutros países vizinhos, estas filiais foram pouco incentivadas a impulsionar a produção interna, o que lhes permitiu dedicarem-se a atividades de risco cada vez mais elevado, sendo os rendimentos canalizados para o centro ocidental.
A integração económica europeia das economias da Europa de Leste, como a Hungria, permitiu solucionar a crise do crescimento baseado nos salários que as economias da Europa Ocidental enfrentavam na altura. Ao isolar a tomada de decisões económicas do controlo democrático e ao abrir radicalmente a Europa de Leste ao capital transnacional, ofereceu novos modelos de acumulação às elites económicas ocidentais, cujos interesses determinavam cada vez mais a política institucional. Sob o pretexto da integração, a UE empenhou-se numa ampla criação de instituições nos países candidatos. Esta “europeização” não se limitou à transferência de legislação relativa aos direitos das minorias ou à capacidade administrativa - em preparação para a sua entrada na UE, os países candidatos (incluindo a Hungria) tiveram de se conformar com as medidas de austeridade prescritas pelo Tratado de Maastricht.
Todos estes processos foram condicionados pela força gravitacional do poderoso setor industrial alemão e pelo seu modelo de crescimento orientado para a exportação. Impulsionada pela absorção da Alemanha de Leste e pela incorporação das economias da Europa de Leste como satélites de facto, a República Federal da Alemanha afirmou a sua posição dominante no seio do bloco, moldando decisivamente a forma que este viria a assumir durante a década de 1990. Isto foi particularmente verdade na Hungria, e continua a ser o caso até hoje: a Alemanha é o maior parceiro comercial da Hungria, sendo responsável por quase um quarto do seu comércio externo total.
“Regresso à Europa”
Na primavera de 1994, a Hungria tornou-se o primeiro antigo membro do Pacto de Varsóvia a solicitar oficialmente a adesão à UE. Foram necessários quase quatro anos para dar início às conversações oficiais de adesão e mais quatro anos de negociações para que a adesão fosse aprovada por esmagadora maioria num referendo nacional em 2003.
A Hungria aderiu à União Europeia um ano mais tarde, juntamente com vários dos seus vizinhos da Europa de Leste.
As instituições da UE desempenharam um papel determinante na trajetória da Hungria, tanto antes como durante a adesão. A estrita condicionalidade da adesão foi utilizada para remodelar as políticas internas e a estrutura do Estado húngaro, enquanto as “agências nacionais de promoção do investimento”, que promoviam a abertura das economias locais aos investidores internacionais, eram diretamente financiadas pela UE. Criado em 1990 com o objetivo declarado de facilitar a integração europeia, o Banco Europeu para a Reconstrução e o Desenvolvimento (BERD) foi também um ator importante neste processo, intervindo em áreas estratégicas e condicionando os seus empréstimos ao envolvimento de capital privado. Paralelamente, o banco estabeleceu e manteve parâmetros de referência e “indicadores de transição” para medir os “progressos” dos países no caminho para a privatização.
O processo resultante foi exatamente o oposto da via desenvolvimentista do tipo leste-asiático, em que os bancos estatais de desenvolvimento desempenharam um papel crucial na promoção de políticas industriais coordenadas. Era também diametralmente oposto à recuperação da Europa Ocidental no pós-guerra, baseada na intervenção ativa do Estado e em políticas industriais nacionais. Quando o governo (conservador) da Hungria procurou alterar a forma de privatização para favorecer os concorrentes nacionais em 1993/94, a reação da UE, do BERD e do FMI foi rápida - condenaram o esforço do governo para se isolar da “penetração estrangeira” e suspenderam a ajuda financeira prevista. Este facto levou a um agravamento imediato da notação de crédito da Hungria nos mercados internacionais, tornando mais difícil e oneroso o refinanciamento do Estado.
No final da década, os principais ativos industriais, bem como grande parte dos setores bancário, das telecomunicações e da energia, tinham sido transferidos para propriedade estrangeira. As aquisições de empresas estatais por estrangeiros reduziram efetivamente a capacidade em muitos setores. Para evitar a concorrência indesejada, muitas das antigas empresas públicas foram desmanteladas ou simplesmente extintas - outras foram penalizadas por um sistema que favorecia efetivamente os investidores estrangeiros através de empréstimos baratos, benefícios fiscais e subsídios. À medida que a economia húngara foi sendo reestruturada em torno da especialização orientada para a exportação, apenas cerca de um quarto das empresas nacionais existentes sobreviveram.
Fazendo campanha com a promessa de “privatizações bem feitas” e de restabelecer as relações com os parceiros europeus, o Partido Socialista (o herdeiro do antigo partido no poder) obteve uma maioria absoluta nas eleições de 1994, pondo fim à curta (e caótica) experiência do anterior governo. Nos anos seguintes, o governo liderado pelos socialistas impôs cortes drásticos na educação e na segurança social. O BERD libertou finalmente os fundos retidos em 1996, depois de um resgate do FMI ter exigido um aprofundamento do processo de privatização, uma redução do aparelho de Estado e a reestruturação do sistema fiscal. Um acordo com a UE reforçou o compromisso do governo de privatizar os bancos, as telecomunicações e as empresas de energia.
Estas opções macroeconómicas tiveram um efeito drástico na política social. A quebra das poupanças, das pensões e dos salários reais não foi uma consequência imprevista da má gestão, mas o corolário lógico do facto de a CE, o FMI e o BERD acusarem o “excesso de procura” de distorcer o mercado. Os líderes da UE concordaram com a avaliação do economista húngaro János Kornai de que o país tinha um “sistema de proteção social prematuro”. Em vez de considerarem as instituições de segurança social do regime anterior como uma base sobre a qual se poderia construir uma sociedade resistente, eram frequentemente vistas como a herança inchada de um sistema cujos orçamentos flexíveis e o excesso de generosidade na assistência social tinham levado ao seu desaparecimento. Com o declínio das capacidades de proteção social do Estado, facilitar o acesso dos cidadãos a créditos privados tornou-se cada vez mais um meio de reduzir as tensões sociais.
Em resultado destas políticas, os salários reais caíram um quarto, o fundo nacional de pensões perdeu um terço do seu valor e a produção agrícola e industrial caiu mais de 30%. Em meados da década, mais de um milhão de postos de trabalho tinham sido eliminados e o trabalho organizado praticamente deixou de existir. O parque habitacional público da Hungria foi quase totalmente privatizado.
Apesar de generalizados, os efeitos desta transformação não foram distribuídos de forma igual. As zonas ocidentais do país, historicamente mais ricas, não sofreram o declínio acentuado do nível de vida que se registou em algumas regiões do nordeste. A minoria cigana e as mulheres foram particularmente atingidas. Ao mesmo tempo, assistiu-se à ascensão de uma “classe de agentes locais de empresas estrangeiras” que investiu na implantação local do capital transnacional, ao qual prestou serviços técnicos e de gestão. As aspirações pessoais, as ligações e a astúcia deste grupo determinaram em grande medida a política deste período.
Nenhum destes processos era inevitável. A Hungria podia ter uma dívida pública muito elevada, mesmo em comparação com os seus vizinhos, mas o abandono de qualquer pretensão de política industrial e a adoção de uma privatização sem compromissos foram escolhas políticas. A miopia, a ingenuidade e o interesse próprio das elites húngaras foram factores importantes, mas não se tratou apenas de decisões internas - foi necessária a intervenção ativa das instituições europeias.
Entrada aos tropeções no novo milénio
A adesão da Hungria à UE suscitou um certo otimismo. A década anterior tinha sido difícil, mas o país tinha “finalmente regressado à Europa”, nas palavras do então Primeiro-Ministro Péter Medgyessy. Falou-se muito de novos começos e a possibilidade de os húngaros abrirem pastelarias em Viena tornou-se um cliché popular. Pela primeira vez desde a transição, a Hungria viveu vários anos de crescimento económico sustentado. O governo de coligação socialista-liberal eleito em 2002 parecia mesmo disposto a enfrentar alguns dos piores efeitos das políticas sociais da década anterior.
No entanto, sob as aparências, as profundas fissuras causadas pela transição só tinham sido disfarçadas. Cerca de um terço dos húngaros continuava em risco de pobreza. O número de habitantes não parou de diminuir desde 1989. Apesar de todos os sacrifícios da década de 1990, a dívida soberana só agora desceu para menos de 60% do PIB total. A adoção da política agrícola comum da UE tinha-se revelado desastrosa para a maioria das cooperativas e para muitos pequenos e médios agricultores.
À medida que a Hungria foi sofrendo mudanças sociais drásticas, a sua economia tornou-se cada vez mais vulnerável aos fluxos internacionais de capital e mais dependente do fabrico de automóveis (principalmente alemães) - em 2008, a percentagem do comércio em termos do PIB total tinha aumentado de cerca de 65% para 160%. No entanto, grande parte do investimento direto estrangeiro (IDE) que entrou no país durante estes anos não resultou em transferências tecnológicas significativas ou na melhoria da posição da Hungria nas cadeias de valor globais.
Uma assimetria semelhante definiu o setor financeiro altamente desregulado: em 2005, mais de 80% dos ativos bancários na Hungria eram detidos por bancos estrangeiros. Após a redução dos subsídios governamentais ao crédito à habitação, estes bancos entraram em ação, inundando o mercado com empréstimos em moeda estrangeira. Esta situação, associada à ausência de uma política social coerente, viria a revelar-se um prelúdio desastroso para a crise social que assolou a Hungria em meados da década de 2000 - e na qual as instituições da UE voltariam a desempenhar um papel determinante.
Eleito na primavera de 2006 com a promessa de “reformas sem austeridade”, o primeiro-ministro socialista Ferenc Gyurcsány começou rapidamente a aplicar medidas de austeridade severas com o total apoio de Bruxelas. Apesar das manifestações maciças desencadeadas por uma fuga de informação sobre um discurso em que admitiu ter mentido sobre as finanças do país, o governo continuou a avançar, reduzindo drasticamente as despesas com os serviços públicos e a administração. A economia húngara ficou paralisada.
No entanto, a implementação da austeridade em 2006/07 apenas tornou o país mais vulnerável à crise financeira de 2008. No outono de 2008, os ataques especulativos contra o florim húngaro resultaram numa desvalorização dramática da moeda. A dívida das famílias aumentou para 40% do PIB total - 80% da qual consistia em empréstimos em moeda estrangeira. Centenas de milhares de famílias endividadas viram-se subitamente confrontadas com hipotecas e dívidas que aumentavam exponencialmente. O número de pessoas a viver em situação de precariedade explodiu, e o número de sem-abrigo e a emigração aumentaram acentuadamente. Os despejos tornaram-se comuns.
A troika entra em ação
No outono de 2008, uma troika composta pelo FMI, o Banco Central Europeu (BCE) e a Comissão Europeia interveio para travar a queda livre da economia húngara. A intervenção foi significativa - em muitos aspetos, a Hungria serviu de campo de ensaio para a reação catastrófica da UE à crise da zona euro, alguns anos mais tarde.
O FMI insistiu para que o governo contraísse um empréstimo significativamente maior do que o planeado inicialmente, o que aumentou a dependência do país em relação aos credores internacionais e agravou o seu endividamento global - precisamente o problema que o resgate supostamente pretendia corrigir. A situação também se agravou com a recusa do BCE em aceitar obrigações húngaras como garantia de um empréstimo de 5 mil milhões de euros, o que, na prática, excluiu o país dos mercados de obrigações soberanas e obrigou-o a recorrer ainda mais às suas já esgotadas reservas em euros. A Comissão, no entanto, emergiu como o decisor mais agressivo do trio, exigindo retificações imediatas ao orçamento, estabelecendo um objetivo rígido de 3% para o défice em 2010/11 e exigindo uma reforma das pensões mais radical do que a solicitada pelo FMI.
Este processo foi ainda mais aprofundado naquilo que veio a ser conhecido como a Iniciativa de Viena, que reuniu os governos da Europa de Leste, a Comissão, o FMI, o BERD e os bancos ocidentais com filiais na região. Em vez de disciplinar os operadores cujos empréstimos predatórios tinham conduzido ao “momento subprime ”, o acordo salvou-os na prática. Em troca da promessa dos bancos de não se retirarem da Europa de Leste, os governos nacionais comprometeram-se a implementar mais austeridade. Como tal, o acordo foi pioneiro numa forma de governação orçamental conjunta de vários países da Europa de Leste por parte dos bancos ocidentais, das instituições da UE e do FMI.
As condições associadas a estes vários resgates e intervenções incluíam cortes maciços nas pensões e nos salários dos húngaros. No lugar do desonrado Gyurcsány, uma administração “tecnocrática” liderada por Gordon Bajnai continuou a dar prioridade à contenção do défice e da dívida pública. Os seus esforços foram um fracasso, mesmo nos seus próprios termos, uma vez que a economia continuou a contrair-se ao longo de 2009. No meio de uma recessão global, as exportações caíram quase 20% e a dívida pública continuou a aumentar. Estas medidas deixaram a sociedade húngara mais pobre, mais dividida e mais desigual do que em qualquer outro momento desde 1989, mas os decisores em Bruxelas e Frankfurt consideraram-nas um sucesso.
O regresso de Orbán
O partido Fidesz de Viktor Orbán não esteve inativo durante estes anos de crise. O partido tinha reconstruído lentamente a sua base enquanto estava na oposição, dando voz às queixas dos endividados em moeda estrangeira e de uma classe média ansiosa, ao mesmo tempo que construía alianças com segmentos do capital nacional que se sentiam excluídos do modelo de crescimento do país impulsionado pelo FMI. O primeiro mandato de Orbán não se tinha caracterizado por qualquer desvio significativo do caminho da europeização, mas o cenário político em que conseguiu uma maioria de dois terços em 2010 era muito diferente. Tornar-se-ia o palco perfeito para a construção do seu “Estado iliberal”.
Poucos anos depois de ter retomado o poder, Orbán foi, em muitos aspetos, mais longe no desafio à ortodoxia neoliberal do que a maioria dos governos de esquerda de que há memória recente. Em 2011, recusou publicamente qualquer cooperação com o FMI e apelou a uma “luta pela liberdade económica”. A partir de 2013, o seu governo trabalhou de mãos dadas com um Banco Nacional Húngaro repolitizado, permitindo-lhe um grau de margem de manobra económica abandonado pela maioria das administrações. Rompendo com décadas de tradição, o recém-empossado governador do banco central estabeleceu taxas de juro de zero por cento para impulsionar o investimento interno. A dívida soberana foi drasticamente reduzida e (re)domesticada. Grande parte dos setores da energia, das telecomunicações e da banca foi nacionalizada. Foram cobrados impostos especiais sobre os bancos, tendo estes sido obrigados a aceitar um acordo de taxa fixa com muitos devedores em moeda estrangeira. Alguns anos mais tarde, no auge da crise da Covid, o governo quebrou outro tabu, introduzindo controlos de preços para certos produtos-chave - tudo isto mantendo um crescimento estável, um elevado nível de emprego e facilitando a ascensão de classes médias e altas politicamente favoráveis.
Ao romper com elementos-chave da doutrina neoliberal, o regime mostrou, sem dúvida, à esquerda europeia que é possível tomar medidas políticas ousadas e desafiar os ditames da UE. Também deu um exemplo precoce daquilo que tem sido anunciado como “o regresso do Estado” na sequência da pandemia de Covid. Dito isto, o recurso do regime de Orbán à intervenção do Estado e à renacionalização não está ao serviço de uma visão igualitária ou redistributiva - quando muito, constitui um aviso de que estes meios aparentemente progressistas podem ser utilizados para fins muito reacionários.
O PIB da Hungria pode ter aumentado de forma constante, mas o crescimento tem sido cada vez mais dissociado do bem-estar social e a mobilidade social continua a ser assustadoramente baixa. A esperança de vida continua a ser a mais baixa dos países de Visegrád [Hungria, Polónia, Chequia e Eslováquia]. A despesa pública com a educação e os cuidados de saúde tem vindo a diminuir constantemente, enquanto as inscrições no ensino superior caíram quase 20 pontos durante o seu mandato. Facilitada por uma taxa de imposto fixa de 15% e pelo IVA mais elevado da Europa (27%), uma forma de “redistribuição perversa” tem desviado persistentemente a riqueza para cima. Mesmo as políticas “pró-família” do Governo, muito publicitadas, favoreceram, de facto, os rendimentos médios e elevados em detrimento das famílias da classe trabalhadora.
O “retrocesso democrático” do país tem sido exaustivamente documentado - o controlo hegemónico do governo sobre os meios de comunicação social, a apropriação sistemática das instituições de ensino a todos os níveis, um sistema judicial complacente e o quase completo entrelaçamento entre o partido e o Estado conduziram a uma forma de democracia controlada em que cada vez mais setores do governo são afastados da supervisão e do controlo públicos. Muito se tem escrito também sobre a eterna instigação das guerras culturais por parte de Orbán, sobre o incessante discurso de ódio proferido por figuras pró-governamentais e sobre os efeitos muito reais que estes têm na esfera pública, nas minorias sociais e nos opositores políticos.
Desde 2015, uma retórica anti-UE cada vez mais beligerante desempenha um papel central na estratégia de Orbán. As instituições europeias podem ter expressado regularmente preocupações e dúvidas, mas a resposta geral tem sido hesitante e ineficaz. Mais importante ainda, a própria arquitetura da UE tem desempenhado um papel fundamental na viabilização do regime.
Um parceiro fiável
A muito publicitada rutura de Orbán com o FMI - bem como algumas das medidas “menos ortodoxas” dos seus governos - pode ter causado alarme em Bruxelas, mas o líder húngaro provou ser um parceiro fiável no que diz respeito à política orçamental e económica da UE durante grande parte da década de 2010. Tendo incluído um travão da dívida obrigatório na sua Constituição de 2011, apoiou o Pacto Orçamental de 2012 da UE, que constitucionalizou ainda mais a austeridade. A nível interno, a Lei de Estabilidade Económica do governo impôs a disciplina orçamental à governação municipal, reforçando o controlo governamental e a elaboração de políticas neoliberais.
Durante anos marcados pela constante turbulência no Sul da Europa e pelo impasse de 2015 com o governo do Syriza na Grécia, a Hungria apareceu como um destino seguro para o investimento. A reforma e a modernização dos serviços de cobrança de impostos reforçaram a credibilidade de Orbán aos olhos dos investidores em títulos da dívida e de Bruxelas. De facto, desde 2013, as obrigações húngaras têm sido vendidas com sucesso, a intervalos regulares, nos mercados internacionais.
Os primeiros anos de Orbán no poder beneficiaram de uma conjuntura mundial mais favorável, da flexibilização quantitativa da política monetária e de um aumento do investimento industrial. Mas o seu projeto económico também tem sido altamente dependente da entrada direta de fundos da UE, que só começaram a chegar ao país de forma significativa a partir de 2010.
Constituindo cerca de 4% do PIB total, alimentaram o boom da habitação e da construção civil, criado pelo Governo. Distribuídos com pouca supervisão, também permitiram ao partido no poder centralizar e verticalizar o poder: para além do compadrio e da corrupção generalizados, as relações verticais de dependência foram institucionalizadas a todos os níveis. Este facto é particularmente evidente nas pequenas cidades e aldeias, onde os potentados locais do Fidesz utilizaram o afluxo maciço de pagamentos do Programa de Desenvolvimento Rural (PDR) para consolidar o seu poder. A centralidade dos fundos da UE para a sobrevivência do regime foi sublinhada quando grandes montantes de fundos de coesão foram congelados no âmbito das disputas em curso entre Budapeste e Bruxelas sobre o Estado de direito: a taxa de câmbio do florim deteriorou-se rapidamente, os projetos de construção foram interrompidos em todo o país e o governo foi forçado a contrair empréstimos a taxas altamente desfavoráveis no mercado internacional, aumentando constantemente a dívida soberana que tanto se orgulhava de reduzir.
A ligação alemã
Durante a última década, Orbán apresentou-se como o defensor implacável dos interesses nacionais e das fronteiras da Europa “branca” contra as sombrias cabalas globalistas de refugiados, homossexuais e belicistas. Mas o seu sucesso não se deveu apenas a manobras internas habilidosas e a fundos da UE.
Apesar de toda a conversa sobre soberania nacional, os seus governos foram responsáveis por um aprofundamento da integração dependente do país nas cadeias de abastecimento globais, estabelecendo de facto um sistema de dois níveis: por um lado, a intervenção estatal em setores com pouco valor de exportação, como a banca, as telecomunicações e a energia, facilitou a ascensão de uma classe capitalista nacional profundamente ligada ao governo. Por outro lado, o regime facilitou e lucrou com a expansão da indústria transformadora (predominantemente alemã) para a região durante a década de 2010.
Assim, a tolerância da UE em relação à Hungria não pode ser separada dos laços profundos do governo com a indústria alemã, cujos interesses são defendidos pelos democratas-cristãos e pela União Social-Cristã (CDU/CSU) e, por extensão, pelo Partido Popular Europeu (PPE), o maior e mais poderoso grupo do Parlamento Europeu.
Confrontada com a concorrência crescente, predominantemente da Ásia Oriental, a indústria automóvel alemã prosseguiu uma estratégia agressiva de deslocalização para a Europa de Leste ao longo da última década. Governos locais maleáveis, subsídios, baixos custos de mão de obra e a presença conveniente de fundos da UE destinados ao desenvolvimento de infra-estruturas locais permitiram um aumento significativo da produção local.
O exemplo da Audi é revelador: falando em junho de 2020 numa fábrica na cidade húngara ocidental de Győr, Orbán chamou à fábrica “o orgulho da indústria húngara” e garantiu que esta permaneceria aberta durante toda a pandemia, mesmo quando foram impostos confinamentos rigorosos em todo o país. Na altura em que fez este anúncio, os sucessivos governos já tinham concedido subsídios diretos consideráveis à Audi em seis ocasiões. A fábrica foi fundada em 1998, mas aumentou significativamente a produção desde o regresso de Orbán ao poder, produzindo o seu carro número 2 milhões com grande pompa e circunstância em 2023. Os subsídios diretos não surgiram do nada: com 9%, a taxa de imposto sobre as empresas húngara é a mais baixa da UE. Com os subsídios e as várias formas de apoio do Governo, a taxa efetiva paga por empresas como a Audi aproxima-se dos 3,6%.
Durante a década de 2010, o “orgulho da indústria húngara” gerou 5,7 mil milhões de euros de lucros para a sua sede alemã; 5,4 mil milhões foram desviados do país e pagos diretamente aos seus acionistas, na sua maioria alemães. Apesar de empregar mais de 10.000 trabalhadores, apenas uma fração das centenas de fornecedores da fábrica são efetivamente húngaros. Quando, em 2015, a Volkswagen, empresa-mãe da Audi, foi confrontada com um escândalo de emissões de gasóleo, verificou-se que muitos dos motores defeituosos tinham sido produzidos na Hungria. Nos meses seguintes, o Governo húngaro esforçou-se por proteger a empresa a nível europeu. Os grandes fabricantes de automóveis alemães gabaram-se do seu acesso direto ao primeiro-ministro húngaro. A Hungria, por sua vez, emergiu como um dos maiores clientes da indústria de defesa alemã nos últimos anos - muitas das armas ostentadas pelas patrulhas do exército húngaro durante a aplicação do rigoroso confinamento devido à Covid-19 em 2020 e 2021 eram de origem alemã.
A crescente integração da Hungria nestas cadeias de produção industrial alterou profundamente as relações e as leis laborais no país. Nos últimos 15 anos, o número de trabalhadores contratados por agências de trabalho temporário quintuplicou. Tornou-se quase impossível para os trabalhadores do setor público fazer greve. A “lei dos escravos” de 2018 permite até 400 horas extraordinárias e até três anos de atraso no pagamento dos salários. Estas alterações não são sui generis - são o resultado de um quadro global criado e viabilizado pela UE, que serve a economia alemã orientada para a exportação e na qual países como a Hungria servem principalmente como locais de fabrico baratos e descartáveis e como fornecedores de uma força de trabalho móvel e flexível.
Uma nova fronteira para as indústrias “verdes"
Apesar das suas afirmações inflamadas e da sua reputação na cena mundial, Orbán tem enfrentado recentemente uma situação interna cada vez mais difícil. A insatisfação generalizada traduziu-se no aparecimento de Péter Magyar, um antigo membro do Fidesz, cujo novo partido TISZA obteve quase 30 por cento dos votos nas eleições europeias de junho de 2024.
As dificuldades de Orbán, tal como os seus anteriores êxitos, têm em grande parte raízes económicas. Desde o início da pandemia, o congelamento gradual dos fundos da UE por parte de Bruxelas pôs em risco o modelo de crescimento húngaro. A emigração contínua pôs em perigo a estabilidade demográfica, enquanto a falta de investimento nos cuidados de saúde, nas infra-estruturas básicas e na educação alimentou o crescente descontentamento interno. A partir de 2022, o banco central húngaro aumentou drasticamente as taxas de juro, o governo reduziu grande parte das suas políticas “pró- natalidade” e reduziu substancialmente o regime de apoio aos agregados familiares que tinha sido a sua medida mais popular. A inflação ficou fora de controlo, atingindo sobretudo os produtos alimentares e os bens de primeira necessidade.
Mas as mudanças nos padrões de investimento da UE e mundiais, a implementação do Pacto Ecológico Europeu e o surgimento de enquadramentos industriais para a “transição verde” permitiram à Hungria avançar para um novo ciclo de acumulação. Em 2024, o país já era o segundo maior produtor europeu de baterias eléctricas.
Como a maioria das mudanças na história da Hungria desde 1989, esta última reviravolta também foi impulsionada por forças externas: o Green Deal da UE e a ascensão dos fabricantes de baterias eléctricas da Ásia Oriental. O que é apregoado como a política ambiental emblemática da UE continua a ser, de facto, um mecanismo de mitigação de riscos que fornece indicadores de preços em vez de uma estratégia industrial coordenada. A externalização das decisões de investimento para agentes privados significou, de facto, que os fundos da UE destinados à transição ecológica permitiram que as empresas transnacionais aproveitassem ainda mais a integração europeia em seu benefício.
O Governo húngaro também procurou tirar partido desta situação, apostando simultaneamente nas suas relações com os parceiros do Leste asiático e na fraqueza estratégica da UE - e nos subsídios. Em poucos anos, surgiram em todo o país fábricas de baterias eléctricas construídas quase exclusivamente por empresas do Leste asiático. Este desenvolvimento ocorreu, em grande parte, fora do âmbito oficial dos fundos do Green Deal da UE, mas as empresas transformadoras ocidentais lucraram bastante com ele - tal como as suas fábricas húngaras lucraram com o gás russo subsidiado ou com as recentes instalações fotovoltaicas construídas na China. Por sua vez, as empresas europeias estão a tentar recuperar o atraso, com numerosos investimentos planeados em toda a Hungria, impulsionados por fundos da UE.
A realidade destas fábricas de baterias revela a verdadeira face da “transição” europeia orientada para o mercado. Criadas sem consultar as comunidades locais e envoltas em secretismo por contratos governamentais que as designam como projetos de “interesse nacional”, demonstrou-se que causam danos significativos ao solo e à água locais. As condições de trabalho têm sido descritas como penosas, com acidentes de trabalho - e mesmo mortes - a serem uma ocorrência regular. A mão de obra é cada vez mais composta por trabalhadores do Sul Global com contratos a prazo, o que torna a organização do trabalho - ou mesmo a fiscalização - particularmente difícil. Tal como acontece com o fabrico tradicional de automóveis, os lucros não são redistribuídos localmente, nem este desenvolvimento contribuiu para uma melhoria da posição da Hungria nas cadeias de valor. Os resultados das políticas verdes da UE tiveram, assim, um triplo efeito no país: agravamento das condições de trabalho, poluição dos aquíferos e dos solos e reforço do poder de Orbán.
Um pequeno país com um grande modelo
Duas décadas após a adesão da Hungria à UE, o apoio interno à adesão continua a ser elevado. Os partidos da oposição tentam provar as suas credenciais “pró-europeias” e comprometem-se a introduzir o euro o mais rapidamente possível. No entanto, o país não assinalou de forma relevante o vigésimo aniversário da sua adesão, o que reflecte um mal-estar mais profundo relativamente à forma como a integração se desenrolou. Mesmo os comentadores mais pró-UE notaram com alguma amargura o contraste chocante entre as expectativas de 2004 e a realidade atual - afinal, foram poucos os húngaros que acabaram por abrir pastelarias em Viena.
Mas se a integração europeia não correspondeu às expectativas dos húngaros, a subsequente ascensão de Viktor Orbán ao poder não deve ser vista como o seu inverso. A forma como a integração europeia se desenrolou foi fundamental para a criação da sociedade desigual e propensa a crises que surgiu na Hungria durante a década de 1990. Mais tarde, as instituições da UE desempenharam um papel decisivo na resposta catastrófica à crise económica do final da década de 2000, abrindo caminho para a ascensão sem controlo de Orbán ao poder. Essas mesmas instituições facilitaram o domínio duradouro do seu regime - atualmente, promovem políticas industriais promulgadas em nome da transição verde que reforçam as desigualdades estruturais, a visão de curto prazo e a centralização do poder e do lucro numa pequena elite.
A trajetória da Hungria não pode, evidentemente, ser atribuída apenas a Bruxelas - o fracasso de Janez Janša, na Eslovénia, ou do partido Lei e Justiça (PIS), na Polónia, em estabelecer regimes semelhantes sublinha as especificidades do caso húngaro. Mas isso não significa que Orbán deva ser tratado como uma exceção. O seu governo forneceu um modelo de governação “iliberal” em todo o mundo - de facto, a periferia começou a reestruturar o centro.
Desde 2015, o seu regime tem desempenhado um papel decisivo na mudança de posição da UE relativamente aos refugiados e à migração, normalizando a elevação do discurso de ódio ao nível da política. No que diz respeito à economia, provou que a intervenção do Estado pode ser exercida de forma estratégica, deixando intocado o núcleo da governação neoliberal. Entretanto, a condenação por Bruxelas da aliança de Orbán com autocratas tem pouca credibilidade, tendo em conta as parcerias da UE com Aliyev, do Azerbaijão, ou com o ditador egípcio el-Sisi, enquanto os apelos à liberdade de expressão na Hungria expõem cada vez mais os seus próprios dois pesos e duas medidas, tendo em conta a repressão das vozes pró-palestinianas em toda a Europa. Mesmo a sua classificação como uma exceção de extrema-direita perde credibilidade, dada a nova aceitação de Giorgia Meloni.
Que lições retirar do exemplo de Orbán? A sua ascensão pode ter sido facilitada pela UE, mas também contém ensinamentos valiosos para a esquerda. Afinal, o seu sucesso é também um sintoma do fracasso da esquerda em oferecer uma alternativa ao neoliberalismo globalizado, em articular uma visão coerente para sair da crise financeira de 2007/08 e, em última análise, em oferecer um projeto político viável capaz de exercer o poder ao nível do Estado-nação sem perder de vista um horizonte internacionalista.
É essencial compreender o papel prejudicial desempenhado pelas instituições europeias na nossa situação atual - mas isso não significa que romper com elas traga uma solução imediata ou desejável. Ironicamente, para derrotar Orbán e traçar um caminho diferente para a Hungria e para a Europa, será necessário aprender com ele - porque, melhor do que a maioria dos governos de centro-esquerda das últimas décadas, ele compreendeu como usar o Estado para implementar políticas nos seus próprios termos e desafiar elementos centrais da ortodoxia da UE. Qualquer futuro projeto de esquerda não terá outra alternativa senão fazer o mesmo.
Áron Rossman-Kiss é um investigador, artista e ativista de Szikra, um movimento político de esquerda ecológica na Hungria, que vive em Budapeste. Artigo publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.