Mulheres

Desigualdade, discriminação e assédio no desporto

por

Esmeralda Susana

17 de julho 2024 - 11:12
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Está na altura do setor feminino ter uma maior visibilidade que permita acabar com os estereótipos antiquados de uma sociedade extremamente machista e conservadora, que induz à limitação da participação e crescimento das atletas femininas no desporto.

Canoagem feminina.
Canoagem feminina. Foto de Esmeralda Silva/Instagram.

Durante décadas, o desporto feminino tem sido palco de lutas constantes por direitos e visibilidade. Tem havido progressos mas há ainda muito a fazer. Sinal positivo é o número de atletas apurados para os Jogos Olímpicos: são 37 mulheres e 36 homens que vão representar Portugal em Paris. No total, são 10.500 atletas a representar, aproximadamente, 206 países participantes, onde 5.250 são mulheres e 5.250 são homens. No entanto, além do nosso esforço como atletas, temos de manter a par uma luta persistente por credibilidade e valorização da prática desportiva das mulheres, enfrentando situações de preconceito, discriminação, assédio e outras violências sexistas, como comportamentos indesejados de caráter sexual sob a forma verbal, não-verbal ou física.

Está na altura do setor feminino ter uma maior visibilidade que permita acabar com os estereótipos antiquados de uma sociedade extremamente machista e conservadora, que induz à limitação da participação e crescimento das atletas femininas no desporto.

Por falta de medidas práticas e concretas adotadas por parte das organizações, instituições, e da política, muitas dessas atletas não têm o apoio e a coragem necessários para exercer as suas potencialidades e, também, denunciar casos de comentários inapropriados, toques indesejados, discriminação e falta de reconhecimento a que são sujeitas por parte de profissionais, como treinadores, dirigentes, fisioterapeutas, árbitros, e/ou até mesmo atletas do sexo masculino.

Em várias modalidades, principalmente nas equipas femininas, surgem casos de atletas que foram vítimas de algum tipo de assédio, abuso e desmoralização durante a sua carreira desportiva. Mesmo quando não são vítimas diretamente, o facto de presenciarem estas situações cria um contexto de medo e prejudica as atletas. Contudo, como já o disse anteriormente, é muito difícil para as vítimas, e mesmo para as outras atletas, denunciar estes casos.

Em 2019, conheci uma rapariga de 16 anos empolgada por conhecer o novo treinador, de nacionalidade não portuguesa, conhecido por já ter treinado e liderado a equipa nacional do seu país de origem. O profissional ia assinar contrato pelo clube onde a rapariga treinava na altura. Foi o treinador principal desse clube até meados de 2022, até ser banido pela direção, por comportamentos inadequados na formação dos atletas.

A atleta, inicialmente mostrava-se contente, apoiada e motivada pelo mesmo. Quando fez 17 anos, foi convidada pelo próprio clube e pelo treinador a exercer como treinadora adjunta, conjugando os próprios treinos e as competições com a formação dos restantes atletas. Ela aceitou.

Tudo lhe corria bem, até ser abordada de uma forma um pouco incomum pelo treinador. Começou com abraços de demonstração de carinho e afeto por parte dele, alegando que a jovem era especial e se distinguia dos restantes atletas do clube. Chegou mesmo a dizer que a jovem poderia vir a ser a melhor atleta e treinadora a nível nacional, se confiasse nele.

Ela estava a evoluir bastante o seu rendimento e a fazer grandes progressos nos treinos e competições. Sentiu que talvez confiando no profissionalismo e na dedicação dele, poderia alcançar os resultados que o mesmo lhe prometera.

Contudo, o treinador um dia pediu à atleta que aguardasse por ele no final do treino, para que pudessem falar sobre a evolução dela e como iam fazer para conseguir continuar a conciliar a formação dos restantes. Deu-lhe o típico abraço, mas dessa vez por trás. Enquanto elogiava o treino e a aparência física da jovem, comparando-a com as outras atletas do clube, aproximou-se da orelha dela e sussurrou-lhe “que ganas tenho de comer-te / ter-te dentro de mim, coração”. Ela sentiu-se completamente desconfortável e entrou em choque. Afastou-se dele, agradeceu as palavras, e foi embora para casa.

Após este episódio, enquanto treinava os escalões mais novos, foi abordada pelo treinador de forma agressiva. Este dirigiu-se à rapariga aos gritos e aos palavrões, e injuriou-a em frente dos restantes atletas e respetivos pais. Ela começou a afastar-se de todos e a desmotivação estava a apoderar-se dela. Ele mandou-lhe uma mensagem de pedido de desculpas. Ela tentou compreender o porquê da atitude dele. Ele disse-lhe que se sentia sozinho e sentia falta de carinho por estar longe da família. Ela compreendeu e prometeu empenhar-se mais para o deixar orgulhoso.

Os abraços e os sussurros voltaram. Mas desta vez, com beijos no pescoço, pregas em zonas específicas – ancas, pernas e rabo – e massagens nas costas e pernas. Ela com receio dele se exaltar e a envergonhar perante o clube, fingia que aquilo eram atos normais de um treinador empenhado pelo sucesso de uma atleta. Estes episódios tornaram-se mais frequentes, e sempre que a atleta se afastava ou fugia dele, ele dirigia-se de forma agressiva e aos berros à frente de todos.

No último ano dele como treinador, após três anos de um silêncio angustiante, o treinador avançou ainda mais na agressão à atleta que agora tinha 20 anos. O treinador fez-lhe pregas na zona abdominal e foi subindo as mãos por dentro da roupa dela até chegar aos peitos e assediou-a, massajando-lhe os mamilos. Depois fez-lhe perguntas inapropriadas. Perguntou-lhe sobre a sua sexualidade e se ela ainda era virgem. Ela não reagia, não sabia como reagir ao que estava a acontecer. Ele continuou e enquanto uma mão massajava o peito, a outra ia descendo, enquanto dizia que o ato sexual era algo que acontecia naturalmente e esses impulsos não se conseguiam controlar. Quando a mão tocou nas cuecas dela, ela afastou-o e foi para casa.

Ela não voltou ao clube e disse a uma atleta que lhe era muito próxima que enquanto o treinador estivesse no clube, ela nunca mais voltava. O treinador acabou por ir embora por outras razões. Após a direção analisar outras atitudes censuráveis do treinador, a agressividade dele e o tom que tinha para com os atletas, expulsou-o.

No entanto, a atleta que tinha saído por questões não justificadas (ela não contou o que a levou a sair do clube e a tomar aquela decisão) acabou por ser acusada por outras pessoas como tendo responsabilidade na saída do treinador. A maioria dos pais e atletas culparam-na, considerando que o treinador não merecia aquele desfecho por parte da direção do clube.

Esta atleta pediu anonimato quando deu o testemunho e admitiu que não conseguiu expor tudo o que lhe tinha acontecido durante esses três anos, por ainda sentir vergonha e desconforto ao relembrar aquilo a que foi submetida. Só o contou a duas pessoas próximas, recentemente.

Não se pode permitir que jovens e mulheres desportistas se calem e continuem pouco recetivas a denunciarem estes casos. É crucial dar-lhes apoio e mostrar-lhes que não estão sozinhas. É preciso reconhecer que o desporto tem que ser justo e honesto para todas e para todos.

As mulheres têm o mesmo direito a que lhes sejam proporcionadas oportunidades de crescimento, segurança e credibilidade, e progressivamente, possam atingir a plenitude das suas capacidades, sem serem desvalorizadas.

Além de combater o assédio e a discriminação, é importante haver um maior investimento no setor feminino e acabar com a atual discrepância de inclusão e apoios entre géneros, para que assim haja um maior compromisso com a visibilidade, igualdade e a inclusão no desporto.

Para contrariar esta tendência é importante que haja uma maior aposta na dinamização e divulgação das modalidades, nas apostas de participação e critérios de majoração juntos dos órgãos de comunicação social. É também fundamental que a comunicação social promova a igualdade de género no desporto e pare de dar ênfase desproporcional à prática desportiva e às conquistas por homens em detrimento das mulheres.

Exigimos igualdade de género no desporto!

Esmeralda Susana, atleta de canoagem.