Na primeira parte deste texto, percorro algumas iniciativas organizadas pelo movimento feminista internacional, as quais contribuíram para que este crescesse e se afirmasse como polo organizador e dinamizador de milhares de mulheres em defesa e à conquista de direitos. Na segunda parte, abordo alguns debates que este novo sujeito político instaurou, na perspetiva de que da compreensão do que está em causa possa surgir uma opinião mais informada, capaz de responder aos ataques e contribuir para a afirmação do feminismo anticapitalista.
UM RETRATO
Nos últimos anos, as mulheres têm sido motor do movimento de resistência global ao avanço do fascismo e do conservadorismo. O movimento feminista tem sido o espaço de resistência e resposta à proliferação do discurso do ódio. Tem sido, além do mais, capaz de se articular internacionalmente, ora em atos de solidariedade, ora em propostas e iniciativas comuns.
A Marcha das Mulheres foi uma gigantesca manifestação que ocupou as ruas de Washington (e de mais 400 cidades dos Estados Unidos) em janeiro de 2017, um dia após a tomada de posse de Donald Trump. Foi replicada em cerca de 200 cidades do mundo, que se uniram solidariamente ao protesto das norte-americanas. A certeza de que esta eleição inaugurava uma nova era de recrudescimento do conservadorismo e da misoginia exigia uma resposta capaz de vencer o medo e enfrentar o monstro. Também nos Estados Unidos surgiu o movimento #MeToo, determinante para colocar a discussão do assédio sexual como violência na ordem do dia.
No Estado Espanhol, as manifestações La Manada Somos Nosotras, no final de 2017, marcam a tomada das ruas pelas mulheres em luta contra a justiça patriarcal. Em causa estava a violação de uma jovem por um grupo de cinco homens, que, agindo em grupo, a forçaram a sexo oral, vaginal e anal, e o confronto com uma legislação que reconhecia o crime praticado como abuso sexual e não como violação. As ruas foram inundadas por milhares de mulheres com as palavras de ordem “Yo te creo”, “No es no”, “No es abuso, es violación”, fazendo o contraponto ao que se passava no tribunal. Entre o PSOE e o Podemos chegou-se a acordo para mudar a lei, para que esta passe a considerar que todas as condutas sexuais sem consentimento sejam consideradas agressões sexuais, eliminando a distinção entre abuso e agressão sexual, mas a lei ainda não foi submetida ao parlamento, não havendo garantia de que haja maioria para a aprovar, dada a resistência dos partidos à direita. Em resultado também das mobilizações que puseram a nu a justiça patriarcal praticada nos tribunais portugueses, por cá, recentemente, propostas para uma lei no mesmo sentido foram apresentadas pelo BE e pelo PAN, tendo, no entanto, baixado à comissão parlamentar de especialidade, sem votação na fase de generalidade. Indo ao encontro da Convenção de Istambul, o consentimento prefigura- -se como palavra-chave na tipificação dos crimes sexuais. Os acórdãos “Neto de Moura” e da “sedução mútua” – o primeiro invocava a Bíblia e o adultério de uma mulher como atenuantes para a violenta agressão de que foi vítima e o segundo invocava a existência de “sedução mútua” e “mediana ilicitude” num caso de uma dupla violação de uma jovem inconsciente – são exemplos de como os tribunais podem ser elementos dissuasores de denúncia, já que, não poucas vezes, se revelam como espaços onde a palavra das vítimas é desvalorizada, a responsabilidade (ou parte dela) pelas violências sofridas lhes é imputada, por meio de juízos morais e preconceitos sobre os seus comportamentos, e não como espaços de proteção e garantia de justiça. No entanto, se modificar as leis é importante, boas leis não garantem que as mentalidades e os comportamentos se alterem. As propostas para combater a justiça machista têm, pois, de ser mais exigentes e abrangentes. As leis, por melhores que sejam – e é muito importante haver boas leis –, não garantem a justiça, porque quem as aplica não só não está imune ao machismo, como muitas vezes é seu agente consciente. Por isso é tão importante um outro nível de compromisso, que vá além das mudanças legislativas, um compromisso que assuma a responsabilidade do debate sobre a justiça machista e encontre medidas para a combater – da formação dos magistrados ao escrutínio democrático dos tribunais.
Chiara Páez, uma jovem argentina de 14 anos, estava grávida quando desapareceu em maio de 2015. O seu corpo foi encontrado dias depois enterrado no jardim da casa do seu namorado, então com 16 anos. Chiara tinha sido morta à paulada e a autópsia revelou a presença no sangue de um medicamento abortivo. O seu assassinato desencadeou uma mobilização sem precedentes contra a violência machista: nascia o movimento Ni Una Menos e mais de um milhão de pessoas, maioritariamente mulheres, respondeu à sua convocatória e marchou entoando “Basta de matarnos. Ni una menos. Vivas nos queremos”. O combate aos femicídios foi colocado na agenda política e, pela primeira vez, por pressão do movimento, o Estado divulgou estatísticas e reforçou as medidas de prevenção e apoio às vítimas. Desde 2015 que a cada 3 de junho se marcha na Argentina contra todas as formas de violência contra as mulheres. E o problema é de tal forma sistémico que as gigantescas marchas Ni Una Menos cruzaram fronteiras e são replicadas em diferentes países da América Latina (Chile, Uruguai, Equador, Bolívia, Perú, entre outros), a região mais letal do mundo para as mulheres, excetuando as zonas em guerra, segundo a ONU. As reivindicações do Ni Una Menos foram-se ampliando, e o que começou como um movimento contra os femicídios acabou por acolher outras críticas ao sistema patriarcal e também ao sistema capitalista e ao modelo neoliberal. Em 2018, a marcha Ni Una Menos foi uma imensa maré verde, a cor que identificava a campanha pelo “aborto legal no hospital”, como se dizia numa palavra de ordem. A 14 de junho de 2018, a lei de descriminalização do aborto a pedido da mulher, até às 14 semanas, foi aprovada pela Câmara dos Deputados (129 votos a favor, 125 contra), no entanto, acabaria por ser chumbada pelo Senado a 9 de agosto (38 votos contra, 31 a favor, duas abstenções). Nas ruas, milhares de mulheres resistiam e defendiam os direitos a não morrer e à maternidade como escolha.
A Greve Feminista de 8 de Março é uma proposta do movimento feminista internacional, que convoca uma greve de mulheres como forma de protesto face às situações de precariedade e violência que invadem as suas vidas. Tem a sua origem na mobilização de milhares de mulheres, que em outubro de 2016 tomaram as ruas da Polónia para protestar contra uma nova lei que pretendia proibir o aborto em qualquer circunstância. Inspiradas na greve das mulheres da Islândia em 1975, fizeram greve ao trabalho remunerado, aos estudos e às tarefas domésticas. Venceram. Dias depois, o protesto chegava à Argentina: o Ni Una Menos convocou a primeira greve de mulheres, repudiando mais um femicídio - Lucía Pérez, 16 anos, violada e assassinada. Estes apelos à mobilização espalharam-se como um rastilho de pólvora por vários países e, em 2017, a convocatória passou a abranger todo o planeta. O seu âmbito internacional tem precisamente que ver com o reconhecimento do caráter estrutural dos problemas que as mulheres enfrentam, as manifestações de opressão derivadas do capitalismo e a sua vinculação com o patriarcado. Em Portugal, a Greve está a ser construída em torno de quatro eixos principais: greve ao trabalho remunerado, ao trabalho doméstico e à prestação de cuidados, ao consumo e estudantil. Um dos desafios da Greve é precisamente o da reconfiguração do conceito de trabalho, para que ele reconheça e integre também a experiência das mulheres, daí a importância e o simbolismo da escolha da palavra Greve. Em Portugal, no trabalho assalariado, as mulheres, em média, ganham menos 15.8%, o que significa que trabalham cerca de 58 dias gratuitamente, sendo também a maioria das pessoas que ganha o salário mínimo. A esta desigualdade soma-se o trabalho doméstico, não remunerado, invisibilizado e desvalorizado, e a prestação de cuidados, sendo a esmagadora maioria dos cuidadores informais mulheres. Muitas desenvolvem a sua atividade no sector informal, sem contrato e sem direitos. É, pois, uma proposta que lança o desafio de olhar para o quotidiano das mulheres, de modo a que se perceba que a sua exploração beneficia, de uma forma geral, os homens, mas beneficia sobretudo o Estado, que se demite das suas responsabilidades sociais à custa do aumento da jornada de trabalho feminino.
Savita Halappanavar, grávida de 17 semanas, dirigiu-se ao hospital universitário de Galway, Irlanda, em outubro de 2012, com dores intensas. O aborto era inevitável, mas os médicos não o quiseram induzir, apesar dos pedidos de Savita, justificando-se com a proibição imposta pela Oitava Emenda Constitucional. Três dias depois, chegou a infeção e o aborto espontâneo. Sete dias depois de ter entrado no hospital, Savita morria. A Irlanda tinha uma lei que equiparava o feto à mulher grávida, o que fazia com que o aborto fosse proibido em quase todas as situações – violação, malformação fetal, etc. -, sendo apenas permitido se o prosseguimento da gravidez representasse grave risco para a grávida. A morte trágica de Savita marcou a viragem na perceção pública da lei. A 25 de maio de 2018, a Oitava Emenda foi rasgada em mil pedacinhos: no referendo sobre o aborto, 66.4% votou pela mudança da lei. Nascia a Trigésima Sexta Emenda e com ela o direito à maternidade como escolha. Hoje, na Irlanda, as mulheres podem interromper a gravidez a seu pedido até às 12 semanas.
Em março de 2018, Marielle Franco foi barbaramente assassinada com nove tiros. A sua vida e o seu corpo eram todo um programa político: mulher em exercício de cargo público, militante de esquerda, favelada, negra, bissexual, feminista. Ousou desafiar as elites, ousou romper todas as fronteiras. Pagou com a vida, transformou-se em semente de resistência. Ainda no Brasil, surgiu o movimento #EleNão, mais um exemplo de como o movimento feminista tem tomado em mãos a responsabilidade do enfrentamento dos fascismos emergentes, revelando-se fundamental na tarefa de vencer o medo e organizar a resposta.
Se só alguns destes enfrentamentos resultaram em vitórias imediatas, todos eles contribuíram para a afirmação das mulheres – e do feminismo – como protagonistas da história, porta-vozes dos seus movimentos e das suas reivindicações. Nada fica igual, os processos põem-nos em articulação umas com outras, potenciam a troca de saberes, experiências e informação, permitem a construção de uma agenda comum, num levantamento global sem precedentes. A palavra de ordem Mexeu com uma, mexeu com todas encerra todo o potencial dessa articulação global, solidária e combativa.
Esta tomada das ruas e da palavra, esta reclamação de que o futuro tem de ser hoje, está a produzir importantes e desafiantes transformações. Já não é possível ignorar a agenda feminista, o que não significa que ela seja considerada. Se, por um lado, reconhecemosos passos que têm sido dados na consagraçãode direitos e percebemos uma certa aberturae escuta interessada do que tem o movimentoa dizer, por outro lado observamos um contra--ataque violentíssimo e sem precedentes. Várias leituras se podem fazer, mas a que me parece mais interessante é a de perceber neste ataque a confirmação de que o feminismo é, de facto, uma ameaça à velha ordem social.
Percorrerei alguns dos debates que atravessam o feminismo e, de uma forma mais ampla, a sociedade, na perspetiva de que a dilucidação dos conceitos, das ideias e suas implicações nos permitem estar mais bem preparadas e preparados para responder aos ataques e, sobretudo, para não fazermos favores às direitas.
OS DEBATES
Políticas identitárias
Quando nos anos 1960-1970 as feministas declararam que “o pessoal é político”, uma pequena revolução aconteceu. O rompimento das fronteiras entre espaços público e privado permitiu perceber a vida das mulheres como um cúmulo de desigualdades. O espaço da intimidade era radiografado e revelava-se como espaço de opressão e exploração. O conceito de patriarcado emergia como ferramenta teórica de análise, permitindo a compreensão de que as raízes da desigualdade não são apenas económicas, são também de estatuto, ou seja, assentam numa conceção das mulheres como subalternas.
Esta perspetiva desafiou não apenas o movimento operário, mas a esquerda como um todo. Descobria-se a classe trabalhadora também como espaço de desigualdades – económicas e de estatuto –, e por isso era necessário repensá-la, para que as suas propostas representassem essa diversidade. No espaço privado as mulheres acumulavam trabalho – gratuito, desvalorizado e invisibilizado –, a que se somavam as desigualdades no espaço público – da sub-representação política à desigualdade salarial. Tudo isto reclamava medidas concretas capazes de resolver os problemas de um grupo social subordinado, as chamadas políticas identitárias.
Neste debate, uma parte da esquerda acabou por perceber e reconhecer que tinha de responder a esta constelação de desigualdades, cujas raízes são económicas e de estatuto e devem ser percebidas em articulação, construindo uma proposta política abrangente, entendendo os direitos reivindicados não como direitos específicos, mas como parte de direitos que se devem reclamar universais; ao mesmo tempo, outra parte da esquerda continuou ancorada numa visão etapista da transformação social, atirando para um futuro incerto a resolução das desigualdades cuja raiz não é exclusivamente económica.
A resposta violenta da direita extremista mostra--nos que os movimentos feminista, antirracista e LGBT+, com as suas lutas persistentes e as suas conquistas, de facto, alteraram a pachorrenta normalidade anormal, a que impunha uma identidade hegemónica. Porque o reconhecimento e a valorização das identidades subalternizadas é uma prática política revolucionária, a violência da resposta da direita deve ser entendida como o reconhecimento do potencial transformador de que estes movimentos são portadores. É isso que somos chamadas e chamados a defender.
A esquerda é responsável pelo avanço da extrema-direita e do conservadorismo?
Esta ideia costuma surgir em forma de acusação e não como interrogação. É uma acusação partilhada por alguns sectores da esquerda conservadora e pela direita reacionária. Por estranho que pareça, estas alianças não são inéditas, revelando que o conservadorismo não é património exclusivo da direita.
A crítica feita pelos sectores da esquerda conservadora diz que o avanço da extrema--direita é responsabilidade da esquerda, porque esta cedeu às políticas identitárias e abandonou a luta de classes. Nada mais falso, nada mais injusto. Falso porque a esquerda não abandonou a luta de classes, injusto porque radica numa conceção simplista do que é a luta de classes e numa conceção dogmática de classe social.
As diversas versões da extrema-direita que têm florescido têm algo em comum: sexismo, misoginia, racismo, homofobia. Ora, esta também é uma posição identitária, mas, ao contrário daquilo que defendem os movimentos sociais e a esquerda comprometida com a agenda emancipatória, a identidade que pretendem restaurar, terraplanando décadas de lutas e conquistas pelo reconhecimento e valorização da diversidade, é uma outra identidade, uma identidade totalitária. A questão não deixa de ser identitária, a diferença está em que identidades se pretende proteger e que identidades se pretende subjugar.
Qual é, pois, a proposta desta esquerda conservadora? A de que os grupos subalternizados aceitem a desigualdade e se mobilizem em torno de uma identidade que não os reconhece. Nada mais catastrófico. É, pois, estranha e empobrecedora esta forma de pensar a emancipação por etapas. Primeiro, a luta de classes, depois, o resto. Este posicionamento é não apenas ofensivo para quem se situa no lugar da subordinação, como também revelador de uma maneira pobre e equivocada de perceber a luta de classes, o capitalismo e a forma como este se estrutura. O capitalismo é estruturalmente machista e racista, instaura e promove desigualdades, por isso combatê-lo em todas as suas dimensões reclama a articulação entre classe, género e “raça”. Esta articulação é o compromisso mínimo que a esquerda tem de assumir, se quiser ser portadora de uma resposta global e justa. A esquerda tem de responder às questões da redistribuição dos rendimentos, mas também às questões de subalternização e depreciação das minorias sociais e culturais, até porque as desigualdades económicas andam de mão dada com as desigualdades de estatuto. Não é coincidência que a pobreza tenha rosto feminino. Não é coincidência que grande parte do trabalho sem contrato e sem direitos tenha cor e passaporte. A desigualdade salarial, o trabalho sem contrato e sem direitos e o trabalho não reconhecido e não remunerado no presente têm consequências nas reformas e pensões futuras. Só da articulação de todas estas dimensões pode nascer a resposta necessária. Qualquer recuo, qualquer cedência é fazer o jogo da direita reacionária e trair a esperança depositada na proposta socialista.
A esquerda tem cometido erros e o centro colapsou. É tudo verdade, mas não razão suficiente para entendermos as razões por que a extrema-direita se tem reconstruído e reforçado. Quando a esquerda conservadora escolhe ignorar os motivos que permitiram a radicalização da direita – o triunfo e aprofundamento do neoliberalismo, a austeridade, a discricionariedade das políticas da União Europeia, o esvaziamento das soberanias democráticas, por exemplo –, é não só inconsequente, mas também perigosa. Quando, por exemplo, responsabiliza o movimento #EleNão pela vitória de Bolsonaro, revela-se equivocada e reacionária. O fascismo não se combate com silêncio, mas com denúncia e resistência. Vencer o medo, denunciar as propostas conservadoras, mobilizar para o combate foi o papel do #EleNão. Não foi suficiente para vencer Bolsonaro nas urnas? Não, não foi, mas foi e é fermento de resistência. O que a esquerda conservadora precisa de compreender é que do silêncio nada medra.
O discurso anti-identitário anda, pois, de mão dada com a extrema-direita. Não é, aliás, de espantar, que o conceito de “ideologia de género”, cunhado e propagado pela Igreja católica no final do século XX, tenha tão bons e empenhados divulgadores.
Ideologia de género
A expressão “ideologia de género” é, ela sim, uma construção ideológica e uma retórica de grupos fundamentalistas – católicos e evangélicos – e ultraconservadores, que pretendem restaurar a velha ordem social e fazer recuar todos os avanços e conquistas alcançadas pelos movimentos feministas e LGBT+.
De um ponto de vista conceptual, a expressão representa uma tentativa de re-significação assente na menorização e deturpação – consciente e deliberada – de uma teoria – e não ideologia – que, dito de forma breve e simplificada, explica que as desigualdades não são naturais, resultam antes de processos sociais, culturais e económicos que estruturam relações sociais e de poder desiguais, ocupando nelas as mulheres um lugar subalterno e depreciado. No entanto, a teoria de género não nega as diferenças morfossexuais, aquilo que diz é que essa diferença não justifica nem é a raiz da desigualdade. Por essa razão, os seus detratores são tão insistentes nesses dois termos: ideologia, em oposição a teoria, e género, que confundem com sexo biológico.
Do ponto de vista político, a expressão representa um ataque do conservadorismo e do fundamentalismo ao feminismo, que acusam de atacar a família e os valores tradicionais e de ignorar a “sexualidade natural” e as diferenças sexuais que confirmariam e justificariam a dominação masculina. Ou seja, é não só uma retórica, mas também uma práxis de terraplanagem de todas as conquistas dos grupos feministas e LGBT+, em nome da restauração de uma velha ordem desigual e opressora. Olhemos para o que se está a passar na Andaluzia e para a aliança construída entre o Partido Popular e o partido de extrema-direita Vox, porque é uma boa tradução desta retórica levada à prática: da agenda desta negociação fez parte a discussão da revogação das leis do aborto, da violência de género e do casamento entre pessoas do mesmo sexo. A resposta da esquerda tem de ser a mesma do movimento feminista: os direitos não se negoceiam. Ni un paso atrás!
Politicamente correto
A origem da expressão “politicamente correto” é difusa. Nos EUA ela aparece em jornais socialistas da década de 1930, mas só nas décadas de 1960-1970 tem mais presença na linguagem comum. Era usada como uma espécie de brincadeira entre militantes de esquerda, para gozar com quem consideravam demasiado virtuoso ou dogmático. Porém, na década de 1990, um número considerável de jornais começou a usar a expressão para se referir a restrições ao que os estudantes podiam ou não dizer para não ofenderem as mulheres ou as minorias, ou seja, a expressão só ganhou a interpretação que tem hoje quando a direita dela se apropriou e a começou a usar para atacar um conjunto de mudanças culturais, sociais e políticas com as quais não está de acordo. A expressão passa, pois, a ser usada como arma de deslegitimação das mudanças que aconteciam.
Hoje, invocar o politicamente correto como crítica – e acusação – ao que se diz é uma manobra retórica que torna o debate democrático impossível, uma manobra assente na produção de uma dinâmica social que explora sentimentos de exclusão política e económica e procura instaurar o senso comum como regra. A direita populista e a extrema-direita têm feito, com sucesso, da batalha contra o politicamente correto uma das suas linhas de ação, explorando o desconforto das pessoas comuns, que se sentem acossadas pelas críticas a formas coloquiais de expressão que reproduzem estereótipos e discriminações, e procurando acantonar o debate sobre linguagem inclusiva num debate sobre liberdade de expressão. A crítica ao politicamente correto tornou-se uma forma de mascarar o racismo e o sexismo, tornando-se uma arma de combate a direitos e conquistas. Lamentavelmente, muita gente de esquerda os acompanha neste processo.
O ódio ao politicamente correto expressa-se mais pela reação do que pela ação: é a reação de quem se defende daquilo que acredita ser um ataque. E de que ataque se trata? Do ataque aos privilégios que eram entendidos como direitos. Daí que o queixume “já não se pode dizer nada” se tenha tornado um clássico na boca de quem perdeu o privilégio de amesquinhar. Acontece que raramente um machista se assume como machista e anuncia que vai dizer coisas machistas. A sua estratégia consiste precisamente em fazer passar o seu preconceito pelo direito a dizer “verdades inconvenientes”, o direito a falar sem filtros, a expressar-se livremente. Se um trabalhador branco afirma “eu sou politicamente incorreto, por isso digo as verdades e a verdade é que estou desempregado porque as leis protegem os imigrantes e discriminam os nacionais”, qualquer pessoa que ouse corrigi-lo – porque o que diz é falso e baseado em preconceitos - aparecerá aos seus olhos como polícia do discurso, como cerceadora da sua liberdade de expressão. E a direita e a extrema-direita manipulam estes sentimentos equivocados e primários de forma extremamente eficaz, legitimando preconceitos e estereótipos. Acontece que ofender minorias não é um direito, é uma violência inaceitável.
A transformação da linguagem deve, pois, andar a par – e fazer parte – do processo de transformação social, da alteração da relação de forças. Se há um perigo que o politicamente correto, de facto, encerra, é precisamente o da hipocrisia, muito presente, por exemplo, em discursos envernizados, aqueles que, recorrendo à linguagem inclusiva, o fazem por oportunismo e conveniência e não por respaldo das mudanças ocorridas ou em processo.
A dificuldade em aceitar perder privilégios marca tanto a direita quanto a esquerda, parte dela também machista, misógina e homofóbica, e perpassa todas as classes sociais e etnias. Substituir o conhecido pelo desconhecido mexe com questões profundas. Um homem pobre, seja ele branco ou negro, poderia ter na piada sobre “paneleiros” ou “loiras” um salvo-conduto para a afirmação da sua supremacia masculina e heterossexual. O que este homem pobre precisa de compreender é que as mulheres e os homossexuais são precisamente os seus aliados no combate ao sistema que esmaga com o mesmo empenho pobres, negros, homossexuais e mulheres.
É verdade que todas estas transformações precisam de tempo para serem compreendidas e integradas. É verdade que há falhas na forma de comunicar a importância e as razões das alterações propostas, e sobre isso o movimento deve refletir e encontrar uma resposta capaz. No entanto, o ataque ao politicamente correto é a agenda da direita extremista e populista.
Igualdade de género, feminismo e marketing político
A culpa do machismo é das mulheres, porque são elas que educam as crianças. Cá está mais um lugar-comum. As mulheres são vítimas e carrascas de si próprias. Ao invés de serem percebidas como pessoas que vivem e são educadas numa sociedade que as formata para a reprodução social, coloca-se-lhes a culpa, porque isso permite varrer o problema para debaixo do tapete.
Ser feminista é uma escolha, não é património genético das mulheres. Do mesmo modo que há homossexuais homofóbicos, também há mulheres machistas. Ninguém deseja ser vítima, ninguém gosta de se saber o outro, o desigual, sobretudo porque ocupar esse lugar significa estar arredado de uma série de direitos, materiais e simbólicos. Tomar consciência da sua situação subalterna e depreciada e convertê-la em ação é um passo enorme, necessário, mas difícil.
As mulheres não são todas iguais, já o sabemos. Há mulheres de direita, com as quais nada temos em comum, e há homens de esquerda, com os quais temos muito em comum. Significa isto que devemos, por exemplo, rejeitar a política de quotas na composição das listas à Assembleia da República? Afinal, o facto de haver mais mulheres não representa necessariamente um parlamento mais progressista. Acontece que as quotas não têm esse propósito, o que elas procuram resolver é um problema de sub-representação política. A exigência de que as mulheres para terem direito a ocupar um lugar têm de provar que são melhores do que eles, como se uma suposta mediocridade masculina não constituísse problema, fosse até um direito, mas a inteligência feminina fosse um pré-requisito indispensável, é um argumento sub-reptício muito comum, como o é aquele que olha qualquer pessoa com origem numa minoria e lhe exige que represente os interesses dessa mesma minoria, num exercício não autorizado de colonização dos corpos e das vidas. Acaso a deputada Assunção Cristas representa o movimento feminista pelo facto de ser mulher? Não, não representa, nem tem de representar. Ela representa exatamente os interesses de classe que pretendem manter e aprofundar o sistema que se estrutura também no patriarcado. Mas tem o direito de ser deputada. Esse hábito tão enraizado de exigir aos sectores excluídos que provem que são tão bons ou melhores, que merecem, é uma forma despudorada de procurar manter o poder e os privilégios. Um parlamento progressista depende da esquerda, não necessariamente da paridade, mas um parlamento paritário é um sinal de que a representação política não é privilégio masculino. Representa, pois, um avanço na qualidade da democracia.
Vários chefes de Estado têm sido eleitos com base num discurso antifeminista. Porém, mesmo esses sentem necessidade de referir que nada têm contra as mulheres, e a prova que dão, sendo puro marketing político, é um contra-ataque demolidor: a eleição de mulheres antifeministas. O movimento feminista e a esquerda têm de ser capazes de responder a este ataque, e isso passa necessariamente pela formação de lideranças femininas e feministas e pela construção de um programa e de uma ação política comprometida com o feminismo. É preciso também saber distinguir igualdade de género de feminismo. A primeira é condição mínima, mas não suficiente, para se inverter a relação de forças, porque a verdadeira mudança só surgirá se houver compromisso político com o feminismo. O feminismo reclama a igualdade de género, mas o inverso não é necessariamente verdadeiro. A igualdade de género é passível de ser defendida pela direita liberal. A igualdade de género é parte da estratégia feminista, mas só o feminismo tem potencial revolucionário.
#MeToo
No final de 2017, explodia o movimento #MeToo, que trazia à luz do dia várias acusações de assédio sexual ao produtor de cinema Harvey Weinstein. Rapidamente as denúncias se estenderam ao mundo do desporto, da política, da diplomacia, da Igreja... Muitas mulheres romperam o silêncio e começaram a contar as histórias de assédio sexual que tinham vivido, como se uma caixa de Pandora se tivesse aberto. Desmoronava-se o mundo cor-de-rosa, caíam do pedestal homens a quem era atribuído o estatuto de semideuses e o assédio revelava-se como uma experiência comum a muitas mulheres, porque prática recorrente do exercício de poder. O facto de muitos dos testemunhos serem de mulheres capacitadas e com projeção mediática favoreceu a credibilização das acusações, alterando radicalmente a visão que se tinha do assédio. De baixa ou de alta intensidade, o assédio passou a ser percebido como uma violência intolerável. Paralelamente, outra dinâmica interessante surgia, a da autocrítica de pessoas que assumiram assediar ou terem fechado os olhos a situações de assédio, notando o contexto sexista em que sempre viveram, mas também a sua acomodação ao lugar de privilégio. E isto é muito importante porque pode configurar o início de um processo de tomada de consciência e de mudança de atitude.
O movimento #MeToo enfrenta três acusações principais: elitismo, populismo e puritanismo. Elitismo porque o assédio só passou, de facto, a ser merecedor de condenação pública quando mulheres poderosas se assumiram como vítimas. No entanto, várias foram as manifestações #MeToo de mulheres comuns, de trabalhadoras que não tendo o glamour das atrizes de Hollywood também declararam ser assediadas. O movimento não é elitista, a sociedade é que o é, porque durante anos ignorou as denúncias das mulheres comuns. Outra acusação, a de ser populista, refere-se ao facto de o movimento centrar a sua estratégia na eficácia da denúncia pública e descurar a importância dos processos judiciais. Há uma razão para isso: a desconfiança dos tribunais e o reconhecimento da cultura da violação neles enraizada. É uma estratégia criticável, não pela denúncia, mas porque esta não é suficiente. À denúncia é preciso fazer corresponder a exigência da transformação das instituições, caso contrário tudo resultará num ajuste de contas e não no combate para superar a cultura que desculpabiliza e normaliza o assédio como exercício de poder. Finalmente, a acusação de puritanismo chegou em forma de manifesto: o Manifesto das 100, com origem em França. Nele, o feminismo à la MeToo é acusado de misandria e caracterizado como um novo totalitarismo. “Nós defendemos uma liberdade de importunar, indispensável à liberdade sexual”, defende-se no Manifesto. A resposta contra-argumenta e refere que as subscritoras do Manifesto confundem misandria com desculpabilização de agressões. A diferença entre flirt e assédio não é de gradação, mas de natureza: a violência não é uma sedução aumentada. O Manifesto das 100 reflete uma conceção tradicional de sexualidade e uma ordem moral em que o homem assume o papel de conquistador e a mulher de submissa. Tem havido excessos? Com certeza que sim, uns de responsabilidade do #MeToo, outros fabricados e ampliados para prejudicarem o terramoto que está a provocar.
O maior perigo que está à espreita é um novo puritanismo, não o puritanismo que critica o Manifesto das 100, porque dele pouco mais sobra do que a reposição da velha ordem moral, mas um puritanismo que retira a liberdade sexual, o erotismo e o prazer da equação da construção de relações igualitárias. Por isso a grande batalha continua a ser a da afirmação de que não há sins disfarçados, não significa mesmo não. Os homens – amigos, estranhos, companheiros, maridos - têm de aprender a ouvir, a aceitar e a respeitar que um não é um limite inultrapassável. Havendo consentimento, todas as fantasias são possíveis, inclusive a do não consentimento.
Feminismo anticapitalista
Em jeito de conclusão, falta abordar uma velha tática, a de tudo misturar para apoucar o movimento e as suas ativistas. O feminismo é plural, como todos os movimentos o são. No movimento feminista há disputa política, e é nela que estamos implicadas. Recusamos e combatemos alguns posicionamentos do movimento, mas fazemo-lo enquanto disputa política, não enquanto condenação do movimento.
É bastante complexo orientarmo-nos no emaranhado de coletivos e movimentos que se reclamam do feminismo. Perceber a nossa singularidade é um dos desafios presentes, e dela depende os nossos posicionamentos e as nossas estratégias. Neste exercício, quero convocar Marx e a distinção que propôs, em A questão judaica, entre emancipação política e emancipação humana. Marx, na obra, referia-se aos judeus, contudo, desafio-vos a aplicar a sua análise aos diversos feminismos. Dizia Marx que estamos perante emancipação política quando um grupo social subordinado conquista o direito de participação social e política. A emancipação é alcançada por esse grupo social concreto, todavia a sociedade não modifica as suas estruturas, ou seja, essas conquistas particulares, se bem que garantem um certo nível de emancipação a um determinado grupo social, não transformam a sociedade como um todo. A emancipação humana, pelo contrário, exige a emancipação do conjunto da sociedade, de todas as suas estruturas – políticas, económicas, jurídicas, culturais, etc. Ora, numa sociedade em que o capital explora o trabalho, as relações sociais são também determinadas por essa ordem económica, o que significa que para haver emancipação humana é necessário romper e superar o sistema de exploração.
A distinção proposta por Marx é uma ferramenta útil, porque nos possibilita distinguir entre o feminismo liberal, cujo objetivo se restringe à igualdade (formal) de direitos, a dita igualdade de género, e feminismo anticapitalista, o qual, reconhecendo a importância da igualdade de género, a percebe como curta, porque para superar as desigualdades é preciso superar o sistema que as produz. Nas sociedades de capitalismo avançado, o patriarcado e o capitalismo não existem mais como sistemas autónomos que se complementam. Hoje, o capitalismo é estruturalmente racista e patriarcal. Deste modo, o feminismo anticapitalista entende o machismo e o racismo não como resíduos de formações sociais passadas que continuam a existir na sociedade capitalista como sistemas autónomos, mas como parte integrante do sistema capitalista, em resultado de um longo processo histórico que dissolveu os modos de vida precedentes. Concluindo a ideia, só a emancipação humana é portadora da resposta para as desigualdades que o capitalismo instaura, ou seja, se é possível melhorar as condições de vida concretas das mulheres sob o capitalismo – emancipação política e igualdade de género -, não é possível superar o patriarcado sem superar também o capitalismo, porque eles são um e o mesmo sistema. Por isso somos feministas, mas somos feministas anticapitalistas. Nada pela metade, sempre a luta toda.
Na escrita deste texto várias pessoas me acompanharam, da sugestão de temas à sua leitura crítica. Agradeço a colaboração das minhas companheiras Adriana Ferreira, Adriana Lopera, Alda Sousa, Beatriz Simões, Bruna Abreu, Carmo Marques, Raquel Azevedo e Teresa Velásquez. Sem elas, o ativismo não era a mesma coisa e a vida era um aborrecimento.
* Andrea Peniche. Coordenadora editorial. Ativista feminista.
Artigo publicado em fevereiro de 2019 na revista Esquerda
INSET:
FEMINISM FOR THE 99%A MANIFESTO
Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya, Nancy Fraser
Verso Books
Escrevemos não para fazer o esboço de uma utopia imaginada, mas para clarificar o caminho que deve ser percorrido para alcançar uma sociedade justa. O nosso objetivo é explicar por que razão as feministas devem escolher o caminho das greves feministas, juntar-se a outros movimentos anticapitalistas e antissistema, e tornar-se um “feminismo para os 99%”. O que nos dá esperança para este projeto agora são os sinais de uma nova vaga global, com as greves feministas internacionais de 2017-18 e os movimentos cada vez mais coordenados que se estão a desenvolver em torno delas. Como primeiro passo, apresentamos onze teses sobre a conjuntura atual e as bases para um movimento feminista radical, novo e anticapitalista.
1. Uma nova vaga feminista está a reinventar a greve.
2. O feminismo liberal está acabado. É tempo de o superar.
3. Precisamos de um feminismo anticapitalista – um feminismo para os 99%.
4. Vivemos uma crise da sociedade como um todo – e a sua causa profunda é o capitalismo.
5. A opressão de género nas sociedades capitalistas baseia-se na subordinação da reprodução social à produção para o lucro. Queremos inverter esta lógica.
6. A violência de género assume muitas formas, todas elas enredadas nas relações sociais capitalistas. Comprometemo-nos a lutar contra todas elas.
7. O capitalismo tenta regular a sexualidade. Nós queremos libertá-la.
8. O capitalismo nasceu no meio da violência racista e colonial. O feminismo para os 99% é antirracista e anti-imperialista.
9. Ao lutar para travar a destruição capitalista da Terra, o nosso feminismo é ecossocialista.
10. O capitalismo é incompatível com a verdadeira democracia e a paz. A nossa resposta é internacionalismo feminista.
11. O feminismo para os 99% apela a todos os movimentos radicais para que se juntem numa insurgência anticapitalista comum.