O que se supõe que seja alguma elite global está a investir em duas horas de viagem sob neve de Zurique a Davos na Suíça, para o Fórum Económico Global 2011 [orig. 2011 World Economic Forum (WEF)] – ostensivamente para discutir o estado do mundo sob o super abrangente tema “Normas Partilhadas para a Nova Realidade” [orig. “Shared Norms for the New Reality”]. Uma dessas normas é o “sacrifício colectivo” – o que, no contexto dos ricos e poderosos, soa como o paradoxo final. Prevê-se humor “sombrio”, para Davos.
Simultaneamente, há a imagem espelho de Davos, a reunião do Fórum Social Mundial em Dacar, Senegal – ostensivamente para discutir em detalhe a crise estrutural, multidimensional da globalização capitalista. E tudo isso enquanto o grupo BRIC das potências emergentes (Brasil, Rússia, Índia, China) anexa um novo membro e engorda em ambição.
Assim sendo, o que essa actividade frenética nos conta sobre o actual estado do mundo?
Trabalho em rede, logo existo
Como até o The Economist admite – sem nenhuma ironia – “o mundo é um sítio complicado”. Portanto, que ninguém espere ver o aristocrático ex-vice presidente da Comissão Europeia Etienne Davignon, circulando por Davos na capa e peça especial de 14 páginas da revista britânica sobre “Os ricos e os outros” [“The Rich and the Rest”, The Economist, 20/1/2011].
Pode-se argumentar que Davos oferece a sectores significativos dos chamados “globocratas” a oportunidade de comprar seriedade intelectual. Em geral, esses globocratas são políticos, altos executivos, banqueiros, gerentes de fundos “hedge”, diplomatas e intelectuais académicos, além do Bono do U2, nem todos são queridos meritocratas.
Mas Davos oferece mais um bónus. Uma pitadinha não implica ter de ouvir “o resto”, aquela entidade incómoda, amorfa, também conhecida como “o povo” – entre os quais fazendeiros afligidos por inundações, com a sobrevivência por um fio; vítimas que sofrem na própria carne o “desemprego estrutural”; e os milhões de despejados das próprias casas, as classes médias em farrapos e os mais pobres mal conseguindo sobreviver no norte desenvolvido. É pouco provável que apareçam por lá, para estragar a festa em Davos.
O Fórum Económico Mundial é uma marca de prestígio (alguns diriam "escumalha") - promovida com uma eficiência impiedosa. Dado que é o clube dos super-ricos (para muitos, os plutocratas) , que Zygmunt Bauman definiu como “a modernidade líquida”, a inscrição custa toneladas de dinheiro; a taxa de associado regular é de cerca de 52 mil dólares por ano (mais um convite-entrada, de 19 mil dólares); mas para participar como “parceiro estratégico” é preciso pagar uns espantosos 527 mil dólares (com direito a comprar até cinco convites, a 19 mil dólares cada convite).
O Fórum Económico Mundial não está a aceitar mais “parceiros estratégicos” para a reunião de 2011, a menos que a empresa aspirante seja chinesa ou indiana e esteja entre as 250 maiores do mundo. De olho, provavelmente, também nessas, e sem dar hipótese ao acaso, a Google gastará mais de 250 mil dólares numa festa em Davos, na 6ª-feira à noite.
Na prática resolve-se praticamente coisa nenhuma em Davos, com o matraquear das vozes das chamadas “grandes mentes” – seja nas sessões públicas ou nos rendez-vous secretos em suítes privadas. Como nas festas em Hollywood, o negócio de Davos é aparecer, fazer-rede e circular sala a sala. Seja como for, a elite das finanças, os burocratas dos governos, os magnatas bilionários da caridade universal e os “especialistas” think-tanquistas passam a vida estabelecendo a rede.
As sessões chamadas de “resolver problemas” em Davos são quase sempre nonsense – ou piada sem graça, como Bill Gates da Microsoft discutindo estratégias de desenvolvimento com o deputado e ex-secretário de Defesa Paul Wolfowitz (o que, sim, aconteceu). Ninguém em Davos percebeu que a crise financeira de 2008 estava tão próxima. E dado que as solenidades estão em fase de conclusão, ninguém pensará duas vezes antes de embalar as Moëts e partir em jet-safari de Davos para Darfur, para posar para cartaz da Louis Vuitton, complementado com refugiados do Sudão como extras, em roupa de festa.
Mundo(s) alternativo(s)
Depois do blá-blá-blá da classe dominante em Davos, “o resto” será entregue ao Fórum Social Mundial – que nasceu há dez anos no sul do Brasil, e que em 2011 acontecerá em Dakar, no Senegal.
O Fórum Social Mundial promete dissecar as quatro dimensões – política, cultural, ambiental e ideológica – da actual crise do capitalismo. Dificilmente haveria lugar melhor para discutir tudo isso que África – empobrecida e explorada pelo colonialismo e depois, ao longo de um ainda incompleto processo de descolonização, por práticas neocoloniais.
O Fórum Social Mundial promete discutir as várias conexões entre migrações e diásporas, e o papel dos movimentos sociais e comunitários (sem Facebook, please). Encontros anteriores podem ter sido afogados em torrentes de retórica vazia. Mas agora muitas das análises produzidas pelos movimentos chamados altermundistas estão a ser reconhecidas como pertinentes – e essenciais para compreender a crise do neoliberalismo. Por exemplo, monitorizar a economia de casino e eliminar os paraísos fiscais são temas já discutidos nas reuniões do Grupo dos 20 (G-20).
O combate à desigualdade é questão de ordem (até Davos reconheceu que é um dos parâmetros-chave da “nova realidade”). Mas na corrida em direcção à auto-atribuída agenda do “outro mundo possível”, o Fórum Social Mundial está até mais preocupado com o advento de novos modos de produção e consumo e uma nova equação geopolítica.
Enquanto Davos parece reflectir uma nebulosa preocupação das elites globais com o suplício “do resto”, o Fórum Social Mundial parece apontar para um debate estratégico e a possível articulação em andamento, de uma resistência global coordenada.
O Fórum Social Mundial identifica três respostas possíveis para a actual megacrise: um neoconservadorismo; uma profunda reconstrução capitalista proposta pelos activistas do New Deal Verde; e uma alternativa social e ambiental radical. Os esforços parecem convergir para a segunda possibilidade.
Davos poderia ser muito útil para muitos, se examinasse em profundidade, como o Fórum Social Mundial propõe, o quanto o relacionamento norte/sul está mudando dramaticamente, considerando também a existência de um norte robusto no sul (pensem em Singapura) e de um sul no norte (pensem em Detroit).
É aí que o Fórum Social Mundial encaixa e se articula com a história de sucesso de mais de 30 mercados emergentes por todo o mundo. Na vida real – não em palestras-shows – o que se vê é o crescente poder de um grupo BRIC expandido dentro do G-20.
Conheçam os novos BRICs
O sub-Napoleão Nicolas Sarkozy da França presidirá o G-20 em 2011. Já começou com barulho – convocando uma reunião na China, em Março próximo, para discutir os perigos de uma guerra de moedas.
Sarkozy, instintos populistas e tudo, tenta furiosamente posar como visionário, ansiando por um mundo empapado de “responsabilidade” e “solidariedade” no qual as leis de mercado não serão a Bíblia.
Mas ainda falta ver como convencerá mercados emergentes a ceder as suas reservas em troca de alguma vaga promessa de ajuda se tiverem problemas; como convencerá os BRICs a ceder mais poder ao Fundo Monetário Internacional, quando a muito duvidosa democratização do FMI ainda é miragem; e como convencerá o governo dos EUA a taxar transacções financeiras – tema que o G-8 debate há anos.
Quanto aos BRIC, já são formalmente BRICS: a África do Sul foi incluída formalmente no mês passado. O acréscimo implica uma volta geográfico para cobrir Ásia, América Latina, Europa e África. A próxima reunião dos BRICS, crucial, acontecerá em Abril em Pequim, apenas um mês depois da jogada da moeda de Sarkozy.
Dizer que muitos círculos políticos de Washington estão nada-nada satisfeitos com essas novidades, é dizer pouco. Os BRICS não demonizam o Irão; não apoiam as guerras no Iraque e no AfPak; apoiam a Palestina; e são a favor de substituir-se o dólar como moeda mundial de reserva, por uma cesta de moedas. Não bastasse isso, em 2011 os BRICS terão cinco lugares dentre as 15 cadeiras do Conselho de Segurança da ONU; o Brasil, até o final de 2011; Índia e África do Sul, até o final de 2012, mais China e Rússia que são membros permanentes.
Os BRICS passarão a aparecer acompanhados de outra sigla sedutora – MIST, inventada por nada mais, nada menos do que Jim O'Neill, da Goldman Sachs, inventor da sigla BRIC original em 2001. MIST significa Malásia, Indonésia, Coreia do Sul e Turquia.
Pode-se facilmente argumentar que qualquer desses países poderia ser integrado directamente aos BRICs – sobretudo a Turquia (assunto que foi discutido em reunião dos BRICs em Brasília, ano passado). A África do Sul é só o 31º país em termos de PIB, atrás de todos os MISTs. Mas a China é a principal parceira da África do Sul, e a Índia quer, tanto quanto a China, ‘conquistar’ a África. Seja como for, nada disso impede que se firme uma aliança forte e real entre BRICS e MIST, em direcção à nova ordem mundial multipolar – precisamente o que Washington mais teme.
Quanto a Washington, desde meados de 2008, o nome do jogo é um mundo “de multiparcerias” – cunhado pela secretária de Estado dos EUA Hillary Clinton. Implícito aí está o conceito de que os EUA seriam um parceiro sénior, numa dita “coligação de vontades”. Compare-se essa fórmula e o que disse o ministro de Relações Exteriores do Brasil, o qual, ao saudar os novos BRICS, disse que “os BRICS desejam reformar o sistema financeiro e democratizar cada vez mais a governança global”. O ranger de dentes em Washington foi ouvido a muitas zonas de fuso horário de distância.
E ainda não se falou sobre a China – onde o Partido Comunista está movendo céus e terras para ter uma sociedade avançada, letrada, com 70% de 1,4 mil milhões de chineses vivendo em áreas urbanas em 2030, politicamente estável e com uma política exterior de não-intervenção. Tanto quanto Washington consiga entender, trata-se de BRICS + MIST = menos EUA; e, para a China, o nome do jogo é multipolaridade, ponto final, parágrafo.
Facto é que, mesmo com multipolaridade, as perspectivas são sombrias: pico de consumo de petróleo; guerras por energia (primeiro o Iraque; o próximo será o Irão?); aumento nas emissões de gases de efeito estufa; mudança climática; guerras da água; e miséria crescente, enquanto os 1% mais ricos da população controlam 43% de todo o património do planeta.
Apostem para ganhar muitas Moëts, que as elites globais em Davos não darão muita atenção às reais carências do mundo – numa nova cultura política, horizontal e diversa, que promova a convergência entre as redes de cidadãos e os movimentos sociais.
No momento, a possibilidade maior aponta para uma total privatização da vida – e até da vida artificial. A possibilidade alternativa é que se desenvolva um novo paradigma – um New Deal real, global, que com certeza não cairá do céu como dádiva de alguma cúpula celestial institucional. Só acontecerá pela mobilização de grupos sociais e dos cidadãos em todo o mundo. Chega de conversa; é hora de agir.
Artigo de Pepe Escobar publicado no Asian Times, traduzido pelo Colectivo Vila Vudo/RedeCastorphoto.