Na passada segunda-feira, a Procuradoria da Argentina pediu que Cristina Kirchner seja condenada a 12 anos de prisão e passe a ser inelegível vitaliciamente. A ex-presidente e atual vice-presidente é alvo de um processo por associação ilícita e administração fraudulenta agravadas. Em causa está o suposto favorecimento do empresário Lázaro Báez na concessão de 51 obras públicas na região da Patagónia, algumas das quais teriam sido atribuídas a preços acima do mercado e não teriam sido sequer completadas. O desvio de fundos seria na ordem de mil milhões de euros.
Enfrenta ainda mais cinco outros processos, mas os seus apoiantes dizem tratar-se de uma “perseguição judicial e mediática”. A expressão é do próprio presidente do país, Alberto Fernandez. Já o procurador responsável pelo caso, Diego Luciani, diz que “este é provavelmente a maior manobra de corrupção de que se tem conhecimento no país”.
Figura de proa do peronismo de centro-esquerda que tem governado o país nos últimos anos, com o interregno direitista de Macri entre 2015 e 2019, Kirchner beneficia, devido ao cargo, de imunidade e terá de ser o Supremo a retirá-la, caso se confirme uma condenação. O julgamento durará ainda, no mínimo, vários meses a resolver nesta instância, sem contar com as possibilidades de recurso de ambas as partes. A palavra caberá a seguir às alegações de defesa em setembro e só é esperada uma decisão no final do ano.
Mas as declarações da procuradoria incendiaram imediatamente os ânimos com manifestações contra e a favor em frente à casa de Kirchner em clima de elevada tensão. Houve detenções e a polícia lançou gás lacrimógeneo e gás pimenta contra os apoiantes da presidente. Um deputado provincial apoiante de Kirchner foi preso.
Mais um caso de Lawfare?
O campo da maioria presidencial insiste que a acusação não é sustentada em nenhuma prova concreta. Na frente política, as confederações sindicais CGT e CTA, a coligação que venceu as presidenciais, a Frente de Todos, e mesmo organizações mais à esquerda, como o Novo MAS e a coligação Frente de Esquerda e dos Trabalhadores – Unidade, denunciaram o que consideram ser lawfare, uma perseguição jurídico-política iniciada quando Macri ainda estava à frente do executivo.
O jornal Página 12 nota que este julgamento tinha vindo a ser ignorado pelos jornais alinhados à direita porque “a acusação se desmoronava sessão após sessão e a vice-presidente nem sequer era mencionada” e que, em momento algum, se apresentaram “decretos, nem ordens administrativas, cartas ou mensagens que vinculem a ex-presidente” com as obras em causa “só uma série de especulações”.
As alegações finais da Procuradoria constituíram assim uma reviravolta dramática. Kirchner denuncia que destas constam “acusações nunca antes colocadas”, o que está “em aberta violação do princípio de defesa em julgamento”. Por isso declarou no Twitter que estava “perante um pelotão de fuzilamento mediático-judicial”.
A defesa de Kirchner requereu que a ex-presidente pudesse testemunhar em sua defesa. Questionou também a proximidade do procurador com o juiz que dirige os trabalhos Rodrigo Giménez Uriburu, jogando os dois até na mesma equipa de futebol. E notou que a Unidade de Informação Financeira que fazia parte da acusação requereu absolvições e que o Gabinete Anticorrupção deixou de participar na acusação.
O contra-ataque de Kirchner surgiu depois em declarações extensas num direto nas suas redes sociais. A vice-presidente denuncia as ligações próximas do ex-secretário de Obras Públicas, José López, a vários empresários da construção da direita macrista que ganharam concessões durante o seu mandato. Este foi condenado por enriquecimento ilícito e passou a atuar como “arrependido”, tendo mudado a versão dos factos para dizer que “supunha” que o dinheiro que recebeu vinha de Kirchner. Os seus chats são uma das peças que não tinha ido a julgamento e que foram aceites como prova apenas imediatamente antes das alegações finais da Procuradoria. Mas a dirigente peronista diz que, pelo contrário, estes provam que não houve comunicações com ela e apenas há uma mensagem vaga em que Báez sugere que se iria reunir com “a chefa”. Já com os empreiteiros de direita, as mensagens foram aos milhares, com pedidos vários que não foram nunca investigados.
Kirchner critica ainda que o rasto desse dinheiro nunca tenha sido seriamente analisado. A sua defesa coloca igualmente em causa a ideia de que os preços de adjudicação das obras em Santa Cruz tenham sido excessivos. O organismo estatal responsável pelas estradas argentinas, a Dirección Nacional de Vialidad, disse-o desde o início e numa análise a cinco das 51 obras em causa, três peritos contabilistas defenderam o mesmo, embora entre os engenheiros dois quebraram a unanimidade. Mas a defesa contesta a sua posição porque alegadamente misturaram preços de recuperação de estradas com recuperação de auto-estradas e se basearam em comparações com obras muito posteriores e noutras regiões que não implicam deslocações tão grandes de materiais.
A defesa utiliza também as palavras de testemunhas que seriam supostamente de acusação para colocar em causa a ideia de que os atrasos nas obras da Austral Construcciones de Báez seriam maiores do que noutras empresas. E as de Leandro Martín García, da Vialidad, que explicou que as obras desta empresa ficaram paradas porque o macrismo lhes tirou a concessão.
Por último, insiste-se que a acusação de associação ilícita deveria ser fundada em provas de que os acusados teriam entrado em conluio para cometer os delitos em causa, apesar de não se apresentar uma única comunicação nesse sentido.