China

A crise e as peculiaridades do capitalismo chinês

09 de fevereiro 2025 - 23:20

O regime chinês nunca foi tão opaco como é hoje. Vivemos em tempos de incerteza, sem ainda saber como Donald Trump jogará as suas cartas em relação à China.

por

Pierre Rousset

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Cidade chinesa.
Cidade chinesa. Foto L'Anticapitaliste.

De acordo com números oficiais publicados em 17 de janeiro, o Produto Interno Bruto (PIB) da China crescerá 5% em 2024, e a meta estabelecida por Xi Jinping será cumprida, como (quase?) sempre. No entanto, em dezembro, alguns economistas chineses “de peso” expressaram sérias dúvidas sobre o tema, incluindo Gao Shanwen, que estimou o crescimento em apenas 2% – antes de ser severamente punido. De facto, desde a crise da Covid-19, as medidas de estímulo não conseguiram restaurar o consumo. O país atravessa uma crise de sobreprodução. A diferença entre a fraca procura interna e o forte crescimento das exportações está a ampliar-se ainda mais.

Transformação capitalista estagnada

Sendo a segunda maior potência económica do mundo, a China tornou-se um componente central da ordem capitalista internacional, mas a sua formação social continua altamente complexa, marcada por uma história específica. Como apontaram o meu amigo Au Loong-yu e também Romaric Godin (no Mediapart, em 24 de setembro), é necessário levar em conta as particularidades do capitalismo chinês para entender como o país agora enfrenta os mesmos impasses das nações ocidentais avançadas (excesso de capacidade industrial, exaustão da financeirização, limites do crescimento tecnológico, segundo Godin), ao mesmo tempo que não concluiu a sua mutação, iniciada por Deng Xiaoping após a repressão dos movimentos operários, estudantis e populares em 1986.

A conclusão desta transformação capitalista foi dificultada pelo peso do aparato burocrático em todos os níveis, pela corrupção sistémica e pelas mudanças no poder introduzidas por Xi Jinping ao decidir tornar-se presidente vitalício: a marginalização crescente das estruturas governamentais e o fim da colegialidade na liderança do Partido Comunista Chinês (PCC), favorecendo apenas a sua própria fação. A colegialidade garantia continuidade e funcionava como uma possível salvaguarda contra aventuras políticas. A grande diferença entre o processo de reintegração plena da Rússia e China no mercado mundial é que, em Pequim, havia um piloto eficaz no comando. Este sucesso deve-se mais aos três predecessores de Xi do que a ele próprio.

Dívida, corrupção e marasmo

O rebentar da “bolha imobiliária”, com a falência da gigante Evergrande em 2021, ilustra a importância dos laços – muitas vezes familiares – entre os setores público e privado no sistema capitalista chinês. Se essa crise tomou proporções tão grandes, foi porque, em todos os níveis, houve conluio entre burocratas no poder e os seus familiares no setor privado para multiplicar investimentos, fonte de lucros tanto legais quanto ilegais. As consequências são profundas, não apenas devido ao fardo da dívida acumulada, mas também pelos seus impactos sociais. Xi Jinping recusa-se a implementar uma política de proteção social. Para se prepararem para a reforma e preverem gastos com saúde (pelos quais terão que pagar), muitos chineses modestos compraram apartamentos ainda na fase da planta que nunca foram construídos ou mudaram-se para cidades que permanecem amplamente fantasma.

Os pais temem atualmente que os seus filhos vivam pior do que eles. O desemprego juvenil é muito alto e os diplomas já não garantem um emprego digno. A população está a ficar mais pobre e precisa economizar para um futuro incerto. Num relatório para o Le Monde publicado em 9 de janeiro, Harold Thibault descreve lojas e restaurantes vazios, abandonados pelos “excluídos do consumo”. Xi Jinping pede à população que demonstre resiliência até a recuperação da economia, mas as empresas enfrentam uma concorrência feroz que as obriga a cortar custos em tudo.

O desejo de poder absoluto leva à paranoia. Xi Jinping está a encarcer empresários, a “disciplinar” o setor da finança e a purgar repetidamente o aparelho do partido, o estado-maior do exército e os serviços secretos… A China continua a ser um mercado que não pode ser ignorado, mas investir nele tornou-se um jogo arriscado, mergulhando o capital internacional na perplexidade. Podemos falar de uma verdadeira crise de regime com sobressaltos imprevisíveis.

Desglobalização de crise

A “globalização feliz” (para o capital) pertence a um passado distante. Ela foi substituída pela crise da desglobalização, abrindo caminho para conflitos geopolíticos entre Estados e retrocessos protecionistas parciais.

No entanto, não é fácil libertar-se das interdependências criadas pela formação de um mercado mundial único e pela internacionalização das cadeias de produção. Estas interdependências continuam muito vivas, mesmo com outras questões, como a guerra e o aquecimento global, dominando a atenção dos governos.

A relação de forças com os Estados Unidos

Os primeiros sinais de Donald Trump são ambíguos. Ele nomeou ferrenhos opositores de Pequim para cargos-chave, mas suspendeu a proibição do TikTok. E o que pensar da posição aparentemente privilegiada de Elon Musk como “Presidente II”, sendo um grande investidor e apoiante de Xi, que propôs um plano para resolver a questão de Taiwan em favor de Pequim? (O homem mais rico do mundo atribuiu-se o direito de ingerência em tudo?) Xi Jinping deve ter dificuldades para prever se um acordo com Trump será desejável e possível – e, por uma vez, conseguimos entendê-lo. Será um sinal que a sua política monetária permaneça extremamente cautelosa? Este seria o momento ideal para fortalecer o papel internacional do yuan, mas, por enquanto, isto não está a ser feito. A guerra tecnológica e comercial entre as duas potências já começou e pode levar à imposição de um duopólio sino-americano no mundo ou, pelo contrário, a confrontos armados.

Os Estados Unidos continuam dominantes no setor militar e na produção de semicondutores avançados. Eles exigem que a gigante holandesa Nvidia pare de fornecer os seus produtos de ponta à China. Apesar de subsídios maciços à pesquisa, as empresas chinesas parecem incapazes de alcançar os EUA nesse setor crucial. Como resposta, Pequim ameaça bloquear a exportação de metais essenciais à produção de semicondutores (gálio, germânio, etc.) para os EUA. Foi você que falou em interdependência?

Entre a Europa Ocidental e Putin

A influência da China estende-se da África à América Latina, mas isso não substitui as suas conexões com países capitalistas desenvolvidos. O acesso aos Estados Unidos pode ser restringido. Como resultado, Xi Jinping poderia voltar-se para a Europa Ocidental, Austrália e Coreia do Sul – mas há a guerra na Ucrânia, travada pelo seu aliado Putin, que também é parceiro da Coreia do Norte! Será que chegou a hora de sacrificar essa amizade inabalável? Difícil, dado que o aquecimento global está a abrir as regiões polares para exploração e comunicações marítimas. Pequim não faz fronteira com a Antártida e precisa de Moscovo para participar do grande jogo estratégico nessa região, enquanto Donald Trump deseja tomar posse da Gronelândia!

O destino do mundo depende, em parte, de líderes como Donald Trump e Xi Jinping, o que não é nada tranquilizador. Ao caos vindo de cima, devemos opor o internacionalismo vindo de baixo.


Pierre Rousset é fundador do International Institute for Research and Education de Amesterdão e da associação Europe Solidaire et Sans Frontières. É especialista na política do sul da Ásia sobre a qual escreveu vários livros.

Texto publicado originalmente no L’Anticapitaliste aqui e aqui, traduzido para português pela revista Movimento. Editado para português de Portugal pelo Esquerda.net.