Desde há vários anos sites da internet continuam divulgando dezenas de artigos referentes à situação do civismo nos Estados Unidos da América. Expõem que neste país impera uma cultura crescente de autorrealização e autoestima onde o narcisismo encontra espaço fértil para brotar e vicejar. Revelam, com base em pesquisa realizada em data recente, que mais de setenta por cento dos estadunidenses são reprovados em um teste básico de alfabetização cívica sobre tópicos relativos aos três ramos do governo, o número de juízes da Suprema Corte e as funções básicas da democracia. Apenas metade deles conseguiu nomear corretamente o ramo onde os projetos de lei se tornam leis e somente vinte cinco por cento dizem estar muito confiantes de que conseguiriam explicar como funciona o sistema de governança norte americano. Denunciam também que a partir de 2011 foram suspensos o financiamento e o apoio substantivos à educação cívica nas escolas.
Um dos escritos mais pertinentes, expressivos e em fina sintonia com o pensamento reinante, intitulado Renascimento da Esperança Cívica: A América Deve Enfrentar Sua Crise Cívica, foi divulgado na revista Time Magazine em junho deste ano e tem como autores Trygve Trontveit e Harri Boyte. Eles constatam que na sociedade norte-americana atual predomina a valorização da meritocracia e da realização individual. Detetam também que houve um encolhimento do conceito de democracia no discurso popular em direção a uma forma de consumo. Averiguam ainda que aconteceu um declínio do tempo e da energia destinado às organizações de bairros e atividades comunitárias. Tais ocorrências servem para sustentar a tese adotada de que a nação estadunidense está imersa em uma onda de crise cívica.
Vale ressaltar que esta crise cívica a qual similarmente vem sendo anunciada, examinada e avaliada por muitos outros intelectuais, educadores e cientistas políticos, desde há um certo tempo, começou a se instalar no momento em que a nova superestrutura do capitalismo, isto é, o neoliberalismo, se hospedou no país. Basta lembrar que o mesmo nele se embrenhou na década de oitenta durante o governo de Ronald Reagan, um ferrenho defensor de seu ideário, o qual agrega o estímulo ao livre mercado, o controle fiscal, as privatizações, a redução das políticas sociais e o descaso para com a democracia participativa. Sua marcante presença levou os estudiosos do assunto cunharem a expressão civic deserts para indicar a existência de locais onde é muito baixa ou quase inexistente a participação das pessoas no espaço cívico. E considerando que o neoliberalismo avançou em muitas regiões do mundo é de se esperar que a crise cívica tenha atingido outros rincões do planeta.
Embora tal crise seja verdadeira é preciso expor que os Estados Unidos são reconhecidos como protagonistas do engajamento cívico e da cidadania ativa. Apenas neste século houve um elevado número de movimentos sociais tais como o Ocupe Wall Street, a Luta por US$ 15, Vidas Negras são Importantes, Marcha das Mulheres e #MeToo, Direitos dos Inquilinos, Ativismo Ambiental/New Deal Verde, a A Marcha pelas Nossas Vidas e o Protesto em Favor dos Palestinos. O número de referendos por Estados atingiu muitas dezenas e envolveu temas relacionados à imigração, eleições, assistência médica, ação afirmativa, pagamento de imposto, salário mínimo e uso de drogas dentre muitos outros. O trabalho voluntário entre os anos de 2020 e 2021 envolveu 23% da população, ou seja, mais de 60 milhões de cidadãos que dedicaram 4 milhões de horas em diversas organizações espalhadas pelo país.
Acrescente-se que na área da high school, todos os Estados possuem na grade curricular um programa destinado ao civismo e muitos deles aplicam uma avaliação no final do ano para averiguar a assimilação do conteúdo previsto. Muitas instituições universitárias oferecem aos alunos o denominado service learning que é voltado para as necessidades sociais e o trabalho comunitário. Além disso, pesquisa realizada no início deste século revelou que uma grande quantidade de escolas se encontra comprometida com a formação do cidadão pessoalmente responsável, do participativo e do orientado para a justiça social.
Outrossim cabe dizer que o neoliberalismo, causador da queda do civismo, se encontra em acelerado processo de decadência o qual teve início no próprio Estados Unidos em 2008 com a crise financeira provocada pela política habitacional do governo Bush assentada na subscrição de hipotecas e cujo principal agente foi o Banco Lehman Brothers que faliu. Este evento exigiu uma operação de socorro por parte do Estado que somou bilhões de dólares e atingiu vários países do mundo os quais também tiveram que fazer aplicações bilionárias. A partir dessa data, a ascensão dos presidentes Obama e Biden, vinculados ao Partido Democrata ajudou a compelir a derrocada do neoliberalismo. Outro evento derrotador do neoliberalismo foi a epidemia da covid-19 que atingiu quase todas as nações do planeta e exigiu do Estado enormes aportes financeiros.
Ademais, em período recente emergiram acontecimentos favoráveis ao revigoramento do civismo. Foi reintroduzido o Civics Secures Act um projeto de investimento em pesquisa e programação na área da educação cívica. A National Civics Bee, criada pela Fundação da Câmara de Comércio e destinada à promoção do conhecimento cívico entre os jovens, se encontra em processo significativo de expansão. Legisladores de dezenas de Estados se envolveram em inúmeros debates em torno de mais de oitenta projetos de lei voltados para atividades cívicas curriculares e extracurriculares. São eventos animadores pois evidenciam a reação da sociedade estadunidense. Eles autorizam admitir que esta crise já iniciou um movimento de decadência e que num futuro próximo os Estados Unidos voltarão a se mostrar novamente como um exemplo para os demais países do mundo na área do engajamento cívico e do exercício da cidadania ativa.
António Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em educação pela USP e autor de Democracia e Ensino Militar (Cortez) e A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania (Pontes).