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Comunismo sim, putinismo não!

Ou comunismo ou putinismo, ou Vladimir Ilitch ou Vladimir Putin, ou direito de autodeterminação das nações ou direito dos impérios de invadir e procurar anexar outros países: a cada um cabe escolher o que prefere, mas são opções irreconciliáveis. Por Michael Löwy.
Manifestação em Hanover, Alemanha. Foto pix-4-2-day/Flickr

A Nato é uma organização imperialista, hegemonizada pelos Estados Unidos, responsável de inúmeras guerras de agressão. A dissolução deste monstro político-militar, engendrado pela Guerra Fria, é uma exigência democrática elementar. O seu enfraquecimento nos últimos anos levou Emmanuel Macron, o presidente neoliberal da França, a constatar em 2019, que a Aliança se encontrava "em estado de morte cerebral". Infelizmente, a criminosa invasão russa da Ucrânia ressuscitou a Nato! Vários países neutros (Suécia, Finlândia, etc.) estão a examinar a sua adesão à Nato; tropas americanas estão a ser destacadas para a Europa em grande quantidade; a Alemanha, que há dois anos tinha recusado aumentar o seu orçamento militar, apesar das brutais pressões de Donald Trump, resolveu investir 100 mil milhões de euros no rearmamento. Etc., etc. Vladimir Putin salvou a Nato do seu lento declínio, senão desaparecimento.

Porquê esta invasão da Ucrânia? Enquanto Putin pretendia proteger as minorias russófonas da região do Donesk, havia uma certa racionalidade na sua política. Idem, para a sua oposição à expansão da Nato no Leste Europeu. Mas a brutal invasão da Ucrânia, com o seu cortejo de bombardeamentos de cidades, com milhares de vitimas civis, inclusive idosos, mulheres e crianças, não tem nenhuma justificação.

Com que argumentos procura Putin legitimar esta guerra criminosa contra o povo ucraniano? O argumento da "denazificação" da Ucrânia não tem pés nem cabeça. O povo Ucraniano elegeu como presidente um judeu, Zelenski, que se orgulha do seu avô que combateu nas fileiras do Exercito Vermelho contra o nazismo. Certo, existem partidos e grupos neonazis na Ucrânia, mas nas últimas eleições tiveram só 3% dos votos. Existem grupos similares na Rússia. Como pode Putin reclamar-se do antifascismo, ele que apoia politicamente e financeiramente vários partidos neofascistas na Europa, como a Frente Nacional da família Le Pen na França, ou a Lega de Matteo Salvini na Itália? O jornal do Partido Comunista Francês, "L’Humanité", publicou um dossier sobre isto a 22 de março com o título "A extrema direita e Putin"…

A outra "legitimação" da invasão encontra-se no discurso de Putin a 22 de fevereiro de 2022. Segundo o Chefe de Estado russo, a Ucrânia "foi inteiramente criada pela Rússia bolchevique e comunista", visto que "Lenine e os seus companheiros arrancaram a Ucrânia à Rússia"! A Ucrânia merece ser chamada "a Ucrânia de Lenin", já que ele foi "o autor e arquiteto" deste país. Foi Lenine que inventou "o direito das nações à autodeterminação até à secessão, que constitui o fundamento do Estado Soviético", uma concessão absurda aos nacionalistas das várias repúblicas que se constituíram depois da revolução de 1917. Reconhecer a estas repúblicas o direito de se separarem do Estado russo foi, segundo Putin, "uma loucura, algo totalmente incompreensível", uma verdadeira destruição da "Rússia histórica" (isto é czarista). Dirigindo-se aos governantes da Ucrânia, Putin argumenta: vocês falam em "descomunizar" a Ucrânia (isto é, romper com o seu passado comunista) mas ficam a meio do caminho. "Nós vamos mostrar-vos a verdadeira descomunização", conclui Putin, referindo-se ao seu projeto de reintegrar – pela força evidentemente – a Ucrânia novamente no Estado russo.

Esta é então a “justificação” putinista da invasão da Ucrânia: argumentos anti-comunistas, anti-iluministas e a ambição de restaurar a “Rússia histórica” anterior ao bolchevismo – isto é a Rússia czarista, – anexando a Ucrânia. Não por acaso, a grande maioria dos Partidos Comunistas no mundo – inclusive os mais saudosos do socialismo soviético, como o grego e o chileno – condenaram a invasão russa da Ucrânia.

Podem-se fazer muitas críticas à Ucrânia atual: falta de democracia, opressão da minoria russófona, “ocidentalismo”, etc., etc., mas não se pode negar o direito do povo ucraniano de se defender contra a invasão russa do seu território feita com um brutal e criminoso desprezo do direito das nações a sua autodeterminação.

Ou comunismo ou putinismo, ou Vladimir Ilitch ou Vladimir Putin, ou direito de autodeterminação das nações ou direito dos impérios de invadir e procurar anexar outros países: a cada um cabe escolher o que prefere, mas são opções irreconciliáveis.

Esperemos que algum dia os povos da Europa e da Rússia se libertem das suas oligarquias capitalistas parasitárias. Esta era a proposta dos revolucionários de Outubro de 1917.


Michael Löwy é sociólogo e diretor de investigação no Centre National de la Recherche Scientifique - CNRS em Paris.

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