Tempestade em Valência

Como o urbanismo desenfreado aumentou as cheias

03 de novembro 2024 - 18:52

Especialistas são unânimes em apontar construção desregrada como fator que potenciou a tragédia. A direita valenciana, antes do DANA, avançou com projeto de lei para simplificar a legislação urbanística e retirar garantias ambientais dos processos de construção, critica-se, vincando a necessidade de planeamento e mitigação.

PARTILHAR
Cheias em Valência.
Cheias em Valência. Foto de KAI FOERSTERLING/EPA/Lusa.

As primeiras explicações da dimensão da tragédia causada pela tempestade DANA em Espanha centraram-se nas alterações climáticas que potenciaram o fenómeno e na gestão desastrada dos alertas e do socorro imediato por parte da governo regional de direita. Depois disso, vão começando a suceder-se análises por parte de diversos especialistas sobre a influência do urbanismo desenfreado em zonas de risco de cheia.

Desocupar zonas inundáveis, custe o que custar

Alfredo Ollero Ojeda, professor de Geografia Física na Universidade de Saragoça destaca, no Ara, dois fatores para a catástrofe: um “novo clima” e um “urbanismo inadaptado”.

Sobre o primeiro, escreve que as depressões como esta são “frequentes e previsíveis” nesta área no Outono mas que o “novo clima mediterrânico” com temperaturas mais altas faz com que fenómenos extremos possam ser no futuro “ainda mais intensos”.

No campo da engenharia e do urbanismo, apela uma mudança radical que passa por “devolver aos rios o seu espaço” e “desocupar zonas inundáveis, custe o que custe, porque muitas vidas humanas humanas estão em jogo”. Na região de Valência, como em tantas outras, há muitas residências e infraestruturas em zonas de elevada inundabilidade e “a solução não é colocar mais muros” porque “a água vai esquivá-los ou rebentá-los” mas “removê-las para locais seguros”.

Recorda que a urbanização dos últimos 70 anos foi feita “sem planificação e sem prudência” apenas “seguindo a ditadura do capital e dos mercados, sem pensar nos riscos que se iam gerar nem na natureza nem na saúde”.

Urbanização de espaços fluviais, o principal fator amplificador de perda de vidas

No The Conversation, José María Bodoque investigador em modelização hidrológica e hidráulica, hidromorfologia e avaliação de risco por inundação da Universidade de Castela-La Mancha também não hesita em apontar o dedo: “na maioria dos núcleos urbanos afetados pela tempestade o principal fator amplificador da perda de vidas humanos, de estragos e prejuízos económicos é a urbanização dos espaços fluviais”.

Este cientista sublinha igualmente a probabilidade de “aumento de frequência, duração e severidade” deste tipo de fenómenos climáticos” que também poderão passar a ocorrer noutros períodos. Face a isto, propõe várias medidas no sentido de “melhorar a perceção social do risco” e a resiliência dos edifícios, para além de aumentar a eficiência dos sistemas de alerta meteorológico.

Geólogos catalães em alerta por causa do urbanismo desregulado

O Colgeocat, Colégio de Geólogos e Geológas da Catalunha, num comunicado citado pela Teleprensa, reforça o diagnóstico de que os caudais destas grandes chuvas “são aumentados por um urbanismo desregulado que não deixa espaço para a laminação das avenidas [a redução do caudal e da potência de uma cheia], e a sua infiltração no subsolo, e por uma ocupação intensiva dos espaços fluviais”.

Apela-se a estudos rigorosos e caso a caso mas vinca-se que “palavras como decrescimento e descontrução deixaram de ser uma utopia para se converterem em factos”.

Sobre a sua região especificamente alerta-se para um ritmo de construção, de acordo os próprios dados da Generalitat da Catalunha, de uma habitação unifamiliar concluída em cada três horas em janeiro e junho desta ano, a maioria segundas residências, o que não é sustentável. A mesma fonte permite saber que pelo menos 15% do solo urbano catalão está construído em zona inundável, correspondendo a 705.000 pessoas em situação de “risco geológico por inundação claramente alto”.

Avisa-se ainda que em muitos destes municípios ainda não foram concluídos os planos de proteção civil por risco de inundação.

Quase três milhões em Espanha em zonas de alto risco de inundação

No total do Estado Espanhol, escreve-se no El País serão quase 2,7 milhões de pessoas a viver em zonas de alto risco segundo os mapas de risco do Ministério da Transição Ecológica que estão consultáveis para consulta. Tirando, ressalva-se zonas que ainda não se estudaram.

Os peritos consultados por aquele diário são mais vozes que se juntam às que já citámos. Félix Francés, catedrático de Engenharia Hidráulica da Universidade Politécnica de Valência declara que já se “via vir” algo deste tipo. Até porque “a cartografia regional dos perigos é exaustiva”. Daí que se “teriam de ter adotado medidas estruturais” nas zonas da tragédia.

Já Jorge Olcina, catedrático de Ordenamento do Território, Climatologia e Riscos Naturais da Universidade de Alicante, insiste que ainda há planos municipais de ordenamento urbano dos anos 1970, 80 e 90 que não contemplam os riscos de inundação. Desde os anos 1960 e até 2015, quando a lei do solo obrigou a relatórios de inundabilidade e a declarar não urbanizáveis solos em zonas de risco, a construção foi desordenada e em qualquer lugar. Para ele, esses planos antigos deveriam ser obrigados a adaptar-se à nova legislação e a lei devia ser cumprida.

Por sua vez, Andrés Díez, professor do Instituto Geológico Mineiro de Espanha e especialista em inundações, aponta baterias a outra fator. No seu entender as leis em vigor são muito completas e do melhor da Europa “mas se faltam mecanismos para velar pelo seu cumprimento de pouco serve”. Revela que já encontrou planos de inundação em municípios que ocupam apenas uma linha e que “se não há um técnico competente na comunidade autónoma correspondente que o detete, esse documento incompleto avançará e as suas consequências também”.

Defende assim uma inversão da lógica de começar os planos de mitigação a nível municipal”: “o planeamento deve começar pela bacia hidrográfica, continuar pela região, pelo rio em concreto e, finalmente, o troço problemático do canal”.

Seria hora de repensar o território por causa das alterações climáticas mas a direita prioriza facilitar negócios imobiliários

No Público espanhol, Carles Ibáñez, diretor científico do Centro de Resiliência Climática, também fala em mudar de lógica mas a outro nível. Para ele, até agora, a dinâmica tem sido a de ir reagindo face aos eventos meteorológicos “sem que haja mudado a planificação por parte das administrações”. E agora “temos que repensar o território e aplicar a perspetiva do horizonte das alterações climáticas que acentuam os fenómenos extremos”, o que passa por planificação e por medidas de adaptação diferenciadas que podem implicar demolições, transladar infraestruturas, fazer recuar passeios.

Para a fase de reconstrução apela portanto a que não se volte a construir apenas de forma mais reforçada porque assim “tornamos o problema crónico” e a um redesenho do planeamento.

No El Periódico, José Vincente Sánchez Cabrera, professor de urbanismo na Universidade de Valência não deixar esquece que o caminho que o governo regional de direita estava a implementar era exatamente inverso: “o problema é que o Conselho da Generalitat está a propor um projeto de lei para simplificar a legislação urbanística e retirar garantias ambientais dos processos de construção” quando “o que se exige é precisamente o contrário, estudos rigorosos que evitem construir em zonas sobre-expostas a inundações”.

Em julho passado, o governo valenciano com o apoio da extrema-direita do Vox desceu de 500 para 200 metros o limite para construir hotéis à beira-mar, passando assim a permitir a construção em solos até então não urbanizáveis. Então a esquerda tinha criticado a medida com sendo destrutiva para o território por implementar um “urbanismo predatório”.

No final do mês passado, avançou-se com a consulta pública de um processo de “simplificação de trâmites” dos planos urbanísticos que cria uma via expresso para projetos apresentados como de “interesse autonómico” e permite às empresas substituir autorizações e licenças por “declarações de responsabilidade ou comunicações” sob o pretexto de “agilizar”. Em cima da mesa está ainda que os privados possam gerir instrumentos de planeamento urbano público como os “Programas de Atuação Integrada” e a facilitação do uso de solo não urbanizável para “atividades recreativas ou terciárias”, medidas bastante criticada por grupos ecologistas como o Acció Ecologista-Agró e os Ecologistas en Acción que, de acordo com o El Confidencial, consideram que se favorece a especulação e se coloca em perigo a proteção do território.

Segundo o mesmo jornal, partidos de oposição com representação regional como o Compromís classificam igualmente a reforma como “especulativa”, facilitando o negócio imobiliário à custa do interesse público e da proteção do território. O Partido Socialista de Valência também expressou preocupações com esta liberalização que poderia implicar uma nova fasede crescimento urbanístico descontrolado.