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A série televisiva despertou a atenção do público para o escândalo que levou a que mais de 700 funcionários fossem injustamente punidos devido a falhas na contabilidade. Alguns funcionários foram presos por falsificação de contabilidade e roubo, outros sofreram danos financeiros e de reputação.
Posteriormente, os processos judiciais interpostos contra os Correios revelaram que muitas das deficiências identificadas pela Horizon IT foram causadas por erros no sistema de ponto de venda eletrónico. Os Correios tinham conhecimento deste facto e não o tinham divulgado. A consternação pública levou o governo a pedir, em setembro de 2020, um inquérito público independente, conduzido por um juiz.
Os inquéritos são a resposta preferida do governo a questões de interesse público. Por vezes, investigam acontecimentos de grande visibilidade, como é o caso do atual "inquérito COVID" sobre a resposta do Governo à pandemia, outras vezes tratam de assuntos de menor relevo.
O sucesso de Mr. Bates vs The Post Office levou a um maior escrutínio num momento crucial. A partir de janeiro de 2024, o inquérito entrou na sua fase final, que examina os processos judiciais contra os gestores locais dos Correios (sub-postmasters) e outros. Esta é, sem dúvida, a parte mais politizada e significativa do inquérito.
Lições a tirar
Os inquéritos públicos destinam-se a retirar a pressão de assuntos altamente politizados e a examinar as questões de uma forma metódica e objetiva. Esta nova consciencialização pública do escândalo traz, portanto, vários desafios para o inquérito.
Pelo facto de a fase final dos trabalhos do inquérito estar sujeita a um maior escrutínio, é provável que isso traga consequências.
Como o próprio nome indica, os inquéritos têm por objetivo fazer perguntas e tirar lições. Acima de tudo, têm por objetivo evitar a repetição de erros e injustiças, em vez de serem consumidos por discussões sobre culpas.
Não é esse o papel da cobertura mediática, que, pelo contrário, realça a natureza escandalosa dos temas sob investigação. As questões de culpa e responsabilização, bem como os depoimentos e a conduta de testemunhas individuais são, por conseguinte, o foco das manchetes.
Isto significa que, quando os inquéritos divulgam os seus relatórios, a atenção do público se centra no facto de as pessoas se terem "safado" no relatório ou de terem sido criticadas. Centrar a atenção nestes aspetos arrisca-se a ofuscar as lições preciosas que o inquérito retirou.
Os inquéritos têm como objetivo fundamentar as respostas políticas às crises através das suas recomendações. Por este motivo, os governos alegam frequentemente que não podem abordar os assuntos até que o relatório do inquérito seja apresentado. De forma mais cínica, os inquéritos são por vezes acusados de atirar os assuntos para as calendas por demorarem tanto tempo a apresentar as suas conclusões.
No entanto, a divulgação da série da ITV levou o Governo a legislar imediatamente sobre as questões da indemnização e da ilibação dos funcionários dos Correios.
Corre-se assim o risco de antecipar as conclusões do inquérito, que provavelmente abordarão estes assuntos. Sem ter em conta o relatório do inquérito, a resposta do Governo poderá não ser tão boa quanto poderia ser. É também possível que as conclusões do inquérito contradigam mais substancialmente o que o Governo decida fazer agora.
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Cobertura mediática dos erros judiciais
A explosão da atenção pública sobre o escândalo dos Correios mostra que a cobertura mediática pode influenciar a forma como escândalos semelhantes são investigados e respondidos. As vítimas do escândalo da Horizon IT congratularam-se com a atenção acrescida que a série da ITV suscitou. Outras perguntaram por que razão foi necessário uma série televisiva para, finalmente, desencadear uma ação em relação a erros judiciais que há muito se arrastam.
As pessoas afetadas por outros escândalos manifestaram a sua frustração pelo facto de o governo parecer muito menos interessado em agir para lhes assegurar justiça a elas. Por exemplo, o escândalo do sangue contaminado, em que milhares de pessoas com doenças hemorrágicas foram infetadas com VIH e hepatite devido à utilização de fatores de coagulação contaminados nas décadas de 1970 e 1980. Este escândalo também envolveu danos e perdas de vida significativos e atingiu muito mais pessoas do que o escândalo dos Correios.
Mas nesse caso, que não foi representado em televisão, o Governo pareceu muito mais disposto a confiar num inquérito público lento e prolongado como forma de responder ao escândalo e determinar a forma como as vítimas são indemnizadas. O atual inquérito sobre o escândalo do sangue contaminado é, ele próprio, a segunda investigação sobre o assunto, está em curso desde 2017 e a publicação do relatório final foi adiada para maio de 2024.
É preocupante que o Governo só agora tenha atuado em relação ao escândalo dos Correios devido ao "interesse e conhecimento públicos".
O facto de um drama sobre um grave erro judiciário ter atraído a atenção do público e dos políticos é uma prova do poder político da arte. No entanto, o facto de ter sido necessária esta série televisiva para pôr a justiça em cima da mesa revela a própria lentidão do Governo em lidar com injustiças. O facto de os inquéritos públicos, notoriamente lentos, serem a resposta mais típica aos escândalos britânicos é precisamente o que pode deixar as necessidades das vítimas sem resposta durante demasiado tempo.
Nathan Critch é doutorando no Departamento de Ciência Política e Estudos Internacionais da Universidade de Birmingham. Artigo publicado no portal The Conversation. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net.