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Como a direita tomou o poder na Bolívia

Vários fatores contribuíram para o golpe contra Morales, como a crise da legitimidade do MAS e o ressurgimento da direita boliviana. Mas este não poderia ter tido sucesso sem o apoio da polícia, do exército e da embaixada americana. Por Benjamin Dangl.
Manifestação contra o golpe de Estado na Bolívia. Novembro de 2019. Foto de: fotospublicas.com.
Manifestação contra o golpe de Estado na Bolívia. Novembro de 2019. Foto de: fotospublicas.com.

Regressar à Bolívia, a La Paz, após o golpe de Estado de novembro último, era como se voltasse a uma cena de crime. Depois da expulsão do presidente Evo Morales, Jeanine Áñez, presidente interina escolhida pela direita mais dura, dirige o país com mão de ferro.

A repressão estatal foi lançada a seguir ao golpe de Estado. Causou dezenas de mortos e o governo trancou os seus inimigos políticos atrás das grades. Hoje a administração Áñez manipula a pandemia para justificar novas medidas de repressão contra a dissidência. Ela faz parte da vaga de direita que se espalha nas «Américas».

Aquando da minha visita, em março de 2020, o estigma dos confrontos violentos que se seguiram às eleições, desfigurava ainda a cidade. As cicatrizes deixadas pelos incêndios nas barricadas e os vestígios de foguetes ainda marcam os cruzamentos [segundo a tradição de luta dos mineiros, o lançamento de paus de dinamite é comum durante as manifestações]. Os graffitis ao longo das ruas de La Paz denunciam "Áñez – Assassina". Um sentimento geral de medo pairava no ar.

A cidade estava repleta de rumores relativos a controlos policiais e as detenções políticas eram comuns. A vida quotidiana continuava como de costume no trânsito e no sol do centro da cidade, enquanto a violência estatal ocorria nas sombras.

Numa manhã, viajei para El Alto no teleférico da cidade para me encontrar com o jornalista Julio Mamani. No caminho, passei por centenas de mineiros marchando em La Paz provenientes de El Alto, os seus capacetes a brilhar ao sol, os seus gritos misturados com as buzinas dos autocarros. Ao mesmo tempo, as mulheres reuniam-se para marchar contra a ascensão do femicídio, usando lenços verdes denunciando Morales e Añez.

Julio Mamani compara o governo de Áñez aos ditadores bolivianos do passado. "Em 1979, testemunhei o massacre do dia de Todos Santos [1 de Novembro], orquestrado pelo General Alberto Natusch Busch. A [repressão do Estado] é agora mais sofisticada. Não caçam da mesma maneira. Usam outras formas, a intimidação", disse ele. "É uma espécie de vingança", disse ele.

A coordenação dos esforços da direita mergulhou o país nesta situação. Mas muitos outros elementos levaram à destituição de um dos presidentes mais populares da história boliviana.

O presidente Morales e o partido MAS (Movimento para o Socialismo) lideraram o país durante catorze anos. Durante esse período, o MAS reduziu significativamente a pobreza, financiou programas sociais populares, graças aos vastos recursos naturais da Bolívia, impôs a sua soberania económica e política face ao imperialismo norte-americano e ao capitalismo mundial.

Os camponeses pobres dos povos originários foram muito beneficiados por este projeto, constituíam a base do apoio sobre a qual o MAS foi fundado. Mas, aos olhos da direita racista boliviana, esta política era um crime. Ela queria o seu poder e os seus lucros de volta.

Durante os seus anos no poder, o MAS também implementou ações e políticas que contribuíram para uma crise de legitimidade no período que antecedeu as eleições de outubro de 2019. Há vários anos, vários setores da esquerda e movimentos sociais vêm culpando o governo do MAS pelo aumento da violência contra as mulheres, pelos perigos causados, pelo aprofundamento do extrativismo, pela má gestão dos enormes incêndios que o país sofreu em 2019, pela corrupção do Estado, por abusos de poder, etc...

"Para entender o que está a acontecer neste momento, na Bolívia, é essencial entender os processos de divisão e deslocamento que os movimentos sociais vivenciaram durante o mandato de Evo Morales", escreveu a socióloga e historiadora boliviana, Silvia Rivera Cusicanqui, em novembro de 2019. "Movimentos que tinham começado por ser a base do presidente olharam cara a cara para o poder de uma esquerda que impunha a sua via e lhes negava qualquer autonomia".

Estas críticas e estas questões acumularam-se ao longo dos anos. O ponto de rutura foi a recusa de Morales em reconhecer os resultados do referendo de 2016 [21 de Fevereiro], onde a maioria da população [51,5%] lhe negou a possibilidade de se candidatar novamente às eleições presidenciais de 2019. Com a aproximação das eleições de 2019 em 20 outubro, o MAS e Morales ficaram assim atolados numa crise de legitimidade. Esta enfraquecia-os face a uma direita que tinha reunido as suas forças e capitalizado com os erros do MAS.

Nas semanas que antecederam as eleições, a oposição da direita tinha espalhado rumores de que seriam manchadas por fraudes. A possibilidade de tais fraudes durante as eleições de 20 de outubro de 2019, que deram a Morales um novo mandato, foi amplamente debatida e estudada. Em La Paz, a maioria das pessoas com quem falei, em março de 2020, não acredita no que diz a oposição, uma fraude "massiva" cometida pelo MAS. Pensam, no entanto, que houve provavelmente irregularidades, como acontece frequentemente. Independentemente da extensão ou mesmo da existência da fraude, as alegações da Organização dos Estados Americanos, em plena crise de outubro, não deixaram de lançar combustível sobre o fogo e estimularam a violência no país.

Após a eleição, os adversários de Morales aliaram-se ao líder de direita, Fernando Camacho, e a outras personalidades racistas. Fomentaram a desestabilização e a violência em todo o país para expulsar Morales. Estes esforços abriram caminho para uma intervenção policial e militar, em nome da ordem, que se efetivou. A 8 de Novembro, a polícia nacional amotinou-se contra o governo e os militares "sugeriram" que Morales se demitisse a 10 de Novembro.

Num tal clima de violência e de ameaças, Morales e outros líderes do MAS foram forçados a fugir ou a entrar na clandestinidade. Temendo pela sua vida, Morales deixou o país e foi para a Cidade do México a 10 de novembro. A direita planeou tomar o poder e aproveitou o vácuo para entrar em funções com a bênção das forças armadas bolivianas e da embaixada dos Estados Unidos.

A 12 de Novembro, diante de um Congresso vazio, a senadora de direita, Jeanine Áñez, declarou-se presidente. Ela celebrou a sua entronização segurando uma enorme Bíblia. "A Bíblia está de volta ao palácio do governo", disse ela. "Estou comprometida com o regresso da democracia e da tranquilidade ao país. Alguns dias depois, mais de uma dúzia de manifestantes e transeuntes desarmados caíram sob os golpes de repressão em Senkata [distrito de El Alto] e Sacaba [cidade do departamento de Cochabamba], as principais áreas de resistência ao regime golpista.

Vários fatores contribuíram para esse golpe: a crise da legitimidade do MAS, o ressurgimento da direita boliviana e as suas intrigas. Mas não poderia ter tido sucesso sem o apoio da polícia, do exército e da embaixada americana.

Após a tomada de poder por Áñez, a Bolívia viveu as piores violências de Estado e perseguições políticas em décadas.

“Eles criminalizam a mobilização social e os dirigentes de movimentos – todos e todas são objeto de investigações severas”, explicou-me o jornalista boliviano Fernando Molina num café de La Paz. “Caso se verifique que estão ligados a Evo Morales, são acusados e são encarcerados. Esta sociedade fascista utiliza a justiça para evitar usar a brutalidade dos linchamentos mas o que está a fazer é a dissimulá-los sob formas institucionais. É um desastre para os direitos humanos”.

“Vivemos uma “bolsonarização” da Bolívia”, explicou Molina. “É a versão latino-americana da alt-right nos Estados Unidos, o trumpismo.” O golpe de Estado e o governo Áñez reforçaram este movimento: “um movimento de extrema-direita, anti-institucional, anti-partidos, pró-armas, pró-Trump, católico ou evangélico como nos casos de Añez ou de Camacho, dirigente de Santa Cruz. A estes, é preciso juntar os movimentos anti-homossexuais, anti-feministas – grupos muito fortes que consolidaram as diversas facetas que insuflam este movimento”:

O governo Áñez ameaça parar os principais avanços progressistas postos em prática pelo MAS, assim como as vitórias conquistadas nas ruas da Bolívia por grandes movimentos sociais, operários e indígenas.

“O golpe de Estado não tem apenas como alvo o Estado, o governo, mas também ataca as organizações dos movimentos sociais”, explicava em novembro último a militante feminista aymara, Adriana Guzmán. “O que nós perdemos é a possibilidade de continuar o processo de transformação ao lado do Estado”, declarou Adriana Guzmán. “Mas não perdemos esperança. Não perdemos as nossas convicções, não perdemos os nossos sonhos, não esquecemos a urgência de tornar um outro mundo possível. É muito mais difícil num Estado fascista, mas continuaremos a fazê-lo”.


Benjamin Dangl leciona jornalismo no Departamento de Desenvolvimento Comunitário e de Economia Aplicada da Universidade de Vermont.

Texto publicado em A L’Encontre. Traduzido por António José André para o Esquerda.net.

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