“Combater a guerra é também combater quem lucra com a guerra”

19 de março 2022 - 18:42

Num comício pelo fim da invasão à Ucrânia, Catarina Martins anunciou que o Bloco vai propor medidas fiscais para responder ao aumento dos preços da energia, taxando as empresas do setor que multiplicaram os seus lucros em tempo de guerra.

PARTILHAR
Comício do Bloco este sábado em Lisboa. Fotos Esquerda.net

O Bloco organizou este sábado um comício em Lisboa pela paz e pelo fim à invasão da Ucrânia, com intervenções do ativista português das missões de salvamento de refugiados no Mediterrâneo, Miguel Duarte (ler notícia), e dos dirigentes bloquistas Luís Fazenda, Marisa Matias e Catarina Martins.

Na intervenção de encerramento do comício, Catarina Martins falou dos últimos “24 dias que mudaram tudo” e reafirmou que “o Bloco condena esta guerra com a mesma convicção com que condenou todas as guerras do nosso século”. Fá-lo porque “sabemos que não há contexto histórico que justifique a agressão de um povo, que não há disputa territorial que justifique o bombardeamento de uma maternidade ou de uma escola, com a certeza de que não há dificuldade militar que justifique a guerra contra civis”.

E à “firmeza de quem condena todas as guerras juntamos uma outra ideia firme: os países europeus têm a obrigação de receber qualquer pessoa que foge da guerra, de qualquer guerra”, dado que “um refugiado é um refugiado, venha de onde vier, e merece ser acolhido com a dignidade com exigimos para qualquer pessoa”.

Na sua intervenção, a coordenadora do Bloco deixou ainda palavras de apoio aos “corajosos combatentes que na Rússia lutam em nome da paz”, como a manifestante idosa sobrevivente ao cerco de Leninegrado ou a produtora de televisão que interrompeu o noticiário em direto com mensagens contra a propaganda de guerra. Mas também deixou críticas ao “enorme cinismo e irresponsabilidade das elites europeias” que furaram o embargo à venda de armas à Rússia nos últimos anos.

Quanto ao agravamento da situação económica como consequência da guerra, em particular a crise energética que se reflete no aumento do preço dos combustíveis, Catarina defende que o Governo deve tomar três medidas no imediato: reduzir a taxa de IVA da eletricidade e gás para o escalão mínimo; eliminar o chamado “adicional ao Imposto sobre produtos petrolíferos”, introduzido em 2016 quando o preço dos combustíveis estava em baixa; e evitar a dupla tributação dos combustíveis, uma vez que o IVA também incide sobre o ISP no preço pago pelos consumidores.

No entanto, acrescentou Catarina, a resposta à crise não se deve limitar a mudanças fiscais e é preciso evitar que as grandes empresas continuem a aproveitar-se da tragédia para faturarem lucros estratosféricos, aproveitando-se do modelo de mercado desenhado pelos governos europeus. Com a recuperação da procura após as restrições da pandemia, “a margem obtida pelas petrolíferas duplicou no ano passado”, lembrou a coordenadora do Bloco, citando os lucros de 457 milhões da Galp, que os distribui aos seus acionistas. “É justo que a GALP lucre com a pobreza de quem não tem alternativa senão pagar os preços especulativos dos combustíveis?  O Estado é acionista da GALP, como votou o representante do governo esta decisão? O que pretende fazer para travar estes ganhos?”, questionou.

Esse aproveitamento das petrolíferas está a ser imitado pelos produtores elétricos, que também beneficiam de um mercado desenhado à medida dos seus interesses. E quando o Bloco propôs no ano passado a eliminação dos “lucros caídos do céu” no caso das barragens, que viram o preço da sua eletricidade aumentar colado ao preço do gás e das emissões de CO2, “PS, o CDS e o Chega juntaram-se para chumbar o projeto do Bloco”.

Catarina Martins anunciou que o Bloco irá propor uma sobretaxa que permita traduzir os sobrelucros numa redução da tarifa, estabelecer um preço máximo para a eletricidade produzida a gás e eliminar a sobre-remuneração da eletricidade de fonte hídrica. “São os acionistas das grandes companhias que devem ser chamados a conter os efeitos da crise energética e não quem passa frio ou não tem salário até ao fim do mês para pagar as deslocações para o trabalho”, argumentou Catarina, pois o país não pode aceitar que haja “quem usa o custo tremendo da guerra para aumentar os lucros”.

“Combater a guerra é também combater quem lucra com a guerra e aposta na guerra para impor a sua agenda de retrocesso”, seja no abandono da agenda climática, seja na corrida ao armamento, defendeu, concluindo com a reafirmação da proposta para que se realize uma Conferência de Paz, sob a égide das Nações Unidas, que trave a agressão ao povo ucraniano. Para a coordenadora bloquista, essa é a alternativa ao caminho que “temos de rejeitar em absoluto”: o da escalada da guerra, seja com a zona de exclusão aérea ou outra forma de intervenção direta de países terceiros, que nos colocará “perante o risco real de uma terceira guerra mundial, desta vez também nuclear”.

Luís Fazenda: “A ONU precisa de dar sinais de que quer intermediar este processo de paz”

Luís Fazenda falou do “momento trágico da história europeia” que vivemos e lembrou que o Bloco, ao longo dos seus 23 anos de história, sempre denunciou a ascensão do imperialismo russo, muito antes do recente discurso em que Putin defendeu “o restauro do sonho imperial dos czares”. E recordou que em 2006, “o G7 passou a ser G8 em Moscovo”, numa operação de namoro a Putin por parte das potências ocidentais. “Esse tempo já lá vai, mas alguém ajudou a alimentar esse Putin”, apontou.

Por isso, “estamos hoje aqui profundamente solidários com todos aqueles que na Rússia combatem Putin” e por isso estão a ser perseguidos, sublinhou o dirigente bloquista, defendendo que “não podemos olhar unilateralmente apenas para um dos lados. Temos de olhar para o contexto, sim, mas é um contexto de luta contra um opressor. E o opressor é Putin e a opressão aqui vem do regime russo”.

Fazenda criticou também o simulacro de negociações em curso, em que “só há lugar para a paz do agressor e não para a paz do agredido”. E defende que “a ONU precisa de dar sinais de que quer intermediar este processo de paz e a UE deve estar nessa primeira linha, tal como outros estados”. Daí a necessidade de um consenso para intermediar as negociações “para que elas não sejam num sentido só, que é o da imposição da Rússia à Ucrânia” e que culmine no estabelecimento de forças de interposição, pois “sem isso, continuaremos a assistir à guerra todos os dias nos telejornais”.

Quanto às cimeiras da próxima semana que irão juntar Joe Biden e os líderes da Nato, do G7 e da União Europeia, Luís Fazenda espera que de lá “não surja uma retórica de guerra e uma propaganda de ameaças”. “Se não temos a menor dúvida na condenação do imperialismo russo e da invasão russa, também connosco não praticam censura sobre os crimes da NATO no Iraque, Afeganistão, na Síria e na Líbia. Não somos como o Pilatos, não aceitamos essa censura”.

“É necessário que a União Europeia repense estrategicamente o seu papel e defenda um papel para a paz. Aquilo que os EUA pensam acerca do mundo pode não ser o que a Europa e os seus estados soberanos possam pensar. E nós não estamos interessados numa estratégia que nos leve para o Mar da China ou para outro lado qualquer”, prosseguiu Fazenda, reconhecendo a necessidade de “encontrar mecanismos políticos e diplomáticos” para a defesa comum e cooperação de estados soberanos para defender a Europa.

Mariana Mortágua

E cancelar a dívida externa da Ucrânia?

17 de março 2022

Luís Fazenda revelou ainda ter mantido na véspera com Marisa Matias conversações com representantes de um partido de esquerda na Ucrânia, o Movimento Social, em que além dos pedidos de solidariedade internacional, seja no acolhimento de refugiados ou na criação de corredores humanitários, destacavam a defesa do cancelamento da dívida do país. “Dizia ele que a Ucrânia já estava antes sob uma troika, mas com a destruição do país estaremos séculos a pagar essa dívida”, afirmou Fazenda, concluindo que “essas dívidas não têm lugar nestas condições” e criticando os partidos da direita que “querem continuar a manter o domínio das troikas sobre a Ucrânia”.

Marisa Matias: “A resposta não pode ser mais guerra, tem de ser política”

Na sua intervenção, a eurodeputada do Bloco falou das mudanças que têm acontecido nas últimas semanas na política da União Europeia, que se tem reorientado no sentido da militarização do espaço europeu, e criticou a “hipocrisia” dos países que aprovaram sanções e continuaram a exportar armas para a Rússia ou da política de acolhimento de refugiados, bem como dos recuos na política de transição climática.

Marisa Matias defende que “a União Europeia pode ter um papel determinante no processo de paz se assim o entender”, ajudando a mediar o conflito “e não lançar mais achas para a fogueira”. Em vez de ser “um mero prolongamento de interesses terceiros” com a remilitarização, o seu papel futuro “pode ser e deve ser um papel de cooperação e de solidariedade”.

Para Marisa, o reforço da via militarista “põe ainda mais em causa o nosso futuro comum” e “a resposta não pode ser mais guerra, a resposta tem de ser política”. Mas até agora as medidas europeias vão no sentido contrário e “desde 27 de Fevereiro a União Europeia passou, pela primeira vez na sua história, a exportar armas” e países como a Alemanha, “que durante 70 anos não se permitiu intervir directamente em conflitos com armas, mudou drasticamente de posição, passando não só a exportar armas para zonas de conflito como a aumentar a despesa militar em 0,5% do seu PIB”. Mas ao mesmo tempo, “só ao quarto pacote de sanções europeias, decidido há apenas quatro dias, se incluiu a proibição total de qualquer transação com empresas detidas pelo Estado russo na indústria militar russa”, ou se mencionou as empresas que estão a apoiar a invasão, na logística e materialmente. E também só agora ficou incluído o impedimento Estados Membros de exportarem bens de luxo para a Rússia, “apesar de se afirmar desde o início que um dos objetivos das sanções económicas da União Europeia é afetar directamente as elites russas”, apontou.

Mas a “hipocrisia” das sanções ficou ainda mais evidente com a investigação de um consórcio de jornalistas, ao revelar “que apesar do embargo da União Europeia que desde Julho de 2014 proíbe totalmente a venda de armas à Rússia, na sequência da anexação da Crimeia, dez países da UE violaram o embargo e continuaram a vendê-las”, prosseguiu Marisa.

A dependência energética de alguns países europeus em relação a Rússia levou a que as ameaças de sanções neste domínio resultassem num recuo. “E assim se excecionaram das sanções a energia nuclear civil e o transporte de “certos produtos energéticos” para o espaço da União. Veremos agora quanto tempo dedicará a União Europeia, e os seus Estados Membros a estudar os disfarces legais para fazer desta excepção a regra. Ou quanto tempo demorarão a correr para os braços de Biden e para a dependência do gás natural liquefeito dos Estados Unidos da América”. O recuo na polícia de transição climática, trocando o objetivo de neutralidade carbónica para a aceitação de soluções do passado que nos trouxeram à crise atual”, também deve ser motivo de preocupação. “Plano Verde, transição justa, tudo ficou subitamente pintado a cor de carvão. E o nuclear, que querem pintar de verde à força, ganhou mais fôlego”, constatou a eurodeputada do Bloco, defendendo que “a guerra não pode servir de desculpa para voltar ao modelo energético do século passado, seja pela lavagem verde do nuclear ou do gás, seja pela reabertura de centrais de carvão” e que apenas a mudança das regras existentes e a gestão pública da energia “nos podem ajudar a fazer um caminho sustentável e justo”.

Quanto à mudança de 180 graus na política europeia de refugiados, em que “finalmente a UE assume uma posição acertada”, Marisa defende que ela se deve alargar aos refugiados de todas as proveniências. “Não podemos aceitar solidariedade de geometria variável quando se trata de salvar vidas e de direitos humanos. A solidariedade para quem está a fugir da guerra não pode ser seletiva. Todas as vidas devem valer o mesmo. Guerra é guerra seja em que parte do mundo for”, concluiu.