O que é o Chat Control
A Comissão Europeia apresentou uma proposta que, sob o pretexto de combater o abuso sexual infantil, pretende obrigar plataformas digitais como WhatsApp, Messenger, Signal, serviços de e-mail, chats de jogos e redes sociais a vigiar todas as comunicações dos utilizadores.
O mecanismo proposto funcionaria através da criação de um algoritmo de análise, desenvolvido pelas empresas detentoras das aplicações, que examinaria todo o conteúdo partilhado: mensagens, fotografias e vídeos, independentemente de estarem encriptados ou não. Este conteúdo seria convertido numa cifra no nosso próprio dispositivo e comparado com cifras descarregadas de um servidor centralizado (Análise CSS) para verificar a sua conformidade com os termos da lei vigente.
Caso o sistema, através de inteligência artificial e reconhecimento de padrões, classifique o conteúdo como ilegal (como material de abuso sexual infantil ou suspeita de atividades terroristas), seria automaticamente enviado um relatório a um novo serviço europeu, que por sua vez o encaminharia para as autoridades de justiça competentes para investigação. Tudo isto de forma completamente automatizada, sem intervenção humana prévia.
Questões sobre Direitos Fundamentais
Esta proposta levanta sérias questões quanto à privacidade e à liberdade de expressão. Ao tratar todos os cidadãos como potenciais suspeitos, mina o princípio da presunção de inocência e cria um precedente perigoso. Assemelha-se a outras iniciativas de vigilância que têm sido criticadas por nós no passado: "Com o pretexto de lutar contra o terrorismo, ou contra outras pragas (pornografia infantil, lavagem de dinheiro, narcotráfico), os governos – incluindo os mais democráticos – transformam-se no Grande Irmão, e já não hesitam diante da possibilidade de infringir as suas próprias leis quando o objetivo é espiar melhor os seus próprios cidadãos."
Além disso, o Chat Control entra em contradição com várias garantias legais europeias, como o Artigo 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, o Artigo 12.º da Carta dos Direitos Fundamentais e o Regulamento Geral de Proteção de Dados. A médio prazo, pode instalar um clima de autocensura generalizada, sem impedir que criminosos utilizem ferramentas que fiquem fora do alcance desta lei.
Implicações para a Segurança Digital
A aplicação deste sistema exigiria alterações profundas nos mecanismos atuais de encriptação. Para que os conteúdos pudessem ser analisados, seria necessário fazê-lo antes de serem encriptados, comprometendo a segurança ponto a ponto e criando novas vulnerabilidades suscetíveis de exploração por terceiros. A própria percepção destes riscos por parte das autoridades torna-se evidente quando se constata que os funcionários estatais estariam isentos desta vigilância, uma medida aplicável apenas aos cidadãos comuns.
Em Portugal, a Associação D3 (Defesa dos Direitos Digitais) já questionou o Governo sobre a constitucionalidade desta proposta, recordando que "a ordem jurídica constitucional portuguesa garante a inviolabilidade das comunicações privadas dos cidadãos, proibindo expressamente toda a ingerência das autoridades públicas (art. 34.º da Constituição)."
Também a ANSOL (Associação Nacional para o Software Livre) critica o regulamento: "O Child Sexual Abuse Regulation (CSAR) tem um objetivo inequivocamente crítico e importante, no entanto a iniciativa Chat Control é inequivocamente a opção errada para atingir este objetivo. A iniciativa traduz-se numa mutilação dos direitos fundamentais à privacidade, o que além de comprometer gravemente a segurança e a privacidade de toda a sociedade, demonstra uma fraca resposta ao problema que pretende resolver."
A posição do Bloco
No Parlamento Europeu, o Bloco de Esquerda tem assumido uma posição clara contra o Chat Control. A eurodeputada Catarina Martins tem denunciado a proposta, defendendo a encriptação ponta-a-ponta e a rejeição de mecanismos de vigilância em massa. Esta oposição não significa recusar o combate a conteúdos ilegais nas redes sociais, mas afirmar que este deve ser feito através dos meios judiciais já existentes, com supervisão adequada e com base em suspeitas fundamentadas. A nossa crítica centra-se precisamente no facto de o Chat Control, ao contrário destes meios, substituir o Estado de Direito por um sistema de vigilância automatizada que inverte a lógica da presunção de inocência.
O Bloco alerta ainda para o facto de a proposta da Comissão ignorar o impacto social e político, apresentando soluções técnicas complexas para problemas que exigem respostas sociais, ao mesmo tempo que cria novas fragilidades tecnológicas. Defende, em contrapartida, alternativas concretas que protejam as crianças sem pôr em causa os direitos fundamentais. Entre essas alternativas está o reforço do sistema judicial e policial, com mais meios e formação especializada, a plena aplicação da Diretiva 2011/93/EU que já obriga os Estados-Membros a combater o abuso sexual infantil, e o investimento em educação e consciencialização para a segurança digital. O partido sublinha também a importância de enfrentar causas estruturais como a pobreza e de fortalecer as linhas de apoio e proteção às vítimas, construindo assim uma resposta sólida ao problema, sem recorrer à vigilância indiscriminada da população.
O que fazer
Até ao dia 12 de setembro, os Governos dos países europeus terão de definir a sua posição, numa reunião do Conselho da União Europeia que poderá aprovar uma versão final da proposta a ser votada no Parlamento.
É fundamental contactar o Governo Português – através da Representação Permanente de Portugal junto da UE, do Primeiro-Ministro, do Ministro dos Negócios Estrangeiros e dos eurodeputados – para expressar oposição a esta proposta e defender a encriptação nas comunicações. Os contactos podem ser encontrados no artigo da D3.
O combate ao abuso infantil é uma prioridade inquestionável, mas não pode ser feito à custa da privacidade e da liberdade de todos. O Chat Control não é apenas uma proposta técnica: é uma escolha política sobre o tipo de sociedade que queremos construir. E essa escolha determinará se viveremos numa Europa aberta e democrática, ou num espaço marcado pela vigilância permanente.
Pedro Fernandes é Engenheiro Informático, dirigente do Bloco em Matosinhos e Desenvolvedor no Combate Digital
Links de referência:
https://chatcontrol.pt/
https://crm.edri.org/stop-scanning-me
https://stopscanningme.eu/en/
https://www.patrick-breyer.de/en/posts/chat-control/
https://fightchatcontrol.eu/