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Campanha contra Assange quer esconder o triunfo da Wikileaks

Sem o acesso aos telegramas secretos dos EUA, o mundo não saberia como os seus governos se comportam. Por Patrick Cockburn, The Independent.
Vídeo "Collateral murder": sem a sua divulgação, a história seria deiferente.

No momento em que Julian Assange evitou ser preso ao refugiar-se na embaixada equatoriana em Knightsbridge, para escapar à extradição para a Suécia, e possivelmente para os EUA, os comentadores britânicos atacaram-no com as mais estridentes ofensas. Quase espumaram de raiva ao citar insignificantes exemplos da sua suposta deselegância, ego inflamado e aparência, como se de crimes se tratassem.

Estas críticas dizem muito mais do convencionalismo e do instinto de manada dos opinadores britânicos do que de Assange. Em tudo isto, ignoram o seu feito, como fundador da Wikileaks, ao publicar telegramas do governo dos EUA, dando às pessoas em todo o mundo a possibilidade de ficarem a conhecer o real comportamento dos seus governos. Tal conhecimento público é o âmago da democracia, porque é preciso informar adequadamente os eleitores para que eles sejam capazes de escolher os representantes que levem adiante os seus desejos.

Graças à Wikileaks, foi tornada pública muito mais informação sobre o que fazem e pensam os EUA e os seus aliados, do que em qualquer momento anterior. As únicas revelações que se lhe assemelham foram a publicação dos tratados secretos pelos bolcheviques em 1917, incluindo planos de França e Grã-Bretanha para modelar o mapa do Médio Oriente. Um paralelo mais óbvio é o da publicação dos Documentos do Pentágono graças a Daniel Ellsberg, em 1971, revelando as mentiras sistemáticas da administração Johnson sobre o Vietname. Da mesma forma que Assange, Ellsberg foi vilipendiado pelo governo dos EUA e ameaçado com a mais severa punição.

Um aspeto extraordinário da campanha contra Assange é que os colunistas da imprensa têm todo o à vontade para produzir milhares de palavras sobre as suas alegadas faltas, sem nunca sequer mencionarem os muito mais sérios crimes de Estado revelados pela Wikileaks. Todos estes críticos, e os leitores que concordam com eles, deviam antes ligar o Youtube e observar um vídeo de 17 minutos registado pela tripulação de um helicóptero Apache em Bagdade ocidental em 12 de julho de 2007. Mostra a tripulação do helicóptero metralhando até à morte pessoas no solo, na crença de de que são todos rebeldes armados. De facto, não consigo ver quaisquer armas, e o que num momento foi identificado como arma revelou-se ser a câmara de um jovem fotógrafo da Reuters, Namir Noor-Eldeen, que foi morto junto ao motorista, Saeed Chmag. O vídeo mostra o helicóptero chegando para um segundo ataque a uma carrinha que se detivera para recolher os mortos e os feridos. O motorista morreu e duas crianças ficaram feridas. Ah! Ah!, acertei-lhes, grita um dos tripulantes americanos triunfantemente. “Olhem para esses bandidos mortos”.

Eu estava em Bagdade quando ocorreu o tiroteio e recordo, na altura, tal como outros jornalistas, de não acreditar nas alegações do Pentágono de que os mortos eram todos rebeldes armados, mas não podíamos prová-lo. Não havia multidões de rebeldes armados nas ruas, à vista de toda a gente, com um helicóptero americano a andar por perto. A existência de um vídeo do massacre tornou-se conhecida, mas o Departamento de Defesa recusou-se terminantemente a divulgá-lo sob o Freedom of Information Act. A história oficial do que aconteceu não teria sido contestada efetivamente se um soldado americano, Bradley Manning, não tivesse entregue um vídeo à Wikileaks, que o divulgou em 2010.

Os telegramas obtidos pela Wikileaks foram publicados mais tarde, ainda naquele ano, em cinco jornais – The New York Times, The Guardian, Le Monde, Der Spiegel e El País – mas a resposta ao próprio Assange foi surpreendentemente malévola e desdenhosa. Os jornalistas pareciam zangados por o seu território profissional ser invadido por um especialista informático australiano que estava a fazer um bom trabalho.

Isto em si não teria sido suficiente para que uma parcela tão grande dos média declarasse aberta a temporada de caça a Assange. O que provocou a diferença foram as alegações de violação feitas na Suécia. Alegações de violação destroem uma reputação, por mais que as provas sejam fracas ou não existentes. Quanto à sugestão de que Assange exagerou as possibilidades de ser extraditado para os EUA a partir do momento em que entrasse na Suécia, a questão a saber é quem arriscaria nem que fosse cinco por cento de possibilidades de que o seu voo para Estocolmo pudesse acabar em 40 anos de prisão numa cela dos EUA?

Alguns adotam a linha oficial de que as fugas de informação “puseram vidas em risco”. Este lóbi começou a calar-se quando representantes do Pentágono admitiram, off the record, que não tinham quaisquer provas de que alguém tivesse sido prejudicado de qualquer forma.

Uma resposta mais desdenhosa foi a de que as revelações da Wikileaks não eram tão secretas quanto isso e que os documentos a que Bradley Manning teve acesso não tinham a classificação mais secreta. Outra questão foi-me colocada por um diplomata americano em Cabul, onde eu estava na altura da publicação dos telegramas. Disse o diplomata: “Não vamos conhecer os maiores segredos através da Wikileaks, porque esses já foram divulgados pela Casa Branca, pelo Pentágono ou pelo Departamento de Estado.

Na prática, os documentos da Wikileaks são amplamente informativos acerca do que fazem os EUA e como realmente veem o mundo em que vivemos. Por exemplo, há um telegrama enviado pela embaixada americana em Cabul em 2009 descrevendo o primeiro-ministro Hamid Karzai como um “indivíduo paranoico e fraco, que tem pouca familiaridade com as questões básicas de construção de uma nação.”

Especialistas de Afeganistão comentaram que as falhas de Karzai dificilmente seriam notícia. Esqueceram-se de que há uma grande diferença entre o que o mundo exterior suspeita e o que é confirmado pelos que têm acesso diário ao líder afegão. Aqui estavam experientes funcionários dos EUA dando a sua verdadeira opinião sobre o homem pelo qual americanos e britânicos estavam a combater e a morrer para que se mantivesse no poder.

Todos os governos caem num certo grau de hipocrisia entre o que dizem em público e em privado. Quando é reivindicada abertura democrática sobre ações gerais e políticas, fingem que estão a enfrentar um apelo à transparência total que iria evitar um governo efetivo.

O que o governo americano queria esconder acerca do Afeganistão não era apenas uma embaraçosa avaliação negativa de Karzai, o seu principal aliado local. Era que não tinha um parceiro local afegão credível e, portanto, não podia ganhar a guerra contra os taliban.

Assange e a Wikileaks desmascararam não só as reticências diplomáticas no interesse de garantir o funcionamento do governo, mas a duplicidade para justificar guerras perdidas nas quais dezenas de milhares morreram. A história recente mostra que este segredo oficial, frequentemente auxiliado por jornalistas “embedded”nos exércitos, funciona demasiado bem.

No Iraque, nos meses anteriores às eleições presidenciais de 2004, as embaixadas estrangeiras em Bagdade sabiam e informavam que os soldados dos EUA estavam apenas agarrados a ilhas de território, no meio de uma terra hostil. Mas a administração Bush conseguiu persuadir os eleitores que, pelo contrário, as tropas americanas estavam a lutar e a vencer uma batalha para estabelecer a democracia contra as réstias do regime de Saddam Hussein e os apoiantes de Osama bin Laden

O controlo estatal da informação e a capacidade de manipulá-la torna em grande parte sem sentido o direito de voto. É por isso que pessoas como Julian Assange são tão essenciais a uma escolha democrática.

1 de julho de 2012

Retirado de Information Clearinghouse.

Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net

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