Enquanto a plateia se senta, ouvem “Bom dia” e repetem timidamente. Anabela Rodrigues, a candidata do Bloco de Esquerda à Câmara Municipal de Amadora reforça: “Bom dia”, e recebe uma resposta mais forte. “Isto era suposto ser ao ar livre, mas o tempo é que manda”, diz.
Na sala superior dos Recreios da Amadora, uma plateia cheia começa o dia na sessão “Mudar de Vida: Casa, cuidados e igualdade”, em Lisboa (ver fotogaleria). Depois da apresentação de Anabela, Cândida e Lurdes leem o texto de apresentação sobre o trabalho doméstico, “com calma, que é a primeira vez”. Contam a criação do grupo de Serviço Doméstico (SEDO, “porque acordamos cedo”, diz Anabela) e explicam a história das mulheres do serviço doméstico em luta.
Lutas
“Temos direitos como as outras pessoas”: trabalhadoras domésticas discutem condições laborais
Logo em seguida entra o grupo da SEDO, que conta a vida das trabalhadoras do serviço doméstico em Teatro do Oprimido. Começa com uma mulher, que canta enquanto trabalha a limpar a casa, a cozinhar, a arrumar. Estafada com as tarefas, liga ao marido, que não ajuda nas tarefas domésticas mas contrata uma trabalhadora do serviço doméstico.
Aí é construída a principal oposição, entre a patroa e Zeba, a trabalhadora do serviço doméstico que trabalha das 8h às 19h, seis dias por semana e ganha o ordenado mínimo. “Zeba, faz o jantar”, diz a patroa. “Zeba, limpa o pó dos armários, lava a roupa à mão, varre a cozinha”. As ordens repetem-se.
“Esta é a novela do momento”, diz-se no momento final. “É a novela do trabalho das mulheres”, sublinha Anabela. Quando o teatro é aberto ao público, Cristina diz que “temos de domesticar o marido”, e sugere uma espécie de greve ao trabalho de cuidado, que depois vai a palco para pôr em cena.

Anabela intervém para explicar a contradição entre as duas personagens. “Cruzam-se as duas na luta das mulheres. Uma serve ao marido, outra serve à patroa. Só que estão as duas em conflito uma com a outra. Podiam estar lado a lado, mas não estão”.
O cuidado e a casa
No segundo momento da sessão, abre-se o painel sobre políticas de habitação. Participam Deolinda Martin, ex-vereadora na Câmara Municipal de Lisboa; Ana Rita Alves, investigadora e antropóloga; duas moradoras do antigo bairro da Azinhaga dos Besouros, agora vivendo no Casal da Mira; Ackssana Silva, do Bloco de Esquerda da Amadora e Ricardo Moreira, vereador em substituição na Câmara Municipal de Lisboa.
Se Deolinda relembra as lutas contra as demolições por todo o concelho da Amadora, Ana Rita volta ainda ao Projeto Especial de Realojamento (PER) para explicar que muitas pessoas foram realojadas “não porque não tinham casa, mas porque as suas casas estavam no caminho de futuras infraestruturas rodoviárias” e descreve a forma como muitos bairros acabaram por ficar completamente desligados do resto da cidade.
“Nas Fontainhas morava numa casa de madeira, mas na Azinhaga dos Besouros tinha uma casa de tijolo”, diz Maria Luísa. O seu marido era empreiteiro e viveram no bairro agora extinto. “Eu morava na rua 4, o carteiro chegava lá, o carro chegava lá, fomos nós que pagámos para construir a casa”. Maria Luísa apanhava papelão perto de São Brás, depois tornou-se trabalhadora do serviço doméstico. Agora, no Casal da Mira, para onde foi realojada, paga uma renda mensal.

A sua filha, Cátia, fala de como o PER, que realmente garantiu casa a muita gente também acabou por separar os bairros ao meio, realojando metade das pessoas para um lado e outra metade para outro.
Ricardo Moreira salienta que o mercado de habitação está tão quente que “está a arder”, e em Lisboa as leis que foram criadas permitiram que o problema da habitação se alastrasse. Desde o aumento do turismo à Lei Cristas, foi criado o clima para que o mercado não servisse as pessoas. “Uma das coisas que sabemos das reuniões de Câmara é que toda a habitação que ali é aprovada, não há ninguém nesta sala que tenha a hipótese de conhecer alguém que possa vir a ter dinheiro para pagar essa habitação”, brinca. Mas lembra também que há muitas mulheres que vão às reuniões porque não têm casa, “e a situação não está a melhorar”.
Numa sala cheia, a sessão é interrompida por mais duas mulheres que vieram do Bairro das Marinhas do Tejo, em Santa Iria da Azóia, para contar a sua história, “mas os transportes não são fáceis”. Apesar disso, acabam por se juntar ao painel.
Ackssana Silva, quarta candidata pelo Bloco de Esquerda ao círculo eleitoral de Lisboa nas eleições de 18 de maio, sublinha os casos de muitas mulheres que nasceram em Portugal e continuam a não ser cidadãs portuguesas. E esses problemas vão ao encontro da crise de habitação. “As pessoas que vivem longe de onde trabalham e se levantam cedo de manhã precisam de transportes que funcionem”, diz. E esse é o caso de muitas pessoas que trabalham no serviço doméstico.
“Sabemos que as barracas não são o melhor lugar para as crianças, mas ao menos temos casa”, diz ua moradora do bairro das Marinhas do Tejo. “Estamos à espera de resposta da Câmara Municipal e do Estado”. Ali, os moradores querem que a barracas sejam numeradas pelos serviços públicos, “para termos acesso a uma resposta do Estado”, diz.
Também Preta Lopes vem desse bairro. Explica que construiram a casa ali porque “não havia soluções”. “Eu pergunto: são mães, mulheres lutadoras como eu, como é que nos tiram a casa? Sabemos que estamos ali sem direito, mas só queremos não estar na rua”.
“Dar voz às pessoas”
A coordenadora do Bloco de Esquerda, que esteve a ouvir os testemunhos dos diferentes casos, encerrou a sessão dizendo que “a maioria das pessoas não tem a sua voz ouvida”, o que dificulta “que se tomem decisões sensatas como colocar tetos às rendas”.

“Quem ouvimos falar na TV todos os dias não coloca estas questões”, disse Mariana Mortágua. “Se dermos voz a quem trabalha, percebemos que somos todos iguais”. Aos jornalistas, a dirigente bloquista diz que “esta estratégia é certa porque dá voz às pessoas”. “São pessoas que limpam as casas dos outros, trabalham nos serviços, fazem a construção, que trabalham nos hospitais e não conseguem ter uma vida folgada com o salário que têm”.
Sobre a notícia de que a Agência para a Integração, Migrações e Asilo vai começar a notificar cerca de 5.000 imigrantes para saírem de Portugal, a coordenadora do Bloco de Esquerda disse que o PSD está a fazer campanha “juntando-se à extrema-direita”.
“Quero dar-lhes uma novidade: os problemas do país na saúde, na habitação, nos baixos salários, não são culpa dos imigrantes, são culpa de uma pequena elite que nos explora a todos”, disse Mariana Mortágua, numa sessão que terminou com uma performance das Bandeirinhas Panafrikanistas.