Após enumerar as crises bancárias que assolaram o país – do BCP ao BES, a deputada apresentou as medidas legislativas do Bloco de Esquerda, que visam a intervenção urgente sobre três vertentes da atividade bancária: Estruturas mais transparentes, operações mais simples; Mais exigência sobre a venda de produtos financeiros nos balcões; e o Reforço dos poderes regulatórios e de supervisão.
Frisando que as propostas elencadas “estão muito longe de esgotar a visão do Bloco de Esquerda sobre o sistema financeiro”, Mariana Mortágua destacou que as mesmas “respondem muito claramente a um apelo e a uma responsabilidade na sequência dos problemas identificados no âmbito da Comissão de Inquérito ao BES”.
Reforçando que “estes são os aspetos que decorrem diretamente da experiência do caso Espírito Santo e que devem ser corrigidos para evitar a repetição da história”, a dirigente bloquista defendeu que é “indispensável uma revisão mais profunda dos modos e regras de funcionamento da banca a nível fiscal, de defesa dos consumidores ou de proteção às famílias endividadas, por exemplo”.
“Acima de tudo, confirma-se neste caso o que a realidade teima em provar-nos da forma mais dura: a banca é demasiado importante para estar nas mãos de banqueiros, chamem-se eles Jorge, José, João ou Ricardo.”, vincou.
O Esquerda.net transcreve, na íntegra, a intervenção da deputada bloquista Mariana Mortágua durante o debate de iniciativas legislativas sobre instituições financeiras:
“Senhora Presidente
Senhor secretário de Estado,
Senhoras e Senhores Deputados,
Em 2007, o BCP ganhou o prémio de World's Best Developed Market Bank" e "Best Foreign Exchange Bank" em Portugal pela Global Finance, e ainda como o "Best Private Bank" em Portugal, pela Euromoney. Em 2008, Jardim Gonçalves começava a ser julgado por vários crimes económicos. Créditos não cobrados a clientes e acionistas, sociedades offshore que serviam para comprar ações próprias, uma imaginação prodigiosa ao serviço da contabilidade criativa.
Jorge Jardim Gonçalves era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
Em 2008 explodia o caso BPN, banco da confiança de altos quadros do PSD, entre eles Cavaco Silva. Créditos de favor, empresas e garantias fictícias, contabilidade paralela e até um banco criado à medida dos negócios de Oliveira Costa e Dias Loureiro. Grande parte do sistema funcionava, como é lógico, através de veículos offshore.
José Oliveira Costa era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
Meses depois, descobrimos o BPP. O banco de Rendeiro dedicava-se a gerir fortunas e a fazer uso de sociedades offshore para embelezar resultados, retirar do balanço riscos de clientes e para pagar exorbitâncias (não declaradas) aos seus administradores, nomeadamente através de uma conta detida no BPP Cayman.
João Rendeiro era, à data, o último banqueiro que era preciso julgar para que o sistema financeiro pudesse, finalmente, voltar ao normal.
Em maio do ano passado, Joaquim Goes, administrador do BES, recebia o prémio carreira atribuído pela Universidade Católica pelo reconhecimento da "sua excecional carreira profissional na área de gestão". No discurso, o premiado recordou João Paulo II, apelou à "solidariedade desinteressada" do Papa Francisco, e agradeceu aos seus antigos chefes e mentores, Ricardo Salgado e Goes Ferreira. Mais ou menos pela mesma altura, o BES realiza uma operação de aumento de capital, subscrita a 178%, descrita pela comunicação social como um sucesso.
Poucos meses depois, Joaquim Goes foi suspenso pelo Banco de Portugal. Entre outras coisas, o banco terá sido usado para financiar negócios da família Espírito Santo, em parte através de sociedades offshore. Destacam-se ainda os créditos desaparecidos do BES Angola, banco distinguido no ano passado com o "Best Bank Award", da Global Finance, o prémio para melhor banco em Angola.
Ricardo Salgado é, hoje, o último banqueiro que é preciso julgar para que o sistema bancário possa, finalmente, voltar ao normal.
No último caso, como no primeiro, o Banco de Portugal (e já voltaremos ao supervisor) foi incapaz de identificar os anos e anos de contabilidade criativa, a acumulação de fraudes e de operações de branqueamento de capitais.
Houve erros na supervisão e eles devem ter consequências políticas.
É neste contexto que a recondução do Governador, bem como as declarações do Governo, não deixam de ser surpreendentes.
Disse o Governo, ontem ao anunciar a recondução de Carlos Costa no Banco de Portugal, que faz “uma apreciação claramente positiva do trabalho do governador”. É caso para perguntar o que é que tanto impressionou o Governo. O facto do Banco de Portugal ter tido conhecimento do prejuízo e só o ter comunicado meses depois aos clientes e à CMVM? O facto de não ter sido capaz de destituir, a tempo, Salgado da administração do BES? A “competência” de apostar todas as fichas numa estratégia de blindagem que, para lá de irrealista, foi sendo sistematicamente violada.
Ou será que a verdadeira coragem que tanto agrada ao Governo foi o comportamento de quem sempre deu o corpo às balas por Passos Coelho e Maria Luís Albuquerque, assumindo como suas decisões que foram, no mínimo, partilhadas com o executivo?
Esta é a pergunta que ficou por responder quanto às consequências políticas do BES, mas não nos perdemos dela para deixar de lado o essencial. E o essencial é que o sistema financeiro precisa de uma grande volta. Ela vem sendo prometida, não nos esquecemos, desde a grande crise financeira de 2007. Obama, Sarkozy, Blair, Merkel juntaram-se, então, em coro e a uma só voz a prometer que tudo iria ser diferente. A finança ia ser posta na ordem e os offshores controlados. No essencial, para a finança, sabemos hoje, ficou tudo na mesma. O mesmo não se pode dizer para a vida dos europeus e portugueses que está bem pior do que em 2007.
Quase todos os esquemas que enumerei no início passavam por offshores, lugares construídos, precisamente, para escapar aos olhares reguladores e tributários. Em qualquer uma destas crises bancárias as práticas de investimento e especulação inundaram a atividade comercial, pondo em causa a estabilidade e segurança dos depositantes e, de uma forma ou de outra, todas conduziram à intervenção do Estado e à injeção de dinheiros públicos.
O que nos remete, diretamente, para as propostas que aqui vamos discutir hoje. O pior que podia acontecer, depois da comissão de inquérito, era resolvermos tudo, como algumas das propostas apresentadas pela maioria, com comissões para estudar, apresentar relatórios, tentativas de diligências internacionais e um sem número de medidas dignas da mais boa vontade mas que nada mudarão no dia-a-dia da atividade financeira.
É por isso mesmo que o Bloco defende a intervenção urgente sobre três vertentes da atividade bancária:
- Estruturas mais transparentes, operações mais simples;
- Mais exigência sobre a venda de produtos financeiros nos balcões;
- Reforço dos poderes regulatórios e de supervisão.
Estas propostas estão muito longe de esgotar a visão do Bloco de Esquerda sobre o sistema financeiro mas respondem muito claramente a um apelo e a uma responsabilidade na sequência dos problemas identificados no âmbito da Comissão de Inquérito ao BES.
Elenquemos, e expliquemos resumidamente, os objetivos a que nos propomos.
Melhorar a transparência das estruturas bancárias.
O Bloco quer alargar a exigência de registo no Banco de Portugal aos acionistas que escondem a sua identidade participando no capital dos bancos através de outras sociedades. Não conhecer estes “beneficiários últimos” facilita o uso de informação privilegiada, por exemplo para negociar com ações do próprio banco.
Combater a opacidade das operações financeiras
Devem ser impedidas todas as operações com entidades e empresas sedeadas em jurisdições offshore não-cooperantes ou cujo beneficiário último não é conhecido. É uma medida de princípio: Portugal não pode compactuar com quem impede a investigação de fraudes fiscais ou branqueamento de capitais. Queremos tolerância zero neste ponto.
Simplificar as estruturas dos grupos bancários
Conglomerados complexos, que incluem partes financeiras e não-financeiras, por vezes com sede em jurisdições inatingíveis, abrem o caminho para operações em conflito de interesses. Pior: a complexidade destas estruturas é um alçapão para todas as práticas, todas as operações de planeamento fiscal e todas as negociatas como vimos no caso da PT ou em múltiplas empresas do GES.
Proteger os clientes de retalho
Além da economia e dos contribuintes, as crises bancárias atingem sempre os clientes dos bancos. No caso do BES, são “os lesados do papel comercial”. A diferença entre a informação tida pelo banco, que vende produtos próprios, e pelo cliente, que confia no primeiro e no seu gestor de conta, implica proteger o lado mais frágil da relação.
Propomos a proibição da venda, aos balcões dos bancos, de valores emitidos por estes ou por entidades com eles relacionadas. Em paralelo, propomos medidas para impedir subterfúgios como o que o BES usou para escapar à supervisão da CMVM na colocação de dívida do GES (pelo seu valor ou pelo número de compradores abaixo de 150, o papel foi classificado como oferta privada). O critério determinante deve ser o tipo de cliente e não o número ou o valor da emissão.
Melhorar a supervisão bancária
O Banco de Portugal deve vigiar de forma direta e permanente a atividade dos bancos, assumindo a função de auditoria e controlo interno. Assim, as irregularidades podem ser conhecidas cedo e sem risco de represálias exercidas por administradores ou acionistas sobre os funcionários que as denunciem. Tal como sucede noutros regimes jurídicos e tal como recomenda a Autoridade Bancária Europeia, o Banco de Portugal deve ser reforçado na avaliação da idoneidade dos gestores – indispensável ao exercício da atividade financeira –, de forma independente em relação a eventuais processos internos ou a decisões que deles resultem.
E os auditores externos?
O Banco de Portugal deve ser diretamente envolvido na escolha dos auditores externos, na definição da sua remuneração e da sua rotação, garantindo que atuam de forma isenta, livres da relação perversa de cliente-fornecedor que hoje têm com os bancos que auditam. É incompreensível, de resto, que as propostas da maioria sobre esta matéria não levem em linha de consideração as recomendações da própria comissão de inquérito e não ponham ponto final a nenhumas das disfunções que têm permitido a verdadeira amnésia coletiva que a cada crise toma a banca de assalto.
Estas medidas são suficientes para resolver os problemas do sistema financeiro?
Não. Estes são os aspetos que decorrem diretamente da experiência do caso Espírito Santo e que devem ser corrigidos para evitar a repetição da história. É indispensável uma revisão mais profunda dos modos e regras de funcionamento da banca a nível fiscal, de defesa dos consumidores ou de proteção às famílias endividadas, por exemplo.
Mas, acima de tudo, confirma-se neste caso o que a realidade teima em provar-nos da forma mais dura: a banca é demasiado importante para estar nas mãos de banqueiros, chamem-se eles Jorge, José, João ou Ricardo. Qualquer um deles ou qualquer outro que seja dono de um banco não hesitará em usar o dinheiro que lhe foi confiado para lucro próprio. Afinal, esse é mesmo o propósito dos bancos privados. Nenhum deles está vinculado ao interesse comum. Por isso mesmo, o Bloco de Esquerda recusa a utilização de dinheiros públicos para privatizar bancos privados. Pelo contrário, só o controlo público da banca pode garantir transparência, estabilidade, eficiência e controlo democrático do sistema financeiro".