Os bairros SAAL (Serviço Ambulatório de Apoio Local) vão arrancar no auge da revolução de 25 de Abril, sobretudo nas cidades e concelhos respetivos de Lisboa, Porto, Setúbal, mas também no Algarve, Alentejo, Coimbra. Continuam a inspirar caminhos para resolver o problema da habitação e a questionar as rotinas burocráticas e paternalistas.
Enquanto nos outros países europeus os bairros de lata (slums, bidonvilles, chabolas) foram desaparecendo ao longo das décadas de 1960 e 70, Portugal registava centenas de milhar de famílias a viver em situações desumanas, em bairros ostracizados pelo Estado e polícias. Durante o fascismo, muitos dos bairros de barracas ou casas abarracadas eram designados pelas autoridades de “fora de portas” ou “clandestinos”, muitos dos seus habitantes tratados como tal.
Como conta o arquiteto Nuno Teotónio Pereira, um dos entusiastas dos Bairros SAAL, “em 1963 o Diário Popular realizou um inquérito exaustivo ao problema da habitação, cujas conclusões foram organizadas em 19 artigos. No título dizia-se que o número de barracas em todo o país passara de 10 mil em 1956 para 50 mil em 1963. Os restantes artigos foram todos cortados pela censura”. Por essa altura um outro estudo calculava as necessidades de habitações em 600 mil, juntando barracas, casas abarracadas, ilhas, partes de casas e casas sem condições mínimas.
Bairro SAAL Vale Pereiro, Grândola
Nos primeiros dias e semanas a seguir ao 25 de abril de 1974 as pessoas ocupavam casas e urbanizações desabitadas ou em fase avançada de construção, muitas vezes ajudadas por comités de soldados dos quarteis, pela vizinhança e partidos de esquerda, beneficiando da paralisação das forças policiais e o facto de as leis estarem como que suspensas.
A determinada altura o governo instalado pela revolução lançou o Programa SAAL, para construção de bairros e substituição das barracas, que gerou adesão por todo o país.
A participação das pessoas na construção das casas e bairros criou uma dinâmica de corrida contra o tempo, intuindo que aquela janela de esperança não permaneceria aberta por muito tempo.
A explosão revolucionária fez convergir para estes bairros a solidariedade de forças aliadas, para além das equipas de arquitetos e arquitetas e de apoio social. Foi o caso de grupos e pessoas da área cultural. José Afonso celebrizou esta luta na canção “Os Índios da Meia-Praia”, de 1976, sobre a construção do bairro SAAL da Meia Praia, em Lagos.
As assembleias de bairro, por vezes realizadas ao ar livre por falta de instalações, mobilizavam toda a gente. O diálogo e solidariedade entre profissionais da arquitetura e as pessoas dos bairros acabavam por superar as tensões. Cada qual à sua maneira pressionava a saída de uma lei dos solos que assegurasse a expropriação dos terrenos. Elaboravam contributos e conceitos em plenário ou delegando na Associação de Moradores: para vencer as dificuldades de implantação no terreno, o contorno de obstáculos naturais e geológicos, ou a sua utilização como valorização paisagística. A interação das pessoas no debate da arquitetura e do urbanismo em plenários fortemente participados e calorosos, no confronto e reivindicação direta e permanente frente à administração pública central e local, na construção de redes de associações de moradores e de outros setores sociais aliados, permitiu uma politização acelerada, umas capacidades de organização multidisciplinar e uma eficácia que se iriam traduzir na construção destes bairros com contornos inéditos e numa experiência que marcou indelevelmente as histórias individuais e coletiva.
Bairro SAAL Casal das Figueiras Setúbal
As pessoas recusavam frontalmente “casas para pobres”, ou casas “desmontáveis e transitórias”, como o regime da ditadura fizera anteriormente em Lisboa. Reivindicavam o direito ao lugar onde viviam, recusando ir para as periferias, em muitos casos com vistas fabulosas que atualmente seriam apropriados exclusivamente por pessoas ricas. Tudo era discutido: a tipologia das casas, optando por moradias ou bandas de apenas dois ou três pisos e recusando as torres em altura, a necessidade de pequenos jardins, pátios ou espaços exteriores comunitários para convívio, lazer, cultura, infância. A arquiteta Conceição Redol, que esteve à frente de uma operação SAAL, alertava para a sua experiência em operações de alojamento em casos passados: “as pessoas às vezes eram mais felizes nos bairros de barracas – porque tinham espaço exterior para andarem, as crianças e as próprias pessoas, para lavar a roupa - do que transportadas para dentro de um edifício, emparedadas, sem contacto com o exterior”. As pessoas sabiam o que era qualidade de vida e reivindicavam-na: a rua e o espaço exterior como prolongamento das casas e sociabilidades.
Muitas das mulheres dos bairros conheciam o tema “por dentro”: trabalhavam nas casas de famílias com mais posses. Muitos homens trabalhavam na construção civil. O aproveitamento dos espaços interiores, os revestimentos: tudo era discutido. As intervenções de urgência, como água e saneamento básico, iam organizadamente expô-las e reivindicá-las diretamente aos gabinetes camarários.
As pessoas e as associações de moradores tiveram que vencer sérios obstáculos criados a partir do 25 de novembro de 1975: a começar pelos financiamentos faseados das obras por parte do poder central, dificultados ou utilizados como chantagem.
Um levantamento feito em dezembro deste mesmo ano de 1975 dava conta de que 123 bairros SAAL começavam finalmente a ser implantados no terreno: mais tarde ainda começariam mais alguns bairros, como em Grândola e Seixal. Resumindo: o início das operações SAAL ocorreu durante o processo revolucionário, com os contratos e as equipas técnicas de engenharia, arquitetura e outras valências constituídas. Mas a sua concretização, com as pessoas a mudarem das barracas para as casas, na maioria dos casos só aconteceria alguns anos mais tarde, já depois de o Programa SAAL ter sido “extinto” por um ministro do Partido Socialista, em outubro de 1976.
Bairro SAAL Quintinha da Liberdade, Alcácer do Sal
Com a revolução a perder força e o crescente regresso à “normalidade”, o estado central apostou na desmobilização e cansaço das pessoas dos bairros em construção, retirando os arquitetos e outros técnicos. Era frequente a má vontade ou animosidade de algumas Câmaras para quem que o governo “empurrava” em parte a construção dos bairros SAAL, encarados como um peso e uma “batata quente”. As falências por vezes fraudulentas das empresas de construção levavam a paralisação das obras e arrastamento dos prazos. Perante tantos reveses é admirável o facto de a maioria destes bairros terem chegado a um final feliz, orgulho de quem participou. Alguns dos bairros ficaram incompletos e por isso sujeitos às erosões, outros só viram os arranjos exteriores concluídos décadas depois, provando assim também a força que esteve na sua origem. Há que reconhecer também que alguns destes bairros só viram a luz do dia graças ao empenho de algumas lideranças municipais que reconheceram a pressão das pessoas dos bairros.
Como notava Nuno Teotónio Pereira, “o SAAL foi considerado excessivamente revolucionário por se encontrarem nos seus alicerces formas de democracia direta. Assinados muitos dos projetos por alguns dos mais conceituados arquitetos portugueses, ficaram certas realizações como testemunho do muito que se poderia ter feito de uma forma política, social e técnica inovadora para um problema que se arrastava há décadas”. Mais: a extrema qualidade de muitos bairros SAAL e das vivências das pessoas que os habitam emergem ainda hoje no panorama da habitação pública e social como flores e frutos desse fugaz e incomparável tempo da revolução.
* Jaime Pinho - Autor do livro “Fartas de Viver na Lama: os bairros SAAL do distrito de Setúbal”, em coautoria com as professoras e fotógrafas Fernanda Gonçalves e Leonor Taurino; Edições Colibri, 2002.
Fotografias de: Fernanda Gonçalves e Leonor Taurino