Olá, o meu nome é Avi Mograbi, serei o vosso guia ao longo deste manual abreviado para a ocupação militar, informa um soldado veterano, de olhar lancinante, a segurar um livro onde estarão contidas as estratégias essenciais para manter a ocupação vigente na região há mais de meio século. A comunicação é muito directa, falando directamente para a câmara, como tratando-se de um workshop de estratégia geo-política para potenciais candidatos maquiavelianos a dominar o território adjacente a Israel. De certa forma, um conhecimento que este ativista adquiriu ao longo de uma vida observando a relação de Israel com os vizinhos palestinos. Quando iniciamos a nossa sessão Zoom com o cineasta, a partir de Telavive, a principal diferença que notamos é mesmo a ausência da barba tipo pera, além de uma atitude mais amistosa.
O filme acompanha uma série de capítulos pedagógicos, devidamente acompanhados pelo contributo de dezenas de ex-militares da organização "Breaking the Silence" de que Mograbi foi um dos fundadores. Ex-militares que aceitaram reviver a sua própria posição durante várias fases da ocupação, naturalmente complementada por imagens de arquivo da época. Fundamental é a postura militarista de Mograbi, que dá a forma particular a este filme.
“Era necessário criar uma lógica”, confirma. “Ninguém acredita que Israel mantém a ocupação apenas para torturar o povo palestino, pois existe um motivo maior. E a razão não é o tipo de ocupação que os países europeus usaram, Portugal incluído, em África, para explorar recursos naturais ou humanos. Pelo contrário, Israel deseja a terra, mas sem as pessoas. Israel não quer essas pessoas. Nesse sentido, foi necessário criar uma lógica. E assim nasceu este manual.”
Percebe-se que Avi Mograbi é o cineasta certo para este projeto, ele que tem já uma sólida carreira de ativismo além de mais de uma dezena de filmes não ficção, muitas vezes incluindo elementos de alguma provocação que motivam reflexão. Daí a ideia de conceber um manual como se ele próprio fosse alguém dentro do sistema. “Senti que devia oferecer-me como voluntário. Acho que não sobreviveria se não me metesse num projeto semelhante. Foi assim que criei a barba e a ironia, embora a personagem não se aperceba disso. Essa é apenas a ironia do realizador. Decidi tornar-me numa personagem maquiavélica. Um cínico, apenas empenhado em alcançar o objetivo. E ignorar as pessoas.”
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Entre as dezenas de soldados que dão a cara no documentário e que foram mudando de opinião ao longo dos tempos, percebem-se as reações de desespero face a situações de agressão. Mesmo que Avo seja algo reticente diante de uma ‘luz ao fundo do túnel’ sobre esta eterna questão. Até porque existe uma razão de base que a explica. “A explicação habitual para esta ocupação é a mesma: por 'razões de segurança', para 'defender o país de ameaças externas'. No entanto, se olharmos para a história de uma forma mais crítica, verificamos que Israel começou a instalar colonos pouco depois do final da guerra, em 1967. Alguns meses depois já haviam criado uma corrente de colonatos ao longo do rio Jordão, marcando com clareza onde deveria ser a fronteira com o resto do mundo árabe. Para além disso, foi dito que os colonos eram temporários até se chegar a um acordo com os palestinos ou com quem seriam os legítimos donos da terra, iríamos retirar os colonos. Foi por esta razão que o Supremo Tribunal se recusou a lidar com o assunto, pois segundo a Convenção de Genebra este é um crime de guerra.”
Ao longo deste meio século de ocupação, o sistema foi-se adaptando. E criando mesmo soluções alternativas. Até porque, confessa-nos o cineasta de 66 anos, “os israelitas gostariam de se esquecer que existe uma ocupação. Existe até uma enorme rede de estradas que permitem a qualquer israelita viajar sem ver palestinos. Ou seja, tornaram a ocupação invisível.”
Aparentemente, um estado de coisas que não deverá sofrer alterações nos próximos tempos. “Temos eleições dentro de poucas semanas e poucos partidos mencionam a ocupação. Não está na agenda. Por isso, o trabalho de "Breaking the Silence", a organização de soldados veteranos em que estou envolvido e sou um dos fundadores, assumiu a tarefa de tornar a ocupação visível, recolhendo testemunhos de soldados e tornando-os públicos.”
Avi Mobragi é pragmático e coloca a questão desta ocupação ilegal de uma forma clara. Importante é a questão entre agressor e vítima. “Interessa-me o fenómeno daqueles que eram vítimas e tornaram-se em agressores. Seria legítimo pensar que a vítima teria aprendido algo da sua experiência traumatizante. Quando dizemos "nunca mais!" para o que sucedeu na II Guerra Mundial, isso significa também que nós não o deveríamos fazer”.
Por isso mesmo dá o exemplo do nosso país, pela forma como lidou com o processo revolucionário. “Admiro muito Portugal pela forma como as forças militares derrubaram a ditadura e devolveram o país às pessoas. É algo tão incomum. Normalmente quando o exército toma conta do poder, veja-se o que acontece um pouco por todo o lado. Nunca mais o liberta.”
Numa altura em que Israel se prepara para regressar às urnas em novas eleições antecipadas, daqui a cerca de duas semanas, vive um novo impasse político. Avi Mograbi não está otimista com esse desfecho. “Era muito importante que Netanyahu fosse afastado. Mas, infelizmente, os outros candidatos ainda são mais extrema direita. Não aposto em mudanças tão cedo. Mas também sei que dez anos antes de terminar o Apartheid na África do Sul, nem você nem eu esperávamos que terminasse e da forma que foi. Por isso desejo que exista algum deus ou uma super-força que possa intervir. Que o super-homem vista a sua capa e ponha as coisas na ordem. Não é só Israel, mas temos de ser muito otimistas para acreditar que tudo isso possa acabar”.
Quando lhe pedimos para se referir ao renascimento de uma direita que parece “saída do armário”, o veterano realizador assume-se igualmente incrédulo. “Todos acreditávamos que depois da II Guerra Mundial o mundo tinha aprendido. Eu era muito novo nos anos 60, mas acreditava que tudo ia ser paz e amor. Mas depois todos esses hippies tornaram-se em yuppies na bolsa. Não consigo explicar isso.”